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A arte do encontro VII

 

 

 vinicius, chico, tom e manuel bandeira

 

Chico Buarque conta que conheceu Vinicius de Moraes como amigo do pai, Sergio Buarque de Holanda, e tinha por ele a reverência que os mais novos costumavam ter com os mais velhos.

Só bem depois, quando Chico começou a aparecer como compositor e cantor é que as relações entre Vinicius e ele se estreitaram, acabaram parceiros e até compadres.

“Valsinha” é uma das canções mais belas da parceria, em que o poetinha fez a melodia e Chico, a letra.

Vinicius não resistiu a dar alguns pitacos na letra que Chico lhe enviou, entre os quais o título da canção: “Valsa hippie”.

A deliciosa troca de cartas (e farpas) entre os dois revela que Chico, apesar do respeito e da admiração por Vinicius, já havia adquirido confiança e intimidade suficientes para contrariá-lo. E me parece que a razão, no caso, estava com Chico.

 

 

DE VINÍCIUS DE MORAES PARA CHICO BUARQUE

 

Mar del Plata, 24 de janeiro de 1971

 

Chiquérrimo,

 

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio morava em Buri, 11, e lá se foi a carta para Buri, 11.

Mas, como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se você concorda com as modificações feitas.

Claro que a letra é sua, e eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor essas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de “Valsa hippie”, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui, no princípio, estranhou um pouco, mas depois se amarrou na idéia. Escreva logo, dizendo o que você achou.

 

 

DE CHICO BUARQUE PARA VINÍCIUS DE MORAES

 

Caro poeta,

 

Recebi as duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o “Apesar de você”. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gesse, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.

“Valsa hippie” é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo que há de hippie por aí. “Valsa hippie” ligado à filosofia hippie como você a ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que se segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippy. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou “xingou” mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.

“Convidou-a pra rodar” eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e a tesão da trepada final. “Pra seu grande espanto”, você tem razão, é melhor que “para seu espanto”. Só que eu esqueci que ia por itens.

Vamos lá: Apesar do Orestes (vestido de dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. É gostoso de cantar “vestidodecotado”. E para ficar dourado, o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao “ousar” que ela não queria por causa do marido chato e quadrado.

Escuta, ô poeta, não leva a mal a minha impertinência, mas você precisava estar aqui para ver como a turma gosta, e o jeito dela gostar dessa valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, talvez dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.

Ainda baseado no argumento acima, prefiro o “abraçar” ao “bailar”. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe. A terceira é a que mais me preocupa. Você está certo quanto ao “o mundo” em vez de “a gente”. Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último versos onde você diz “e cheios de ternura e graça” em vez de “e foram-se cheios de graça”. Agora, estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer “Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar”. Só tem o probleminha da junção “em-estado”, o “em-e” numa sílaba só. Que é o mesmo problema do “começaram-a”. Mas você mesmo disse que o probleminha desaparece dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado “começaram a se abraçar” sem maiores danos.

Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente.

Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando.

Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, por que deu bolo com o “Apesar de você”, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a “Tonga”, mas a “Banda” vendeu mais que o disco do Toquinho solando “Primavera”.

Dê um abraço na Gesse, um beijo no Toquinho e peça à Silvana para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

 

 

 

Porquinho-da-índia

 

 

“Porquinho-da-Índia” (Manuel Bandeira), declamado por José Maria Alves

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=xQHP-7IqQ2o[/youtube]

 

 

                                               PORQUINHO-DA-ÍNDIA

 

                                                                                                              MANUEL BANDEIRA

 

                        Quando eu tinha seis anos

                        Ganhei um porquinho-da-índia.

                        Que dor de coração me dava

                        Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

                        Levava ele pra sala

                        Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,

                        Ele não gostava:

                        Queria era estar debaixo do fogão.

                        Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

                        — O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

 

O rato que urge

 

 

 porquinhodaindia

 

 

Kim-Jong 2

 

O menino Manuel Bandeira sofreu a sua primeira desilusão amorosa com um porquinho-da-índia que só queria estar debaixo do fogão e não fazia nenhum caso das suas ternurinhas.

O menino ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, parece um porquinho-da-índia, mas se comporta ao contrário daquele do menino Manuel. Em vez de só querer estar debaixo do seu fogão, põe-se a esbravejar, ameaçando tocar fogo no mundo, louco para receber uma ternurinha. 

O teatro de guerra de Kim Jong-un me fez lembrar de um grande filme, verdadeiro clássico, “O Rato que Ruge” (“The Mouse that Roared”), em que o magnífico Peter Sellers, como costumava fazer, protagoniza diversas personagens.

O minúsculo ducado de Grand Fenwick, que ainda vive na era da espada e do arco e flecha, atravessa uma grave crise financeira porque seu único produto de exportação, um vinho fino, é vendido mais barato por uma companhia norte-americana. Seus governantes, a Duquesa e o Primeiro Ministro (ambos interpretados por Peter Sellers) têm então a brilhante ideia de declarar guerra aos Estados Unidos, na certeza de que, depois vencidos, passarão a receber ajuda para se recuperar.

Acontece, porém, que ao invadirem Nova Iorque vestidos e apetrechados como cavaleiros medievais, os bravos soldados do ducado, sob o comando de outro personagem vivido por Peter Sellers, encontram as ruas vazias por causa de uma simulação de ataque aéreo, capturam por acaso um cientista com a nova e poderosíssima arma por ele desenvolvida (uma bomba com o formato da bola oval de futebol americano, que de vez em quando estridula ameaçadoramente) e assim acabam por ganhar a guerra, com a capitulação incondicional dos Estados Unidos!

O filme tem um final feliz, mas resta saber se Kim Jong-un é apenas um rato gordo que ruge ou um rato louco que urge.

 

o rato que ruge 2

 

 

 

Todas as mulheres do mundo

 

 

“Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor paixão pela sua própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no dístico do meu soneto Fidelidade: que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure.” (Vinicius de Moraes)

 

 

Vinicius e a mulher 2

Vinicius e Gilda, sua última mulher, a quem apresentava como “minha viúva”

 

 

Eu que sou um bendito fruto entre mulheres ― Maria Delucena, Carolina, Isabella, Júlia, Manuela, pela ordem de chegada ― reconheço que nessa matéria não daria nem para a saída diante do nosso poetinha maior, que em 2013 faria cem anos, e outros cem viveria para servi-las, se não fora para tantos amores tão curta a vida.

Pois não bastassem seus tantos e antológicos poemas sobre as mulheres, Vinicius chegou a escrever poeminhas sobre a mulher de cada signo do zodíaco, com a verve e a maestria de sempre.

Não sei se os escreveu por encomenda, necessidade (“e tem um dinheirinho nisso?”, como lhe perguntou um Tom Jobim pobrinho e cheio de contas a pagar, ao ser convidado para musicar a peça “Orfeu da Conceição”; Manuel Bandeira, que daria seu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá, recebeu depois prendas do fabricante agradecido) ou mera brincadeira, mas os poemas chegaram a ser publicados num livrinho.

 

livro a mulher e o signo (Vinicius de Moraes)

 

Maria Delucena é capricorniana (há controvérsias); Carol, aquariana; Bell, sagitariana; Júlia, geminiana; e Manu, pisciana.

E vocês, minhas queridas e binárias estrelas que orbitam pelo meu céu, de que signo são?

O poema respectivo do poetinha lhes cai bem (ou vocês não são nada disso)?

A todas, todo o meu bem, e parabéns pelo seu dia, todos os dias.

 

 

 zodíaco

 

 

Áries

 

Branca, preta ou amarela

A ariana zela.

 

Tem caráter dominador

Mas pode ser convencida

E aí, então, fica uma flor:

Cordata… e nada convencida.

 

Porque o seu dominador

É o amor.

Eu cá por mim não tenho nenhum

Preconceito racial:

Mas sou ariano!

 

 

                                                 Touro

 

                                                 O que é que brilha sem

                                                 Ser ouro? – A mulher de Touro!

                                                 É a companheira perfeita

                                                 Quando levanta ou quando deita.

                                                 Mas é mulher exclusivista

                                                 Se não tem tudo, faz a pista.

                                                 Depois, que dona-de-casa…

                                                  E a noite ainda manda brasa.

                                                  Sua virtude: a paciência

                                                 Seu dia bom: a sexta-feira

                                                 Sua cor propícia: o verde

                                                 As flores dos seus pendores:

                                                 Rosa, flor de macieira.

 

 

Gêmeos

 

A mulher de Gêmeos

Não sabe o que quer

Mas tirante isso

É boa mulher.

 

A mulher de Gêmeos

Não sabe o que diz

Mas tirante isso

Faz o homem feliz.

 

A mulher de Gêmeos

Não sabe o que faz

Mas por isso mesmo

É boa demais…

 

 

                                                 Câncer

 

                                                 Você nunca avance

                                                 Em mulher de Câncer.

 

                                                 Seu planeta é a Lua

                                                 E a Lua, é sabido

                                                 Só vive na sua.

                                                 É muito apegada

                                                 E quando pegada

                                                 Pega da pesada.

 

                                                 É mulher que ama

                                                 Com muito saber

                                                 No tocante a cama

                                                 Não sei lhe dizer…

 

 

Leão

 

A mulher de Leão

Brilha na escuridão.

 

A mulher de Leão, mesmo sem fome

Pega, mate e come.

 

A mulher de Leão não tem perdão.

 

As mulheres de Leão

Leoas são.

 

Poeta, operário, capitão

Cuidado com a mulher de Leão!

 

São ciumentas e antagônicas

Solares e dominicais

ígneas, áureas e sadônicas

E muito, muito liberais.

 

 

                                                 Virgem

 

                                                 Se Florence Nightingale era Virgem

                                                 Não sei… mas o mal é de origem.

 

                                                 A mulher de Virgem aceita a amante

                                                 Isto é: desde que não a suplante.

 

                                                 Sexo de consumo, pães-de-minuto

                                                 Nada disso lhe há de faltar

                                                 O condomínio é absoluto

                                                 A virgem é mulher do lar.

 

                                                 Opala, safira, turquesa

                                                 São suas pedras astrais

                                                 Na cuca, muita esperteza

                                                 Na existência, muita paz.

 

 

Libra

 

A mulher de Libra

Não tem muita fibra

Mas vibra.

 

Quer ver uma libriana contente?

Dê-lhe um presente.

 

Quando o marido a trai

A mulher de Libra

balança mas não cai.

 

Se você a paparica

Ela fica.

 

Com librium ou sem librium

Salve, venusina

Que guarda o equilíbrio

Na corda mais fina.

 

 

                                                 Escorpião

 

                                                 Mulher de Escorpião

                                                 Comigo não!

                                                 É a Abelha Mestra

                                                 É a Viúva Negra

                                                 Só vai de vedete

                                                 Nunca de extra.

                                                 Cria o chamado conflito

                                                 de personalidades.

                                                 É mãe tirana

                                                 Mulher tirana

                                                 Irmã tirana

                                                 Filha tirana

                                                 Neta tirana.

                                                 tirana tirana.

                                                 Agora, de cama diz –

                                                 que é boa paca.

 

 

Sagitário

 

As mulheres sagitarianas

São abnegadas e bacanas.

Mas não lhe venham com grossuras

Nem injustiças ou censuras

Porque ela custa mas se esquenta

E pode ser muito violenta.

Aí, o homem que se cuide…

– Também, quem gosta de censura!

 

 

                                                 Capricórnio

 

                                                 A capricorniana é capricornial

                                                 Como a cabra de João Cabral.

                                                 Eu amo a mulher de Capricórnio

                                                  Porque ela nunca lhe põe os próprios.

 

                                                 A caprina é tão ciumenta

                                                 Que até os ciúmes ela inventa.

                                                 Mulher fiel está aí: é cabra

                                                 Só que com muito abracadabra.

 

                                                 Suas flores: a papoula e o cânhamo

                                                 De onde vêm o ópio e a maconha

                                                 Ela é uma curtição medonha

                                                 Por isso nos capricorniamos.

 

 

Aquário

 

Se o que se quer é a boa esposa

A aquariana pousa.

 

Se o que se quer é uma outra coisa

A aquariana ousa.

 

Se o que se quer é muito amor

A aquariana

É mulher macho sim senhor.

 

Porém não são possessivas

Nem procuram dominar

Ou são meigas e passivas

Ou botam para quebrar.

 

 

                                                 Peixes

 

                                                 Mulher de Peixe… peixe é

                                                 Em águas paradas não dá pé

                                                 Porque desliza como a enguia

                                                 Sempre que entra numa fria.

                                                 Na superfície é sinhazinha

                                                 E festiva como a sardinha

                                                 Mas quando fisga um namorado

                                                 Ele está frito, escabechado.

                                                 É uma mulher tão envolvente

                                                 Que na questão do Paraíso

                                                 Há quem suspeite seriamente

                                                 Que ela era a mulher e a serpente.

                                                 Seu Id: aparentar juízo

                                                  Seu Ego: a omissão, o orgulho

                                                 Sua pedra astral: a ametista

                                                 Seu bem: nunca ser bagulho

                                                 Sua cor: o amarelo brilhante

                                                 Seu fim: dar sempre na vista

 

 

 

 

Na boca!

 

 

 

manuel-bandeira-com-livros

 

 

 

                                                                   NA BOCA

 

                                                                                                                          Manuel Bandeira

 

 

              Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval

              Paixão

              Ciúme

              Dor daquilo que não se pode dizer

 

              Felizmente existe o álcool na vida

              e nos três dias de carnaval éter de lança-perfume

              Quem me dera ser como o rapaz desvairado!

              O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas

              e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:

              ― Na boca! Na boca!

              Umas davam-lhe as costas com repugnância

              outras porém faziam-lhe a vontade.

 

              Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados

 

              Dorinha meu amor…

              Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro: ― Na boca! Na boca!

 

 

                    

O nome da rosa

 

 

                                   Procurei a rosa

                                   dia e noite

                                   a vida inteira

                                   (que podia ter sido e que não foi).

 

                                   Procurei a rosa

                                   na canção de Caymmi

                                   e na roseira de Jobim

                                   (que só dá rosa mas não cheira).

 

                                   Procurei a rosa

                                   no asfalto e no jardim

                                   em verso e prosa

rosa azul 2

                                   (mas a rosa estava em mim).

 

 

Clareai, Clarice

 

 

 

 

 

O Nascimento do Prazer (excerto)

 

 

“O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida – e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom ― como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos ― pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.”

 

 

Entender é limitado

 

 

“Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.”

 

(Clarice Lispector, in “A descoberta do mundo”, crônicas)

 

 

 

“Quer me mandar algumas coisas? Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal minhas palavras. Você tem peixinhos nos olhos, você é bissexta. Faça versos, Clarice, e se lembre de mim. Você nunca é falante, barulhenta. O que você escreve nunca dói nem fere os ouvidos. Você sabe escrever baixo. E sua assinatura, Clarice, é você inteirinha: Clara…Clarinha…Clarice.” 

(Manuel Bandeira)

 

 

Doliente máquina

 

 

 

“Soñará un mundo sin lá máquina y sin esa doliente máquina, el cuerpo”

(Jorge Luis Borges, “Alguien soñará”)

 

 

 

 

 

            Coloca el pulgar derecho aquí, por favor.

            Coloquei.

            Más fuerte, más presión…

            Apertei.

            Cambie de mano, coloque el pulgar izquierdo.

            Troquei.

            Pressionei.

             ¡Vos non tiene impresión digital!

            Disse-me depois de algum tempo e em tom de reporovação a funcionária da alfândega argentina. 

            ¡Por supuesto que tengo!

            Respondi, exibindo-lhe as mãos com todos os dedos espalmados.

            ¡Pero no!  ¡La máquina non capta!

            Pensei em lhe perguntar se não era possível tentar o pneumotórax.

            Mas já sabia que a única coisa a fazer era tocar um tango argentino.

 

 

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Eu passarinho

 

 

 

            Na terça-feira, por volta das 22h, à toa, à toa, como a andorinha de Bandeira, entrei no site do Millôr e fiquei por longo tempo a passear por suas frases lapidares, seus haicais lampejantes, seus poemas e suas charges inigualáveis.

            Na manhã seguinte, logo que me levanto, sou abatido pela notícia de sua morte e verifico, com um arrepio, que exatamente no horário em que navegava no seu site ele morria em Ipanema.

            Dias antes, como já contei aqui, Bell e eu havíamos antecipado a capa do jornal “O Dia” sobre a morte de Chico Anysio.

            Entre os pensamentos que me assomaram ao saber da morte de Millôr — e interligando-a com a de Chico Anysio —, ocorreu-me que a morte anda de mau humor, à caça de seus desafetos, ou então que o paraíso esteja a precisar de mais alegria. Pensei também, e andei dizendo por aí, que sem Millôr o Brasil emburreceu mais um pouco.

            Eis que acabo de ler no Painel do Leitor da Folha de S. Paulo uma carta do meu querido Gilberto Kujawski dizendo isso, muito melhor do que eu diria: “A morte anda de mau humor. Numa só tacada, roubou-nos os dois maiores humoristas brasileiros vivos. Quem sofre com isso é a inteligência nacional. Millôr Fernandes, ágil e criativo na redação, tradutor de Shakespeare, não se sabe como não entrou para a Academia Brasileiro de Letras. Millôr foi um intelectual brilhante. Chico Anysio não era intelectual, mas era inteligente, alerta, ligado, sobretudo com a maneira de ser do brasileiro”.

            O matreiro Sinhô (que Manuel Bandeira muito admirava), ao se justificar das canções que tomava para si, dizia que “samba é como passarinho, está no ar, é de quem pegar”.

            Há os que não acreditam em coincidências, e os que só creem nelas.

            Eu, fico a ver e ouvir passarinhos.

 

 

 

 

Versos de Natal

 

 

 

                                               Versos de Natal

 

 

                                                                                              Manuel Bandeira

 

 

                                   Espelho, amigo verdadeiro,

                                   Tu refletes as minhas rugas,

                                   Os meus cabelos brancos,

                                   Os meus olhos míopes e cansados.

                                   Espelho, amigo verdadeiro,

                                   Mestre do realismo exato e minucioso,

                                   Obrigado, obrigado!

 

                                   Mas se fosses mágico,

                                   Penetrarias até o fundo desse homem triste,

                                   Descobririas o menino que sustenta esse homem,

                                   O menino que não quer morrer,

                                   Que não morrerá senão comigo,

                                   O menino que todos os anos na véspera do Natal

                                   Pensa ainda em por seus chinelinhos atrás da porta.