Selma Barcellos
DOCEMETRIA
delicadezas:
camadas sobrepostas
ao fel do dia.
“Je suis comme je suis” (Jacques Prévert / Joseph Kosma), com Juliette Gréco
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Mv_gJBr9MvY[/youtube]
Adalberto de Oliveira Souza
LE POÈME
Dans cette opportunité,
il ne suffit pas d’un mot,
il faut creuser
pas un puits
plutôt le thorax,
l’abdomen
jusqu’aux viscères,
les extraire tous et
les offrir aux enchères.
Perdre,
gagner un espace
et le remplir.
Sans absolution,
sans pacte.
O POEMA
Nesta oportunidade,
não basta uma palavra,
é preciso cavar
não um poço
o tórax,
o abdômen,
as vísceras até,
extraí-las
todas e
ofertá-las em leilão.
Perder,
ganhar um espaço
e preenchê-lo.
Sem absolvição,
sem pacto.
“Sabe você?” (Vinicius de Moraes / Carlos Lyra), com Cris Dellano e Roberto Menescal
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Q36sojLjYeE[/youtube]
Annibal Augusto Gama
Há sempre dois lados (quando não há quatro, cinco, ou mais), e quem tirar conclusões ou fizer julgamentos vendo apenas um lado, pode incorrer em erro grosseiro e ser temerário.
Um objeto deve ser olhado de baixo para cima, de cima para baixo e examinado de todos os seus lados. Devemos aproximar-nos dele, afastarmos, sopesá-lo, cheirá-lo, apalpá-lo, para ter uma noção aproximada do que verdadeiramente é. E, ainda assim, erramos muito.
Vale, para o caso, aquela anedota de dois ingleses que viajavam no vagão de um trem, sentados um diante do outro. Olhavam ambos, através da janela, a paisagem, o campo, lá fora. E um deles disse ao outro, vendo um rebanho de ovelhas: “Aquelas ovelhas foram tosquiadas”. Ao que o outro retrucou: “Pelo menos do lado de cá”.
O bom sendo indicaria que as ovelhas haviam sido tosquiadas inteiramente. Mas, quem sabe? Para os passageiros não havia prova absoluta de que elas tivessem sido tosquiadas dos dois lados do corpo.
Quando não podemos ter certeza, o melhor suspender o julgamento.
O fato é que somos chamados a tomar decisões, a cada momento. E decidimos pelo que já vimos antes, pela experiência, pelo que nos parece mais certo ou justo. Manter-se isento, imparcial, sufocar a piedade, a emoção, diante disso ou daquilo, é muito difícil.
Fala-se em objetividade, em ser objetivo. E é quase impossível ser objetivo. Os nossos valores não são iguais. Apela-se então para as máquinas, para o diagnóstico feito pelas máquinas. Mas atrás da máquina está o homem que a manobra e que interpreta o que resulta dela.
Talvez seja melhor aceitar as inclinações do nosso coração. Já dizia Pascal: “Le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas”.
Afinal, todos os homens, os que julgam e os que são julgados, serão um dia também julgados.
E o mais difícil é julgar-se a si mesmo.
A Maioria: foto de René Maltête (1960)
“When I fall in love” (Victor Young / Edward Heyman), com Doris Day
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=ApNRGiqxjK0[/youtube]
Euclides Rossignoli
Sábado ao anoitecer. Um banho demorado e estimulante, a melhor roupa, os sapatos bem engraxados, a brilhantina esfregada nas palmas das mãos para amaciar os cabelos. O entusiasmo tomando conta da alma. O jantar, o sair e o caminhar alegre até a Praça Mello Peixoto. Era a década dos anos 1950, aqueles hoje conhecidos como Anos Dourados — a Rádio Nacional, os boleros, Frank Sinatra, Nat King Cole, Elvis Presley, Paul Anka, Pat Boone, Doris Day, Tony Curtis, James Dean, Sandra Dee, as orquestras do interior e os bailes, o cinema, a vida sem violência. A gente ia ao footing da praça encontrar os amigos e procurar por uma namorada. Tínhamos aí dezessete, dezoito, dezenove anos. No sonhar sem barreiras o mundo era todo nosso.
Uma das minhas maiores saudades dos tempos passados de Ourinhos é o footing da Praça Mello Peixoto. Ele acontecia aos sábados e domingos à noite nas calçadas externas e internas da praça. Rapazes e moças tinham aí sua melhor oportunidade de flerte e início de namoro. Os jovens sem parceiros andavam no passeio externo. Nos passeios internos caminhavam os casais de namorados. Não havia a prática do ficar que existe hoje. Também não havia sexo antes do casamento. Casamento com todas as formalidades: juiz, padre, padrinhos, papel passado, convites e festa. E entre o namoro e o casamento ainda havia o noivado com o devido uso de aliança no dedo anular da mão direita.
Componente indispensável do footing era o serviço de alto-falante pelo qual os jovens ofereciam músicas e mandavam pequenas mensagens aos seus flertes.
Nos primeiros tempos o footing externo compreendia o caminhar por todo o perímetro da praça. Moças, aos pares, caminhavam num sentido, e rapazes, também aos pares, caminhavam no sentido oposto. Como se estivessem — e estavam — em exposição. Depois, a distância percorrida diminuiu pela metade: a calçada toda da parte voltada para a Rua 9 de Julho, metade da extensão da parte voltada para a Avenida Altino Arantes, e metade da extensão da parte voltada para a Rua Paraná.
Não demorou muito e o footing mudou de novo. Só as moças continuaram caminhando. Os rapazes passaram a ficar parados na rua, à beira da calçada. Finalmente, em seus últimos tempos, o costume se restringia ao caminhar das moças e ao estar dos moços unicamente na calçada da parte da praça voltada para a Rua 9 de Julho. As moças iam e vinham de uma esquina à outra. Diante do que fora, podemos dizer que chegamos ao little footing, último estágio antes do desaparecimento completo do velho e bom costume.
Forma singela e eficiente da sociabilidade, o footing tinha hora certa para terminar. Faltando dois ou três minutos para as 22 horas, a praça estava lotada; passados dois ou três minutos das 22 horas, a praça estava vazia. Só poucos e pequenos grupos de rapazes permaneciam um tanto mais, comentando a noite, os flertes, os inícios de namoro. O fenômeno ocorria porque os pais coincidiam em marcar as 22 horas para as moças voltarem pra casa.
Quem conseguiu uma namorada, ou pelo menos um flerte, voltava alegre e feliz. Quem não conseguiu nada, voltava esperançoso de que da próxima vez tudo seria diferente. O mesmo acontecia com as moças que procuravam o par sonhado.
“Malandragem” (Cazuza / Frejat), com Cássia Eller
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=EOj0Tzo6C7Y[/youtube]
Todas as manhãs você vai até à padaria da esquina e compra dez pãezinhos. Volta depressa para casa, doido para comer aquela delícia quentinha e crocante com manteiga e um bom café acabado de passar.
Você tem confiança no dono da padaria, de quem é quase amigo, trocam sempre um dedo de prosa sobre futebol, mulher, política, custo de vida, os últimos acontecimentos. Por isso nunca se preocupa em conferir a quantidade de pães que lhe entregam dentro de um saquinho.
Um belo dia, fim de semana prolongado, você resolve fazer um churrasco em casa e encomenda cem pãezinhos. Quando vai apanhá-los, recebe dois sacos minguados. Ao regressar, resolve conferir e verifica que em cada saquinho havia apenas 10 pãezinhos.
Volta ao estabelecimento para reclamar e, estupidificado, fica sabendo que o dono da padaria está absolutamente dentro da lei e das normas regulamentares fixadas pela Anapandi (Agência Nacional do Pão Nosso de Cada Dia). Segundo tais regras, ele estava obrigado a lhe entregar de cada vez no mínimo 20% dos pãezinhos e cumprir a média mensal de fornecer 60% do que foi comprado .
─ Ora, ora, meu caro freguês, é assim também com a Anatel (Agência Nacional de Telempulhação) e as empresas de telecomunicações. Mas a partir de 1º de novembro tudo vai melhorar: vamos ter de entregar no mínimo 30% do que foi adquirido e manter a média mensal de 70%! (veja aqui)
Certa feita em Portugal, ao indagar se eles faziam muita piada conosco, como nós por aqui com eles, meu interlocutor respondeu prontamente: “E precisa?”
Não, não precisa.