Ao remexer nos meus discos, encontrei um CD do qual ainda nem havia tirado o invólucro. Lembrei-me de tê-lo comprado há algum tempo, em São Paulo, se não me engano na Livraria da Vila, num impulso de emoção e nostalgia. Já o tivera antes, quando do lançamento, num velho e bom LP, que acabei perdendo (provavelmente emprestei a alguém, que não me devolveu).
Trata-se da gravação ao vivo do espetáculo Brasileiro, Profissão Esperança, escrito ou organizado por Paulo Pontes, em sua segunda montagem, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, e direção de Bibi Ferreira, que fez à época (1974) um sucesso estrondoso no Canecão.
Dolores Duran e Antônio Maria são as personagens do show musical e através deles, de suas músicas e textos, somos levados a vida boêmia do Rio de Janeiro, na década dos anos 50. Ao que consta, Dolores e Maria sequer se conheceram, mas têm muito em comum, na paixão de viver, no horror à solidão, na busca incessante do amor, no gosto pela noite e pela bebida. Só poderiam morrer da mesma forma, fulminados pelo coração desmedido.
Antonio Maria foi casado com Danuza Leão, que se queixa de ter sofrido muito com o temperamento e o ciúme dele. Ela deixou Samuel Wainer, fundador, entre outros, do jornal Última Hora, para viver com Antonio Maria, então simples cronista do jornal do ex-marido.
Dolores Duran, bem morena e rechonchuda, era adorada pelos amigos e músicos da noite, apaixonava-se muito, namorava, mas sempre foi muito infeliz no amor.
Sobre ambos, posso contar dois episódios que cada um protagonizou com Vinicius de Moraes, que não são inéditos, mas que ouvi relatado com o sabor e a verve do próprio poetinha, e bem demonstram o seu jeito de ser e a sua generosidade.
Certa feita, Vinicius e Antonio Maria voltavam para casa pela orla do Rio de Janeiro, num carro conversível do segundo, quando o dia já amanhecia. Estacionaram o automóvel defronte da praia de Copacabana e ficaram a ver ao longe um grupo de velhinhos, já então adeptos do estilo de vida saudável, que resfolegavam e balançavam as carnes flácidas na ginástica à beira mar.
Antonio Maria encara o companheiro e o conclama:
— Poesia (era assim que tratava Vinicius)!
— Fala meu Maria (era assim que Vinicius tratava o “Menino Grande”)
— Vamos fazer aqui e agora um pacto definitivo: jamais faremos qualquer esforço físico desnecessário durante toda a vida!
Cumpriram religiosamente o prometido.
Em relação à Dolores Duran, a linda música que veio a se chamar Por Causa de Você, e se tornou um clássico, fora composta por Antonio Carlos Jobim para Vinicius colocar a letra. Ao ouvir a melodia executado pelo mestre Tom e com ela se encantar, Dolores apanhou um guardanapo e de enfiada escreveu a letra, que caiu como uma luva. Alguns dias depois, Vinicius reencontrou-se com Jobim, trazendo a letra já pronta anotada num papelucho guardado no bolso. Soube então pelo constrangido parceiro da letra feita, atropeladamente, por Dolores. Quis ouvi-la e ao final, rasgou a sua própria letra, sem mostrá-la ao Tom e disse:
— Fica com a da menina.
Reouvir agora o disco e reviver o espetáculo foi uma verdadeira delícia. Como sempre o trabalho de Paulo Pontes é meticuloso e exato, mesclando as músicas e os textos de cada qual, de modo a estabelecer um diálogo entre eles que vai num crescendo arrebatador.
Não obstante, lá pelas tantas, de um modo aparentemente desconexo, introduz numa fala de Paulo Gracindo o poema Cântico Negro, do poeta português José Régio. Mas quando Gracindo começa a dizê-lo, entendemos o porquê. O espetáculo até então se desenrola com destaque para as canções interpretadas magnificamente por Clara Nunes, apenas pontuadas por algumas intervenções sempre bem colocadas, mas breves, de Gracindo. É chegada então a hora do grande mestre fulgurar com a força do poema.
Já anotei que tenho restrições à maioria dos atores ou atrizes que se põem a declamar poemas, buscando encarnar uma personagem que não existe. A personagem é o próprio poema a ser dito (também não gosto dos termos “declamar” ou “recitar”, que me remetem às menininhas faceiras da “Batatinha quando nasce…”) no seu ritmo e na sua emoção próprios. Paulo Gracindo faz isso com destreza ímpar.
O poema Cântico Negro foi um dos primeiros que me levaram a um paroxismo de emoção, quando ainda ginasiano, em São Joaquim da Barra, ouvi-o ser dito por outro grande e inesquecível ator, Sérgio Cardoso. Tenho, ainda, uma gravação que adoro do poema, na voz do português João Vilaret, com a pronúncia típica lusitana. De tanto ouvir esses mestres, ouso afirmar, sem falsa modéstia, que digo o poema com alguma competência, melhor do que muita gente.
Pretendendo trascrevê-lo aqui, lembrei-me de que constava de um antigo livro sobre literatura portuguesa, de autoria de Massaud Moisés, de que me utilizava na escola e que guardo com carinho. Fui apanhá-lo na estante e outra emoção me apanhou. Havia me esquecido que o livro me fora presenteado pelo meu avô materno, figura encantadora, inteligente e autodidata, sobre quem ainda preciso escrever neste blog. Eis a dedicatória que ele me fez, mantidas a grafia e a formatação originais:
Ao meu querido neto,
of. esta magnífica obra
para que n’um futuro
não muito distante, adquira
uma bôa cultura, tão bôa, quanto a deste
admirável autor.
Com as bênçãos do
vovô
Tufy
15/5/967
Cântico Negro
José Régio
Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio (pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira)
Tanta riqueza numa única crônica… que maravilha!
Mas eu gostaria muito de me juntar ao Poetinha e Antônio Maria no pacto de jamais fazerem ginástica… rsrs É a cara do Vinicius!
Também adorei saber a origem da música “Por causa de você”. Sinto falta dessa gente toda, mas o Tom é sempre uma história à parte. Suas músicas demonstram perfeitamente os milagres, a magia, que os seres humanos podem alcançar no campo das artes.
E parece que o “livrinho do vovô” cooperou bastante na realização dos seus desejos para o neto… Um marco, sem dúvida.
Quanto ao Cântico Negro, talvez encontre repercussão em um grande número de almas: eu também gosto de ir pela minha própria estrada. Um general, diante de uma dificuldade na batalha, disse aos seus (mais ou menos isto): “Se não tiver caminho, a gente abre”. É bem por aí.
Essa do Vinicius olhando as pelancas e a velhice saltitando na praia e fazendo o pacto me lembra de uma outra história, essa num dos livros do Ruy Castro e sem a presença do Antonio Maria, substituído por um dos maiores cronistas desse país. Uma vez o Rubem Braga foi assistir ao show do poetinha, amigo de outros carnavais. No meio do show, o Vinicius, entusiasmado, olhando a plateia, declamou versos às mulheres e sentenciou: “Ah, nada melhor no mundo que comer um papo de anjo ao lado da mulher amada.” Sentado na plateia, Rubem Braga, não se conteve. Saído de um longo silêncio, resmungou à acompanhante ao seu lado: “Já está gagá. Muito melhor comer a mulher amada ao lado de um papo de anjo.”
Rockmann,
Muito boa esta do Rubem Braga, que eu ainda não conhecia. O Vinicius, acho que meio de sacanagem, tinha mesmo essa mania de falar em “comidinhas” para depois do amor. Vide o “Para viver um grande amor”. Na verdade ele era um bom gourmet (como você). Gostava da boa mesa e da boa bebida, mas não sei se cozinhava. Já o Rubem Braga é outras figura extraordinária, gozador, gentil, refinado, culto, um jornalista e cronista excepcionais. Não sei se você soube, quando os malucos do Collor, Zélia et caterva tungaram os ativos financeiros, o Rubem já estava muito doente (não sei se com leucemia ou um outro tipo de câncer) e havia esperança de um tratamento de ponta nos EUA. Toda a sua poupança, porém, ficou retida pelo plano dos malucos, e a burocracia criou mil problemas para a liberação. Alguns amigos se ofereceram para interferir a fim de conseguir a liberação ou até mesmo conseguir dinheiro para o tratamento, mas o Rubem recusou terminantemente qualquer tipo de privilégio. Achava que o dinheiro era dele e tinha que lhe ser reconhecido pelos meios legais o direito de usá-lo. Acabou ficando no Brasil e aqui morrendo, sem o tratamento que poderia ter pelo menos lhe prolongado um pouco mais a vida ou minorado o sofrimento. Já não se fazem homens assim…
Sou muito novo pra sentir saudades, mas juro que quando ouço falar de Vinícius, Antonio Maria, Tom, Dolores Duran, etc.. eu sinto uma saudade do diabo…
Acabei de dar um belo polimento em minhas lembranças… Amo demais esse espetáculo!