Posts from janeiro, 2011

Começo e fim

 

 

 

                        Como faço todos os domingos, na manhã de ontem fui até a Praça 7 de Setembro comprar pão para o almoço, jornais e revistas.

                        A novidade foi que Carolina resolveu me acompanhar levando Manuela para conhecer a tradicional praça, que fica próxima da antiga casa da minha sogra (já falecida e que foi uma avó maravilhosa para minhas três filhas) na Rua São Sebastião, e onde Carol, Bell e Júlia quando crianças iam frequentemente brincar e tomar sorvete.

                        Levamos o triciclo de plástico (velotrol) com que a tia Bell presenteou Manuela no Natal e ela adora. Ainda não alcança os pedais nos seus pouco mais de dez meses, mas segura o guidão e dirige orgulhosamente , enquanto é empurrada por meio de uma barra afixada na traseira.

                        Assim que iniciamos a travessia de uma das alamedas da praça, em sentido contrário vinha uma velhinha, muito frágil, conduzida em uma cadeira de rodas por uma enfermeira.

                        Quando a velhinha e Manuela se aproximavam nos seus respectivos “veículos”, houve uma imediata e mágica empatia entre as duas: olharam-se e sorriram-se com ternura comovente. Paramos brevemente e mesmo sem nada se dizerem as duas continuaram a trocar olhares cúmplices e sorridentes, estendendo as mãos para se tocarem. Seguimos em sentidos opostos, e as duas ainda se olhavam, virando para trás.

                        O encontro da infância e da velhice, o começo e o fim da existência se miravam, sorriam e tocavam, tão semelhantes em suas dificuldades e dependências.

                        A vida toda se apresentou ali, naquele súbito instante.

 

 

 

O fascínio do Rio

 

 

 

                        Última noite no Rio destas nossas férias. Por certo não a última das muitas que ainda haveremos de passar aqui.

                        Como em toda véspera de viagem, Maria Delucena fica ansiosa, quer arrumar as malas, deixar tudo pronto com antecedência, dormir mais cedo.

                        Assim, já me acostumei nas nossas viagens a desfrutar sozinho da última noite, enquanto ela se recolhe em sua aflita expectativa da volta.

                        Hoje, resolvi assistir ao filme Tetro, que Coppola filmou na Argentina e há muito tempo persigo sem sucesso. Havia visto que estava em cartaz numa das três pequenas salas de exibição do Centro Cultural Laura Alvim, mantido na antiga e maravilhosa casa da família Alvim, doada ao Estado para essa finalidade, que fica à altura do Posto 8, em Ipanema. Só o casarão em si, muito bem conservado, assobradado, com uma ampla varanda na parte de cima com vista para a praia, valeria a pena. Mas, além disso, tornou-se um delicioso e aconchegante espaço com salas de teatro, cinema e exposições de arte, biblioteca, café e uma lojinha encantadora especializada em filmes, livros e objetos sobre cinema.

                        A sessão começou às 19h20 e terminou por volta das 21h30. O filme é perturbador, uma dramática história familiar, quase um tango filmado com a maestria de sempre por Coppola.

                        Ao sair, ainda com o filme na cabeça, resolvi caminhar até o hotel pelo calçadão da praia, para aproveitar a noite estrelada e a brisa do mar.

                        Pouco antes do Posto 9, na esquina da Rua Vinicius de Moraes e defronte do hotel Sol Ipanema, que era o hit da época e onde passamos parte da nossa  lua de mel, diviso um amontoado de gente, mais de 50 pessoas, ao redor de um quiosque, bebendo, cantando e se confraternizando alegremente. Quando cheguei mais perto, vi que havia um violonista e cantor, acompanhado de um baterista, interpretando canções de Tom Jobim, tendo ao fundo uma tela que projetava imagens do mestre. Lembrei-me então de que Tom nasceu no dia 25 de janeiro, data da fundação de São Paulo, e ali se fazia uma singela homenagem a ele.

                        Não resisti e parei, pensando que seria uma bela forma de me despedir do Rio nesta breve viagem. Pedi uma caipirinha e me integrei à celebração, juntando-me à pequena multidão em volta dos músicos.

                        E acabei por presenciar algumas cenas extraordinárias, que só podem acontecer no Rio de Janeiro.

                        Um carioca típico, sessentão, grisalho, barriga de cerveja, trajando bermuda e camiseta regata, que sacolejava o corpanzil ao ritmo das canções, de repente tira para dançar uma negra de aparência simples e mais ou menos da mesma idade que estava próxima. E os dois, principalmente ela, dão um verdadeiro show de passos e rodeios, sendo aplaudidos freneticamente pelo público.

                        Logo depois, um tipo aloirado, com todo o jeito de gringo, aproxima-se do violonista e cantor, pede-lhe o microfone e se põe a cantar com forte sotaque inglês, mas surpreendente balanço, Corcovado, que vinha sendo executada pelos músicos. Fiquei pasmo. Ao terminar, agradeceu, dizendo que tinha acabado de chegar de Nova York e que adorava bossa nova e o maestro Antonio Carlos Jobim.

                        Ao meu lado, um sujeito se matava de rir e não parava de berrar “Vai gringo, filho da puta…”, o que a princípio me pareceu uma injustificável grosseria. Porém, logo fiquei sabendo que o tal gringo era carioquíssimo, uma figura conhecida de Ipanema, que mora há mais de 40 anos num prédio logo em frente, e vive a se passar por americano.

                        Quando a apresentação se encerrou por volta das 22h30, em razão da lei do silêncio, acabei por me aproximar do dançarino e do falso gringo, que se chamam respectivamente Fausto e Armando, e com eles mantive uma divertida conversa, ao cabo da qual acabei convidado, quando voltar ao Rio, a me integrar ao grupo que se reúne ali quase todas as noites.

                        Assim é o Rio comigo. Sempre me deixa a porta aberta e mil motivos para regressar o quanto antes. Desta feita, como uma amante sedutora e sapiente, me proporcionou uma última noite de gozosas delícias.

                        Como resistir?

 

 

 

A frase do dia

 

 

 

 

                        “Palavras de ontem são do idioma de ontem

                         E as de amanhã aguardam outra voz.”

                         (Little Gidding, T S. Eliot)

 

 

 

                        Li hoje, no excepcional romance de Philip Roth, Fantasma sai de cena, a citação dos versos acima — numa tradução livre, mas muito boa — do poema de Eliot, o último que compõe os Quatro Quartetos.

                        Por algum tempo suspendi a leitura do livro, a refletir sobre a beleza e o significado dos versos que me tocaram profundamente. Logo fiquei tentado a reproduzi-los aqui, para compartilhar minha emoção com aqueles que me acompanham.

                        Não é essa a primeira vez que isso me ocorre, mas sempre hesitei em me valer do blog para esse tipo de citação.

                        A razão da minha relutância é traumática e portanto, segundo Freud, neurótica.

                        Tenho um amigo (talvez a definição mais precisa seja “conhecido”, já que nos limitamos a contatos sociais, sem maior intimidade) que é um homem de muitas letras e luzes, mestre e doutor, professor celebrado, intelectual reverenciado, escritor e palestrante emérito, de educação esmerada, um verdadeiro cavalheiro. Gosto dele. Admiro sua cultura, simpatia e lhaneza no trato.

                        Mas tem ele uma veleidade (e quem não temos alguma?) inofensiva, mas que me irrita muitíssimo: a de impingir frases de autores famosos sem mais nem menos, de modo absolutamente gratuito, nas conversas mais despretensiosas e informais

                        Mas que calor, hem?

                        Pois é! Aliás, Faulkner dizia… E lá vem uma citação tirada do bolso do colete.

                        Um outro amigo comum (este sim, íntimo), que também se aborrece com tais referências inoportunas (ou oportunistas), acha que o fraseômano acorda toda manhã e antes de sair de casa seleciona uma citação para pontificar durante o dia. E, de qualquer modo, venha a calhar ou não, sentencia.

                        Conta esse mesmo amigo que numa ocasião embarcou num ônibus em São Paulo com destino a Ribeirão Preto, altas horas da noite, exausto, e quanto se acomodou no assento deu com o outro sentado na poltrona ao lado.

                        Cumprimentaram-se, e antes que o outro pudesse sacar a frase do dia (ou da noite), meu amigo abriu um livro e se pôs a ler gravemente.

                        Logo que o ônibus ingressou na rodovia para as quatro horas de viagem, meu amigo deixou o livro cair sobre o peito e dormiu (ou fingiu que dormia). Nem mesmo desceu no posto em que o ônibus costuma parar brevemente, para tomar um café e fumar um cigarro.

                        Quando finalmente o ônibus estacionou na rodoviária de Ribeirão Preto, meu amigo já se regozijava por não ter dado a menor chance para que o outro lhe atirasse a frase engatilhada.

                        Ledo e Ivo engano.

                        Enquanto pegavam a bagagem, o fraseador sapecou:

                        Pois é, Fulano, sabe que durante a viagem vinha pensando no que dizia Kierkegaard…

                        E pespegou Kierkegaard no meu pobre e cansado amigo àquela hora da madrugada…

                        Durma-se com um barulho desses!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                        Nas Pílulas, onde foi parar o senso do ridículo dos brasileiros?

 

 

A Travessa dos Poetas de Calçada

 

 

 

 

                        Quando estive no Rio, de afogadilho, para assistir à apresentação dos painéis “Guerra e Paz” de Portinari no Theatro Municipal, descobri por acaso a “Travessa dos Poetas de Calçada”.

                        Foi assim.

                        Logo depois de dar entrada no hotel, por volta das 10 horas, tomei um táxi e fui direto ao Theatro Municipal para pegar o meu convite, conforme instruções que havia recebido.

                        Soube então que a retirada dos convites não era na bilheteria do Theatro, como imaginava, mas sim num outro prédio ao lado. A minha ansiedade era tanta, que cheguei entes da equipe encarregada da entrega dos convites.

                        Enquanto esperava, para matar o tempo, saí a andar pelas imediações, dando vazão ao meu espírito de flâneur quando me vejo numa cidade desconhecida. O Rio não me é totalmente estranha, pelo contrário, mas a bem de ver todas as cidades, por mais que as conheçamos, sempre nos reservam surpresas, como uma amante caprichosa e sedutora.

                        Caminhei pela Avenida Treze de Maio e pela Rua Senador Dantas até que numa esquina deparei com uma tabuleta do restaurante Al Kwait, que se denomina o árabe mais antigo do Rio, anunciando as especiarias que minha avó materna fazia como ninguém.

                        O restaurante ainda não estava aberto para o almoço àquela hora da manhã, mas servia algumas guloseimas, como quibes e esfihas, num balcão e nas mesas da calçada. Sentei-me numa delas e pedi uma coalhada, um suco de laranja e um café.

                        Súbito, ao olhar a placa da indicação do local, me surpreendi-e emocionei ao ver que estava na Travessa dos Poetas de Calçada, um desses becos do centro do Rio em que provavelmente muitos passam sem dar a mínima atenção ao nome. Não havia na placa explicação alguma sobre os tais poetas de calçada. Aos que perguntei, garçons e pessoas que por ali estavam, ningúem sabia de nada.

                        Anotei o nome e o local para verificar depois, com mais calma.

                        Hoje retornei lá, mas as informações que colhi foram mesmo na internet e, aliás, são poucas.

                        Consta que nos anos 70 um poeta chamado Gilson escrevia poemas com giz em tapumes naquelas cercanias. Descobri, também, que Drummond trabalhava próximo dali, no Castelo, mas certamente o nome da travessa deve ser muito anterior aos dois.

                        Pouco importa. O que interessa é a maravilha do nome da travessa e para onde ele transporta a nossa imaginação.

                        Quem seriam os poetas de calçada? Poetas sem teto, que viviam pelas calçadas do beco?

                        Ou  será que apenas se reuniam naquele beco para dizer e escrever seus poemas? Uma confraria?

                        Haveria ali uma feira de poesia, com bancas de poemas fresquinhos (segundo o estilo), como nas feiras livres, para vender aos apaixonados ou vaidosos que apresentariam como seus às amadas ou nos saraus? Se houvesse, aconteceria também aquela hora da xepa do final das feiras, quando os produtos não vendidos ou rejeitados são vendidos mais baratos?

                       Quando foi isso?

                       Rubem Fonseca, que infelizmente tem escrito muita porcaria nos últimos tempos — seu mais recente romance (?) “O Seminarista” chega a ser constrangedor —, mas que sem dúvida é um grande mestre da narrativa, tem um conto antológico, recentemente reeditado pela Editora Agir, intitulado “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”, em que o personagem Augusto Epifânio é um emérito perambulante do centro do Rio, mas não consta que ande pela Travessa dos Poetas de Calçada.

                        Eu, pobre homem da póvoa do Bexiga e do São Sebastião do Ribeirão Preto, é quem fui andar por lá.

 

 

 

 

 

Dia a dia (num hotel de turistas)

 

 

 

 

                        “Bom-dia”, me diz a brasileira e sua brejeira morenice (mesmo se loira) resplandece num sorriso alvissareiro, inteiro olhos e dentes.

                        “Buenos dias”, fala a espanhola ardente (ou a argentina fatal) e a vida cantarola ao atrito rouco da castanhola (ou no grito aflito do bandoneón).

                        “Buon giorno”, agita a calorosa italiana e sua boca e seu busto definem no homem o menino, que sonham juntos com Fellini o Amarcord.

                        “Bonjour”, sussurra a francesinha com seu biquinho de Brigitte e não há quem não se agite e o coração palpite à espera que a tarde venha e traga a Belle de Jour.

                        “Good morning”, deseja a Barbie americana, muito peito pouca bunda, muita grana que engana, pra comprar a quem reclama.

                        “Guten morgen”, saúda a alemã classuda, acompanhada de um ariano puro, dois metros de costado e aprumo.

                        Eu, que tenho intolerância ao glúten, e não tenho vontade alguma  de ser mandado para uma morgue, disfarço e saio de fininho…

 

 

 

 

 

                        Rumo ao Rio, nem os anjos resistiram… Nas Pílulas.

 

 

Águas de Janeiro

 

 

 

 

                       As águas deste janeiro tempestuoso levaram junto com pau, pedra e lama a casa em São José do Vale do Rio Preto, no sítio Poço Fundo, onde Tom Jobim se refugiava nas férias e compôs, entre outras preciosidades, a monumental Águas de Março.

                       Conta-se que Tom Jobim, num encontro que teve com Carlos Drummond de Andrade, pediu a este que lhe indicasse um bom dicionário de rimas para que consultasse quando da feitura das letras de suas músicas. E o poeta lhe respondeu:

                       — Quem escreveu Águas de Março não precisa de dicionário de rimas.

                       A letra de Águas de Março — que é primorosa, assim como a melodia, — retrata as chuvas, as coisas, os acontecimentos e o que sentia Tom Jobim nas temporadas que passava na casa agora destruída. O carro quebrado é aquele em que viajava João Gilberto para visitar o amigo Tom.

                      Imagino João Gilberto, com seu indefectível terninho marrom e suas idiossincrasias, sendo obrigado a saltar do automóvel e enfiar o pé no barro em busca de socorro. Como ele não dirige, pode ser também que tenha ficado no carro à espera, afinando o violão, enquanto o motorista se encarregava de resolver o problema.

                      A casinha de Tom se foi.

                       É o fim do caminho?

                       Creio que não. Como o quarto de Manuel Bandeira na casa demolida do velho beco da Lapa, a casinha de Tom Jobim vai ficar:

 

                                             Não como forma imperfeita

                                             Neste mundo de aparências:

                                             Vai ficar na eternidade,

                                             Com seus livros, com seus quadros,

                                             Intacto, suspenso no ar!

                           

                       E quanto as águas de março fecharem o verão, sempre restará a promessa de vida no nosso coração.

 

 

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A Sociedade do Espetáculo

 

 

 

Charge de Néo

 

                        A vida e o mundo são replenos de tragédias, infortúnios e sofrimentos que nos deixam perplexos e inermes na nossa pequenez e insignificância.

                        Não se trata de adotar o comportamento das avestruzes, que enfiam a cabeça num buraco para se esconder, mas a exploração diuturna e nauseabunda dessas tragédias pela mídia televisiva é outra tragédia da nossa sociedade.

                        Claro que os meios de comunicação têm o papel e o  dever altamente relevante de informar, noticiar, prevenir, ajudar a conscientizar, denunciar falhas, cobrar providências, mas não são esses os propósitos que sobrelevam nas coberturas massivas e massacrantes dos canais de televisão.

                        O que vem em primeiríssimo lugar é o espetáculo da desgraça, da dor e do sofrimento, das imagens chocantes reproduzidas continuamente, até que outras tragédias e infortúnios tão ou mais espetaculosos sobrevenham.

                        O poema abaixo já foi publicado neste blog, mas torno a postá-lo porque me parece que esta seja a sua hora. Muitas vezes acontece isso: escreve-se algo que só mais tarde parece ganhar força e encontrar o seu verdadeiro momento.

 

 

Soneto aguado

 

 

Para Gilberto Kujawski e seu sábio amigo Lopo Noronha

 

  

 

                                                Se não chovem canivetes ainda,

                                                chove a cântaros, cujo barro se rachou

                                                derramando toda a água sobre a Terra

                                                embarrada, emburrada, desavinda.

 

                                                It’s raining cats and dogs!

                                                Log a internet, ligue a televisão,

                                                para a ver o dilúvio que lá fora

                                                assola em meio a tanta desolação.

 

                                                Atenção, Noés de plantão, suas arcas

                                                arcarão? Para nós haverá salvação,

                                                reles bichos ao rés do chão?

 

                                                O mundo se liquefez, fluido e rarefeito

                                                e bracejamos nessa liquidez

                                                sem assomar para o quê somos feitos.