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Meu maior medo

 

 

solidão

 

“Meu maior medo é viver sozinho e não ter fé para receber um mundo diferente e não ter paz para se despedir.

Meu maior medo é almoçar sozinho, jantar sozinho e me esforçar em me manter ocupado para não provocar compaixão dos garçons.

Meu maior medo é ajudar as pessoas porque não sei me ajudar. Meu maior medo é desperdiçar espaço em uma cama de casal, sem acordar durante a chuva mais revolta, sem adormecer diante da chuva mais branda.

Meu maior medo é a necessidade de ligar a tevê enquanto tomo banho. Meu maior medo é conversar com o rádio em engarrafamento. Meu maior medo é enfrentar um final de semana sozinho depois de ouvir os programas de meus colegas de trabalho. Meu maior medo é a segunda-feira e me calar para não parecer estranho e anti-social. Meu maior medo é escavar a noite para encontrar um par e voltar mais solteiro do que antes.

Meu maior medo é não conseguir acabar uma cerveja sozinho. Meu maior medo é a indecisão ao escolher um presente para mim. Meu maior medo é a expectativa de dar certo na família, que não me deixa ao menos dar errado. Meu maior medo é escutar uma música, entender a letra e faltar uma companhia para concordar comigo. Meu maior medo é que a metade do rosto que apanho com a mão seja convencida a partir com a metade do rosto que não alcanço. Meu maior medo é escrever para não pensar.”

 

Fabrício Carpinejar

Carpinejar 3

 

 

 

Da arte de dar com uma mão e tirar com a outra

 

        Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

Esta arte não é equivalente à “Lei de Gérson”, que gostava de tirar vantagem em tudo. Felizmente, porém, Gérson só tirava vantagem das equipes estrangeiras de futebol que jogavam contra o Brasil.

A arte de dar com uma mão e tirar com a outra, não é dar mamão com uma mão e tirar mamão com a outra mão. Mas algumas vezes pode ser que sim. Você dá um mamão com uma mão e tira um mamão com a outra. Nestes casos, convém tirar o mamão maior. Próxima desta arte é a outra de uma mão lava a outra, e as duas lavam a cara.

Dar com uma mão e tirar com a outra é o que fazem quase sempre todas as pessoas, mas algumas fazem mais do que as outras, e poucas não dão nem com uma mão nem com as duas, mas tiram com ambas, e tirariam com uma terceira, se tivessem uma terceira mão. É uma espécie de troca. Para dar com uma mão e tirar com a outra, você precisa ser lento com uma mão e rápido com a outra. Só assim o sujeito que recebe de uma mão não percebe que se está lhe tirando com a outra. Quando ele se dá conta disso, você já deve estar longe, abanando-lhe a mão.

Se você for canhoto, convém dar com a mão direita e tirar com a esquerda, porque evidentemente a mão esquerda é mais esperta e ligeira do que a direita. E vice-versa, se você for destro. Se então for ambidestro, pode deitar e rolar.

Também é costume dar com os pés, e tirar com as mãos ambas. De qualquer maneira, não dê o braço a torcer, nem a mão à palmatória.

Há comerciantes que são muito hábeis em dar com uma mão e tirar com as duas. Para isso, eles falam em custo e benefício, e esses trecos de engabelar os trouxas. Quando vão vender uma mercadoria nunca dizem que a tal mercadoria custa quinhentos reais, mas sim quatrocentos e noventa e nove reais. Se for à prestação, eles espicham a prestação em sessenta vezes, e você paga cinco ou dez vezes mais o valor da coisa, que em geral não tem valor nenhum. Porque os juros estão embutidos. Os banqueiros então não dão nem com uma mão nem com a outra. Ao contrário, tiram com as quatro, porque os banqueiros têm quatro mãos, são quadrúmanos.

Quando se usava balança, a arte era botar os dedos, ou a mão, disfarçadamente, num dos pratos da balança, para o freguês ver que a mercadoria pesava mais do que os pesos no outro prato. Eram as balanças “Fiel”, fiel para o negociante. Por isso também se fala em “dois pesos e duas medidas”. A Justiça também pesa na balança, mas pesa menos para os ricos do que para os pobres. E se os pobres reclamam, ela está com a espada na mão para cortar qualquer reclamação.

Os manetas têm muita dificuldade em dar com uma mão e tirar com a outra. Mas podem valer-se das mãos ou dos braços ortopédicos. Ou de um gancho, como o Capitão Gancho.

Dando com uma mão e tirando com a outra, pelo menos você empata. Porém, se for hábil em dar com uma mão e tirar com a outra, usando de todos os recursos desta arte que lhe estou ensinando, ganha sempre. Empatar não é bom negócio.

Não ande com uma mão atrás e outra adiante. Ande com as mãos à frente para poder dar com uma e tirar com a outra, ou com ambas. Andar então com as duas mãos para trás é péssimo. Você fica indefeso, e tudo lhe é tirado.

É dando que se recebe, dizem alguns. Recebe o quê, depois de dar? Geralmente, você recebe um coice. Daí porque os motoristas costumam dizer: “Ou dá ou desce”.

Você pode dar uma volta, que é de graça. Mas se você der uma volta e voltar fica no mesmo lugar, e não vai em frente. Trate de dar com uma mão e tirar com a outra. E não tire a mão daí. Elas gritam, as mulheres nas quais você bota uma mão, ou as duas, mas acabam deixando.

E já que lhe ensinei essas regras de dar com uma mão e tirar com a outra, vou comer o meu mamão. Coma você também o mamão que tirou com uma mão para dar em troca um limão azedo.

 

dar com uma mão

 

 

Teodureto

 

        Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1 

 

 

 

 

 

Teodureto quebrou um dedo, quando lhe desabou sobre a mão a janela de guilhotina. Saiu urrando de dor, e dançando pela casa. Foi ao médico, que lhe engessou o dedo e ficou dedo duro. Mas não era.

Quando conheceu Sofia, ela lhe perguntou, rindo:

— Teodureto não é nome de remédio?

Os remédios curam ou não curam. Alopatia, homeopatia, benzeções e garrafadas. Tosse? Tome Bromil.

O que não tem remédio, remediado está.

O remédio é amar, mas amar também dói.

Teodureto amou Sofia, mas fie-se em quem só fia.

Droga para perda de memória é fosfato. 

Vestido de fraque, Teodureto foi falar com o pai de Sofia 

— Peço-lhe autorização para namorar Sofia, noivar e casar.

O homem tinha muitos cuidados com a filha e lhe perguntou severamente:

— O senhor o que faz?

— Por enquanto, nada.

— Pois nade em mar crespo, e volte salgado.

Vendo o triste pastor que assim lhe era negada a sua pastora, começou de servir outros sete anos, dizendo, “mais servira se não fora para tão longo o amor tão curta a vida” 

Com o dinheiro que possuía, abriu uma farmácia, botando espetado na porta o marinheiro carregando um grande peixe, da Emulsão de Scott.

Remédio vai, remédio vem, ia fazer injeções nas bundas fofas das madamas, espetando-lhes a agulha e depois soprando.

Enquanto isso, Sofia ria.

Quinze anos depois, Teodureto estava gordo e calvo e, ao luar da noite, roía o queijo da Lua.

Não casou, e envelheceu.

E, ao invés de descobrir um remédio para lembrar, inventou outro, para esquecer.

No esquecimento, todas as Sofias andam de braços dados com as Briolanjas.

As mulheres são como maçãs nas gavetas: secam e murcham.

Lembrai-vos disso, meninas: o amor é para dar-se.

 

Emulsão de Scott

 

 

De mãos dadas

 

 

Selminha e Carpinejar, dois textos que se casam…

 

   Selma Barcellos

Selma 2 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Partilhei com aquele menino alumbramentos, espantos e descobertas da infância. Só ele podia entrar nas minhas brincadeiras. Até me atirar mamonas.

Volta e meia, sem que entendêssemos por quê, estávamos de mãos dadas, olhando fixamente um para o outro.

Um dia, desenhei a lápis o contorno de duas mãos no mármore do degrau da varanda e escrevi em letras microscópicas: “Vamos ficar sempre assim?”.

Claro que a mãe leu, que me fez apagar tudo, que me inquiriu sobre o “assim”, proibiu o menino de brincar lá em casa…

Mudou-se algum tempo depois. Adolescemos em bairros distantes.

Fui encontrá-lo anos mais tarde, ao buscar o filho na escola onde eu lecionava.  

_ Selma, lembra de mim? – perguntou inseguro, em meio à pequena multidão que se formava à saída das aulas. Assenti com um sorriso, trocamos breves palavras. 

Vontade de dizer o quanto aquele imenso quintal perdera a graça sem nós… Não consegui. 

Ontem, ao achar esta crônica dobradinha na caixa de delícias (cultivo a mania), revi o menino, nossas mãos, o jardim. E disse.

 

 

ANA PAULA 

 

Só a conheci quando tinha seis anos. Não sei o que anda fazendo. Nem sei como é. Lembro que era gordinha, charmosa, e muito educada.

Cabelos lisos, negros, com cheiro de goma misturado à flor de laranjeira.

Nossa brincadeira predileta consistia em remar numa banheira branca encalhada no pátio da creche Patinho Feio. Eu tapava um olho como pirata e a protegia dos canhões inimigos (as mamonas da gurizada). Desde ali, eu pisco quando falo a verdade. A verdade fica parecendo uma mentira, não tem jeito.

Será que trabalha num banco, casou, tem filhos? Será que lembra de mim?

Pensava que a namorava no jardim de infância. Porque segurava minha mão para entrar em aula, almoçar, escovar os dentes. Em fila indiana, do mais baixo para o mais alto. A sorte é que tínhamos a mesma altura e ficávamos próximos. Lado a lado. Quando segurava a minha mão, me considerava um eleito. Não percebia que todas as crianças eram obrigadas a segurar a mão do seu vizinho. Acreditava que segurava minha mão porque me desejava.

Um dia, você me falou que a gente deveria encontrar um tesouro para a nossa brincadeira. Para soar mais real. Não duvidei duas vezes: roubei colares de minha mãe, embrulhei em uma folha de ofício e entreguei o embrulho como pedido de casamento.

Escrevi um bilhete

“Para casar comigo, meu tesouro.”

Tenho comigo o papel, um escapulário amassado. Relendo, vejo que escrevi:

“Pra cazar com eu.”

Como há pares que pisam nos pés na hora de dançar, eu pisei nas palavras.

Natural para um menino desajeitado, tímido, aprendendo a escrever. Foi meu ato de maior coragem.

Mas sua mãe descobriu o presente, minha mãe descobriu o sumiço de suas joias. Foram devolvidas inclusive com a cartinha. Houve reunião na escola. Não mais a vi, retirada às pressas da turma pela convivência perigosa comigo.

Queria agradecê-la: nunca me arrependi, nunca deixei de me roubar para sustentar um amor. Melhorei apenas um pouco o português.

 

Beijo

Fabrício Carpinejar, o pirata

 

 

Edição Extraordinária

 

 

 

 réveillon 2

 

 

O infausto ano de 2012 foi marcado por grandes tragédias, como o tsunami corintiano no Japão, a derrocada dos verdes que se poluíram no Campeonato Brasileiro ― o evento mais importante do país, após o Carnaval ―, a condenação injusta e arbitrária dos réus do inexistente Mensalão, a reeleição do tirano Obama nos EUA, a famigerada “Primavera Árabe”, que provocou a queda de sublimes líderes que com tanto esforço e em pouquíssimo tempo de governo conduziam à grandeza aqueles pobres países, sem dizer da incomensurável decepção com o fiasco do fim do mundo em 21 de dezembro último e o frustrante adiamento para o longínquo ano de 2016 (imagina, depois da Copa!) da entrada em vigor do revigorante (Des)Acordo (T)Ortográfico.

No nosso deserto de homens e ideias, depois de Millôr Fernandes (esperava-se o dilúvio), Ivan Lessa, Chico Anysio, morreram de forma absolutamente incompreensível, na flor da idade e na plenitude da lucidez, outros ícones brasileiros como Oscar Niemeyer e Dona Canô, e até mesmo os jovens e promissores poetas Décio Pignatari e Lêdo Ivo!

Diante desse cenário dantesco, pouco se podia esperar e muito havia a temer da noite de réveillon.

Eis o resumo de alguns dos fatos lamentáveis apurados pelos nossos solertes repórteres de plantão.

Por volta da meia-noite, o pedreiro Pedro, depois de beber alguns copos de cerveja e de vinho “Chapinha” com amigos e parentes, empunhou a faca que havia afiado à tarde e avançou na direção de seu sogro, o idoso Fortunato, sentado à cabeceira. Entregou-lhe a arma branca para que ele destrinchasse o peru, morto de véspera depois de ingerir cachaça, enquanto os convivas, indiferentes ao ato insano, estouravam as rolhas de plástico de diversas garrafas de cidra e cantavam “Adeus ano velho, feliz ano novo…”.

Pouco antes, o estudante João Paulo, na companhia da namorada Maria da Graça, foi flagrado por mais uma “Operação Lei Seca” quando dirigia em baixa velocidade o veículo Gol, de propriedade da Paróquia de São Genaro. Submetido ao teste do bafômetro, confirmou-se que não havia ingerido bebida alcoólica, como afirmava. Depois de ser cumprimentado efusivamente pelos policiais, exibiu-lhes sua habilitação e os documentos do carro, esclarecendo que estava conduzindo o automotor que não lhe pertencia porque o Padre Carmelo, que se achava no banco traseiro, com o cinto de segurança atado, havia exagerado um pouco na dose de vinho no momento da Consagração na missa que acabara de rezar e lhe pedira para dirigir. O vigário, que ia cear e celebrar o noivado do jovem casal na residência dos pais de moça, confirmou integralmente a versão do rapaz.

Por último, na velha e ilustre casa do Dr. Pelópidas Azeredo Filho, sita na Rua das Acácias, o espoucar dos fogos de artifício acordou sua bisneta Manuela e irritou o cachorro da família que atende por “Neguinho”, denominação politicamente incorreta que lhe deram por causa da cor do seu pelo. Depois de sair na varanda e ladrar, protestando contra a barulheira, ainda maior com o soar dos sinos e das buzinas dos automóveis, o cão voltou para o interior da residência, saltou sobre Manuela e se pôs a lambê-la. Em seguida, a menina e o cachorro passaram a brincar e correr pelos cômodos, sem que os familiares nada fizessem.

Esperamos e desejamos a todos os leitores que o ano de 2013 que se inicia, apesar dos seus algarismos finais preocupantes (menos para o Zagallo), seja bem melhor do que o funesto 2012.

 

 

Trocando passos

 

 

 Selma Barcellos

 

 

 

 

 

 

 

 

Lindalva tremia só de imaginar que pudesse ser um estorvo na vida dos filhos. Daí que vivia sem desperdícios, esticando como podia a modesta pensão que Inércio lhe deixara, guardando o dinheiro que ainda entrava da venda das toalhas pintadas à mão, barrinhas de crochê, tudo muito caprichado, by Linda. Achava tão chique assinar assim…

Anos a fio e a tinta, encomendas dobrando nos dias das mães e natais, Lindalva seguia batalhando, tecendo seu pé-de-meia e, na casa própria que a duras penas ajudara a pagar (Inércio não era chegado a um batente), ainda encontrava forças para receber filhos e netos para a lasanha dos domingos.

O falecido fora um bom pai. Nada faltou aos meninos, é certo. Mas, para Lindalva, a tal vida a dois não passara de um filme de quinta, uma fita esquecida na máquina de um embolorado cinema, rodando ininterruptamente.

Lindalva adorava dançar. Vivia cantarolando “um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”, esperando que Inércio a tirasse para dançar, ao menos uma vez, na cozinha que fosse, ao som mesmo daquele rádio horroroso em cima da geladeira, bandeirinha do time presa na antena fazia anos.

Jogo jogado, prorrogação quase, Lindalva começou a cobrar um pouco mais da vida. Deu de se olhar no espelho, restinho de vaidade pulsando tal qual as tantas veias que insistiam em lhe tatuar as pernas. E resolveu tirá-las do mapa. Vaidade ou não, merecia. Tanto sacrifício, privação, noites em claro para dar conta das encomendas, poupando, guardando… Marcara dia e hora. Avisara aos filhos.

Mas havia um sonho no meio do caminho. Um desejo sublimado que aquela poupança de tantos anos tinha por obrigação realizar, sob pena de arrependimento sem volta. Até porque não haveria tempo hábil para recomeçar do zero, amealhar tudo de novo. Pensou. Pesou. Decidiu.

Deu-se de presente uma festa. O acalentado baile de seus 70 anos. Mandou florir o salão do pequeno clube do bairro, convidou poucos e bons amigos. À meia-noite fez um sinal para o músico, colocou-se no centro da pista. Sob aplausos, com um partner de aluguel,  dançou aquele tango tantas vezes ensaiado na solidão do quarto. Flor vermelha nos cabelos, vestido bordado, sandálias altas. Tudo muito caprichado, by Linda.

Num único instante, ainda que as pernas não estivessem lá essas maravilhas, dançou por uma vida inteira. Resgatando todas as festas e prazeres que o destino implacavelmente lhe negara, Lindalva nunca foi tão feliz.

 

P.S.: A personagem é real e vai bem, obrigada. Não mexeu até hoje nas veias bailarinas, mas aquela festa com direito a tango ficou na história. Se lhes interessa, o vestido dela era verde como seus olhos, já nasceu o primeiro bisneto, e tudo me foi relatado por uma de suas amigas presentes. Apenas o nome do falecido é ficção. Pelo conjunto da obra, merecido. (novembro/2008)

 

Para Lindalva, pelos 74 recém-completados. A menina ainda dança.

 

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Miopia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

  

“Ele queria ver mais as coisas, todas, que o olhar não dava”.

Guimarães Rosa –  Manuelzão e Miguilim

 

 

“D-E-G-H”

“Parabéns!” – Disse o oculista à garota.

Ela não comemorou. Sua irmã um pouco mais velha acabara de ganhar óculos. Seu pai usava óculos. Sua mãe não usava por teimosia, mas era míope. Depois da consulta, ela passou a ser a única que enxergava diferente.

Inconformada, pediu aos pais um par de óculos. Eles sempre respondiam caçoando da garota:

“Para você, só óculos escuros!”

Ela não se conformava e todo ano, quando a irmã voltava ao médico, aproveitava a consulta e pedia para que sua visão fosse medida novamente. Enquanto o grau de sua irmã aumentava, a visão dela continuava perfeita. Acertava sempre todas as letras. Algumas vezes pensou em errar de propósito, mas nunca teve coragem pois tinha medo de acharem que ela não havia sido alfabetizada corretamente e a obrigarem a frequentar aulas particulares.

Além dos óculos, ela queria colocar gesso e aparelho.

O gesso conseguiu. Rompeu o ligamento do tornozelo sete vezes. Não de propósito, já que depois da primeira torção viu que aquilo doía pra diabo. Como uma praga, a cada passo em falso, seu tornozelo voltava a parecer uma bola de tênis. Piorou quando passou a usar salto alto. Sentiu-se uma idiota por não conseguir andar tão bem quanto as amigas. Mas a falta de elegância tinha a explicação que tanto a orgulhava.

O aparelho nos dentes ela também nunca conseguiu. Algumas vezes colocava um clipe de papel esticado na boca e contava para todos na escola que havia colocado aparelho. Na época, os meninos ficavam encantados. Diziam que meninas de aparelho beijavam diferente. Seu primeiro namorado usou aparelho, e quando ela o viu comendo coxinha desistiu de consertar seus dentes quase perfeitos.

Um dia, a garota que agora já era mulher, pegou uma forte conjuntivite. Sua vista ficou embaçada por mais de um mês. No começo, ela achou graça e não foi ao médico. Depois, entrou em desespero. Tudo o que ela costumava ver com nitidez estava embaçado e sem definição.

Decidiu voltar no oculista que cuidava de seus olhos perfeitos há mais de vinte anos. Mal conseguia ver o semblante envelhecido do médico. Ele quase não a reconheceu.

Fim do tratamento. Voltou ao retorno da consulta, pois sua vista continuava embaçada. Ainda desesperada, perguntou ao oculista:

“Não vou sarar nunca?”

Neste momento, ele lhe deu o presente que ela sempre esperou:

“0,75 de miopia”

Ela sorriu e mesmo com as pupilas dilatadas foi à ótica mais próxima, comprou os óculos do seu sonho.

Agora ela enxergava como todos os membros da família.

 

Bell Gama – agosto 2008

 

Avenida Brasil X Avenida da Saudade

 

 

                                                                       

 

Em Ribeirão Preto, a Avenida Brasil encontra-se com a Avenida da Saudade, na qual se situa o velho cemitério.

Não é uma rima, tampouco uma solução, mas não deixa de ser emblemático.

Enquanto a Avenida Brasil continua um sucesso de crítica e de público, propagando-se pelas cidades do país, a Avenida da Saudade já teve melhores momentos e vai sendo esquecida, como a maioria dos defuntos no cemitério. Tanto que se precisa de um feriado para que os finados sejam lembrados. Mas quem aguenta um feriadão sem ir para a praia e se enterrar na areia?

A “saudade” já foi tida e havida como patrimônio nacional, melhor dizendo, da língua portuguesa, que segundo se dizia era a única a ter uma palavra própria para designar esse estranho sentimento.

Não mais temos tempo de sentir saudade, saudade é coisa de velho (jovem também tem saudade, mas apenas no slogan), é pra frente que se anda, sai da frente que atrás vem gente, o passado é uma roupa que não nos serve mais, o futuro nos espera!

Ao fim e ao cabo, a Avenida Brasil sempre desemboca na Avenida da Saudade.

 

 

                                                                               Finitude 

 

 

                                               No dia de finados

                                               lá se vão os semoventes

                                               com ares penitentes

                                               em visita aos residentes.

 

                                               Pelas aléias

                                               dos cemitérios

                                               sérios semblantes

                                               flores sequiosas

                                               que murcham ao sol

                                               velas vacilantes

                                               ardendo em prol

                                               preces e lamentos

                                               aos quatro ventos.

 

                                                Melhor deixar

                                                o morto em paz

                                                absorto

                                                no corpo que se desfaz.

 

                                                O morto mudo

                                                liberto

                                               enfim de tudo.

 

 

 

O anjo caído

 

 

    Selma Barcellos 

selma_couri_barcellos

 

 

O dia fatídico da profecia dos maias se aproxima,

mas para o cirurgião amigo da Selma, tanto faz…

 

 

 

 

Era 2012 ou nunca, buzinaram-lhe os maias. Desfilaria na Sapucaí.

Amigo querido, cirurgião renomado, incumbiu o anestesista da equipe de escolher a escola e a fantasia, frisando que “só não queria aquela que homenageava iogurte com alas de bactérias que organizam o intestino.”

Chegado o dia, ansioso, coração “batendo mais que as maracas, descompassado de amor”, partiu para se arrumar na casa do colega folião, repassar o samba, tomar um uisquinho desinibidor…

Porém, ai, porém. O anfitrião avisou que não ia beber por “questão de  segurança”. Concordou. Longe dele bancar o chato. A sunga (branca!) de seu Anjo veio trocada, tamanho P. Se puxava na frente, faltava atrás. Sentiu-se praticamente um Gabeira de cache-sex. Os pés até entraram nas sapatilhas. Mas os velhos e torturantes joanetes, não. Pisou na avenida, quebrou-lhe a asa esquerda e o maldito ferrinho da armação começou a feri-lo “à altura da escápula”. Passou o desfile  inteirinho apoiando a traquitana. Na moral. Como assim, a escola perder pontos em fantasia e adereços por causa dele?

Escola evoluindo, um componente bebum resolveu crocodilar sua mulher e “evoluir” ao redor dela. Fingiu que não viu, fazer o quê. Deselegante um arranca-rabo diante da multidão e das câmeras. Como assim, a escola perder pontos em evolução por causa dele?

Na dispersão, já a caminho da condução fretada, passou por uma área estranha com gente esquisita e ouviu dos rapazes alegres: _ Beleza de reguinho! Acelerou o passo. Bufava. Derretia.

_ Caríssima, que tal minha estreia na avenida? – pergunta traumatizado.

Tento filosofar, dizendo-lhe que são dores e delícias do carnaval como, de resto, da vida. Conto sobre nosso carro novinho abalroado por trás por um gringo bêbado, sem carteira e sem condição de descer para dialogar, o que nos obrigou a fazê-lo com sua acompanhante, uma afroMinnie gigantesca – a visão do inferno – , igualmente bêbada. A criatura só balançava o laçarote de bolinhas sobre a cabeleira progredida e dizia: “Xês – hic! – podem me telefonar que – hic! –  tudo será resolvido.”

_ Obrigado, Selminha, mas nada se compara a desfilar com os joanetes doendo, a asa quebrada e a bunda de fora. E a escola caiu, sabia?

Ô dó.

 

 

 

 

 

A vida começa e acaba todos os dias

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

8:00 – O despertador toca. Desligo com vontade de dormir. Não posso.

8:15 – Escovo os dentes e vejo que há um novo vazamento no banheiro. Interfono para o porteiro. “Problema no prédio todo. Estamos sem água”. Esbravejo. Fico puta. Penso em desmarcar todos os compromissos e voltar para a cama. Não posso.

8:30 – Tomo um café, fumo um cigarro.

8:30 – Ligo o computador, checo os e-mails. Revejo a lista de itens por fazer. Começo pagando o boleto da Receita Federal (preciso fazer a segunda via do passaporte). Transfiro o dinheiro para a conta de um locador de apartamentos no Rio de Janeiro (Eba! Vou ver o mar em dezembro). Dou parabéns aos aniversariantes no Facebook. Respondo a algumas pessoas…

10:00 – A massagista chega para me apertar na drenagem linfática. O batuque constante da reforma do apartamento de cima me irrita.

11:00 – Recebo um telefonema com um briefing para um roteiro.

11:30 – Recebo a proposta de um freela na próxima semana. Minha agenda está disponível (mais trabalho!).

12:00 – Ligo para o cliente do primeiro roteiro para tirar dúvidas. Acho que não vai ser difícil e marco para fazer as unhas (há mais de um mês não consigo ir). Começo o roteiro.

12:30 – Recebo por e-mail mais um roteiro a ser feito. Penso em cancelar as unhas.

12:50 –  Com o roteiro semi-pronto, almoço um lanche rápido no Shopping, recuso o convite de almoçar com a irmã (tenho que trabalhar).

12:55 – Ligo para os meus pais. Estão bem. Digo que amanhã vou para Ribeirão. Preciso vê-los (não volto para lá há quase dois meses).

13:20 – Faço as unhas.

14:00 – Termino e volto para casa.

15:00 – Reviso o roteiro e envio para o cliente. Hora de começar o próximo

15:45 – Recebo um e-mail do amigo GPeteanH “Recebi esse e-mail agora e estou muito triste. Como não estou em São Paulo, resolvi repassar a triste notícia… o Violla faleceu.”  Choque…

 

PAUSA – Marcelo Violla era um amigo. Um grande amigo dos meus amigos.  Portanto, meu amigo. A última vez que nos vimos foi há duas semanas no encerramento da peça “Meio Lá, Meio Cá”. Junto com Murilo Inforsato e GPeteanH, ele participou da criação da peça durante quase dois anos. Nos encontramos várias vezes. Trabalhamos juntos. Ele foi o nosso iluminador no “Prosa Afiada Conta Vinícius de Moraes”. Era um cara talentosíssimo. Trabalhava para várias companhias teatrais. Entendia muito de luz e de toda a cena teatral. Muito querido no meio das artes. Um dos mais criativos técnicos que vi trabalhar. Junto com LosbobosBobos estava cheio de planos. Estava investindo em fazer trilhas, queria outros caminhos. Na ocasião que nos vimos pela última vez eu estava sem ingresso para a peça deles. Ele me deu um de seus ingressos destinado à sua família e me disse “você vai sentar junto com a minha família”. Eu brinquei: “hoje sou team Violla”. Vi sua mãe, sobrinhos, irmã. Acho que as últimas coisas que falei foram: “Obrigada” “Tá feliz?” e “Parabéns”.

 

15:46 – Ligo para o Murilo para saber como ele está, descobrir notícias. Ele não me atende.

15:47 – Ligo para o GPeteaH com o mesmo objetivo, ele também não me atende. Sinal de que as coisas não vão bem.

15:48 – Tento descobrir algo pelo Facebook. É verdade. As pessoas começam a se manifestar.

15:50 – Decido ligar para a Laura, mulher do Murilo. Ela me conta toda a história. Não se sabe a causa da morte. Violla simplesmente foi encontrado morto na rua. Choque. Murilo está bem, em choque. GPeteaH está tentando ficar bem. Os amigos estão se mobilizando para falar com a família. Nada se sabe sobre velório. O corpo dele ainda está no hospital.

16:00 – Divido a triste notícia com minha irmã.

16:10 – Ligo de novo para o Murilo. Desta vez, converso com ele. Tudo muito triste. Muito súbito. Muito difícil de descrever. Tento avisar outros amigos em comum, troco algumas mensagens. Fico sem ação.

16:20 – Tento me concentrar no segundo texto a ser entregue. Resolvo fazer somente um rascunho. Nada deve ser lido, entregue hoje. Não dá. Fumo, tomo café, volto para o computador, revejo as fotos do Violla. Fico num ciclo doido pensando no que devo pensar, pensando no que devo dizer, pensando no que devo fazer….

 

PAUSA

 

18:24 – Recebo uma mensagem de texto no celular: “Queridos, a Manu chegou. Cheia de saúde tanto que já está mamando. Estamos no hospital São Luiz. Obrigado pelo carinho, beijos da Rê, Cauê e Manu”. A filhinha da Rê nasceu!!!!!! Bem! Saudável! Linda! Quero visitar! Quero pegar no colo! Quero…

18:25 – Repasso as notícias. Checo com amigos mais próximos como está a Renata. Ela está bem, um pouco tonta, teve que fazer cesárea. Decido que é melhor não ir vê-la hoje. Muita notícia boa para ela. Precisa descansar para dar leite para a Manu.

22:45 – Penso no Violla que se foi. Na linda Manuela que chega.

 

 

Bell Gama

Outubro de 2012

 

 

 Marcelo Violla (de verde) junto com a trupe do “Prosa Afiada”

 

OBS – Pensei muito antes de escrever esse texto. Mas, todos os amigos de Violla estão fazendo questão de homenageá-lo deixando por escrito nossa gratidão por sua existência. Essa é minha singela homenagem. Hoje não tem luz no palco. Tem estrela nova no céu. #RIPViolla

Eu também não poderia deixar passar em branco o nascimento da querida e esperada Manuela, filha da minha querida amiga Renata Ferraz e do Cauê Dias. Sou madrinha de casamento deles. Sou fã do amor deles. Sou fã de tudo que eles fazem. Com a Manu, o orgulho é ainda maior. Tudo de melhor

 

Cauê, Renata e Manu logo após se encontrarem pela primeira vez (roubei a foto da mamãe)