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Samba do Adoniran

 

 Ernesto Paulelli com a partitura do “Samba do Arnesto” 

Arnesto (Foto de Leonardo Soares-Estadão)

 (Foto de Leonardo Soares/Estadão)

 

 

Eles se conheceram nos idos de 1938, nos estúdios da Rádio Record, onde ambos trabalhavam.

 — Muito prazer, meu nome é Ernesto Paulelli.

— Ernesto? Mas Ernesto não existe! Seu nome é “Arnesto”.

Algum tempo depois, Adoniram disse ao já então amigo:

— Arnesto, você sabe que o seu nome dá samba?

Um dia lhe apresentou o samba, que se tornaria um dos seus maiores sucessos.

O Arnesto sempre foi um gentil-homem, porém nunca convidou Adoniran e o resto do pessoal para um samba em sua casa (aliás, ele morava na Mooca e não no Brás). E se tivesse convidado, jamais lhes daria o cano.

Mas não teve jeito. Ficou com a má fama.

Um dia reclamou com Adoniram, que lhe respondeu com a voz rouquenha:

— Arnesto, se não tivesse mancada, não tinha samba!

Conformou-se, e seguiram grandes amigos.

Adoniran se foi em 1982 e agora convidou o amigo Arnesto para um samba, que desta vez não será no Brás, mas no Paraíso.

 

 

“Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa), com ele

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=plOezZ6936Y&hd=1[/youtube]

 

 

Um samba no Bexiga

 

 

E por falar em hospital…

 

“Um Samba no Bexiga” (Adoniran Barbosa), com ele e Elis Regina se matando de rir

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=JjrrE0G03nI[/youtube]

 

Domingo nós fumo num samba no Bexiga

Na rua Major, na casa do Nicola

À mezza notte o’clock

Saiu uma baita duma briga

Era só pizza que avuava junto com as braxola 

Nóis era estranho no lugar

E não quisemo se meter

Não fumos lá pra briga, nós fumo lá pra come

Na hora “h” se enfiemo debaixo da mesa

Fiquemo ali, que beleza, vendo o Nicola brigá

Dali a pouco escutemo a patrulha chegá

E o sargento Oliveira falá:

“Não tem importânça,

Vou chamar duas ambulânça.

Carma pessoá,

A situação aqui tá muito cínica.

Os mais pior vai pras Crínica.”

 

 

Tabuame

 

 

“De tanto levar frechada

do teu olhar

Meu peito até parece sabe o quê

Tálbua de tiro ao Álvaro

Não tem mais onde furar (não tem mais)”

(Adoniran Barbosa, “Tiro ao Álvaro”)

 

“Cada tálbua que caía,

Duia no coração,”

(Adoniran Barbosa, “Saudosa Maloca”)

 

 

SAUDOSA-MALOCA

 

 

                                                              TABUAME

 

                                                 As Tábuas da Lei

                                                 A tábua sincrônica

                                                 A tábua de logaritmos

                                                 A tábua de ressonância

                                                 A tábua de matéria.

 

                                                 A tábua de marés

                                                 A tábua corrida

                                                 A tábua rasa

                                                 A tabuada

                                                 As tábuas do caixão.

 

                                                 Eis a nossa condição:

                                                 levar tábua da vida,

                                                 sem tábua de salvação.

 

 

 

Adoniran 103 anos

 

 

 Adoniran e eu 2

 

 

Se estivesse vivo, João Rubinato teria completado ontem, dia 6, 103 anos.

Morto, é a prova viva de que a profecia de Vinicius de Moraes — que perdia o amigo, mas não perdia a piada — era mesmo só um chiste: São Paulo não é, nem jamais foi o túmulo do samba.

João Rubinato não é nome de sambista. Então ele pegou o nome de um amigo e o sobrenome de outro e criou o personagem Adoniran Barbosa (em que de fato acabou se transformando), cujo tipo físico, de chapéu, paletó, gravatinha borboleta e a voz roufenha foi inspirado em outro personagem cômico que ele encarnava com muito sucesso, o Charutinho.

Como todo gênio, criou uma língua própria para expressar o sentimento da sua gente e o seu universo, um misto de italianês com paulistanês, com uma sintaxe peculiar e adorável, e expressões inefáveis, como “tiro ao álvaro”, “a situação aqui tá muito cínica”, “nóis viemo aqui pra beber ou pra conversar?”, e até uma iguaria, “torresmo à milanesa”, entre tantas outras. Com relação a esta última, da canção do mesmo nome em parceria com Carlinhos Vergueiro, este lhe indagou se existia aquele tipo de torresmo, ao que lhe respondeu que nunca tinha visto nem comido, mas que devia ser muito gostoso, além do que rimava com Tereza…

 

O enxadão da obra bateu onze hora

Vam s’embora, João!

Vam s’embora, João!

O enxadão da obra bateu onze hora

Vam s’embora, João!

Vam s’embora, João!

 

Que é que você troxe na marmita, Dito?

Troxe ovo frito, troxe ovo frito

E você beleza, o que é que você troxe?

Arroz com feijão e um torresmo à milanesa,

Da minha Tereza!

 

Vamos armoçar

Sentados na calçada

Conversar sobre isso e aquilo

Coisas que nóis não entende nada

Depois, puxá uma páia

Andar um pouco

Pra fazer o quilo

 

É dureza João!

É dureza João!

É dureza João!

É dureza João!

 

O mestre falou

Que hoje não tem vale não

Ele se esqueceu

Que lá em casa não sou só eu

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=RF480dVk_Qw[/youtube]

 

 

Como dizia Manuel Bandeira, na sua antológica Evocação ao Recife:

 

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros 

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada.

 

Adoniran não teve educação formal, mas sabia o que fazia, tinha cultura e conhecia a chamada norma culta, que utilizava quando entendia necessário. Uma prova disso é a sua parceria inusitada com Vinicius de Moraes, que antes o havia criticado por estropiar a língua portuguesa em “Samba do Arnesto”.

Até que um dia, de repente, não mais do que de repente, Aracy de Almeida, então morando e trabalhando em São Paulo na TV Record, passou ao colega Adoniran um papel que recebera de Vinicius com um poema e atribuições plenipotenciárias: “faça o que quiser com ele”.

O poema — na esteira da onda existencialista e do livro de Françoise Sagan — se tornou a letra do antológico samba-canção “Bom dia, tristeza”, composto por Adoniran inteiramente fora do padrão melódico dos seus sambas paulistanos, como a dar a resposta do seu imenso talento.

O diplomata Vinicius estava em Paris, integrando a delegação brasileira na Unesco, e de lá acompanhou o repentino e estrondoso sucesso da canção, gravada inicialmente por Aracy Cardoso e em seguida por outras cantoras consagradas, como Elizeth Cardoso e Maysa (esta encarnava como ninguém a personagem do poema). Adoniran achava que a melhor gravação e interpretação de todas era a de Mauricy Moura, ele próprio gravou “Bom dia, tristeza” mais de uma vez e chegou a incluir uma introdução falada bem ao seu estilo (seria uma réplica bem-humorada a Vinicius?): “A tristeza é um bichinho que para roer está sozinho. E como rói, a bandida. Parece rato em queijo parmesão”

Além dos vários clássicos, “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca”, “Samba do Arnesto”, quem mais teria a ousadia de fazer um impagável “Samba Italiano”?

 

Falado:

“Gioconda, pitina mia,

Vai brincar alí no mareí no fundo,

Mas atencione co os tubarone, ouvisto?

Capito meu san benedito”.

 

Piove, piove,

Fa tempo que piove qua, Gigi,

E io, sempre io,

Sotto la tua finestra

E vuoi senza me sentire

Ridere, ridere, ridere

Di questo infelice qui

 

Ti ricordi, Gioconda,

Di quella sera in Guarujá

Quando il mare ti portava via

E me chiamaste

Aiuto, Marcello!

La tua gioconda ha paura di quest’onda

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=tF4aRh5Ie4s[/youtube]

 

  

Juntamente com Paulo Vanzolini ─ que em maio deste ano foi se encontrar com Adoniran (AQUI) ─ e Germano Mathias ─ outro sambista excepcional, quase esquecido (AQUI) ─ retratam o universo da verdadeira boemia paulistana, com seus malandros e mulheres, desvalidos e trabalhadores, sonhadores e desesperançados.

 

 

 

Laços e enlaces

 

 

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Sempre intrigam os enlaces entre fatos aparentemente desconexos, como se regidos por uma lei que nos escapasse à compreensão.

A semana que se findou e a que se inicia nos apresentam mais um desses laços enigmáticos — chamemos assim, à falta de uma designação mais apropriada.

Nosso tradicional Dia da Mentira, 1º de abril (o que leva a pressupor que todos os demais dias sejam consagrados à verdade), cai na segunda-feira subsequente à Semana Santa em que se celebrou a Paixão e a Ressurreição de Cristo.

Mera coincidência? Simples datas delimitadas pelo calendário gregoriano, que é apenas uma convenção, entre muitas, para se contar o tempo? Talvez.

Já se disse — sem demérito algum — que a ciência lida com verdades provisórias. A física clássica de Newton concebia o universo de modo ordenado, e mesmo Einstein buscou durante sua vida toda a explicação ou a resposta definitiva. Hoje, uma forte corrente sustenta ou trabalha com a hipótese de que não haveria tal explicação, já que o universo seria caótico e assimétrico, e muito do que existe hoje, incluindo o próprio ser humano, resultaria de acasos ou mesmo desvios erráticos.

Será mesmo?

Que verdades científicas virão a seguir? A ciência só aceita fatos que possam ser testados e corroborados por evidências, mas tais comprovações têm variado e até se contraditado ao longo do tempo e com a evolução tecnológica. Como a existência de Deus não pôde ser testada até agora, não é admitida como verdade científica.

— O que é a verdade?, teria indagado ao Cristo Pôncio Pilatos, para em seguida se afastar, sem interesse pela resposta, e depois lavar as mãos, permitir a crucificação daquele nazareno e libertar Barrabás, atendendo à opinião pública da época, a chamada voz do povo, tida por muitos como a voz de Deus.

Anatole France, um escritor essencial, vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1921, mas que está fora de moda ou dos modismos, no seu livro L’Étui de nacre (O estojo de nácar, que infelizmente jamais teve uma edição brasileira), nos brinda com um conto tão primoroso quanto instigante, O procurador da Judeia.

Trata-se de um fugaz episódio de Pôncio Pilatos já na velhice, vivendo novamente em Roma. Um dia encontra nas colinas romanas um antigo amigo que também estivera na Judeia na mesma época e com o qual costumava conversar, para matar as saudades da terra natal. Recordam-se agora daqueles tempos e de diversas passagens na longíqua região, principalmente as condenações dos judeus presos.

— Ah, como davam trabalho aquelas condenações!, rememora Pilatos.

— E a condenação daquele Jesus de Nazaré, lembra-se?, pergunta-lhe o amigo. — Como foi complicada! 

Depois de pensar durante algum tempo, Pilatos responde:

— Jesus? Jesus de Nazaré? Não, não me lembro, não. 

O que explicaria o fato de Cristo ter nascido, vivido e pregado (e sido pregado) numa região distante e periférica do mundo de então, a ponto de nem mesmo ser lembrado pelo velho procurador que determinou a sua execução? Em razão disso há pouquíssimos e vagos registros históricos da sua existência (terá querido que assim fosse?).

Voltaire sustentava que se há o relógio é porque há o relojoeiro que o inventou e fabricou. Mas os relógios batem horas desencontradas, e cada um de nós tem a sua própria hora. Sem dizer que até mesmo os relógios parados estarão certos duas vezes ao dia.

Melhor então cantar com o grande Adoniran Barbosa:

 

                                               “Num relógio

                                               É quatro e vinte

                                               No outro é quatro e meia

                                               É que de um relógio pra outro

                                               As horas vareia.”

 

 “Tocar na banda”, Adoniran Barbosa

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Gqi-iSliARQ[/youtube]

 

 

Se o sinhô não tá lembrado

 

 

 

 

Faz trinta anos que Adoniran partiu no trem das onze.

Como ele vive em mim, continua presente, e sigo com ele pelas ruas do Bixiga até um samba no Brás.

Nóis não se importa…

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=jYfB9v-mjaY&feature=related[/youtube]

 

 

 

A arte do encontro IV

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

               Vinicius de Moraes, sempre tão generoso e afável, tinha lá seus humanos deslizes.

               Antes de cometer a célebre frase — de que se arrependeria publicamente mais tarde — “São Paulo é o túmulo do samba”, havia criticado em um artigo os erros de português de “Samba do Arnesto”.

               Adoniran Barbosa nunca se importou com isso, seguiu fazendo seus sambas paulistanos com um idioma típico, roseano (antes do próprio), suas marchinhas e canções, além das sacadas como o “Charutinho”, cujo phisyque du role incorporou ao compositor.

               Até que um dia, de repente, não mais do que de repente, Aracy de Almeida, então morando e trabalhando em São Paulo na TV Record, passou ao colega Adoniran um papel que recebera de Vinicius com um poema e atribuições plenipotenciárias: “faça o que quiser com ele”.

               O poema — na esteira da onda existencialista e do livro de Françoise Sagan — se tornou a letra do antológico samba-canção “Bom dia, tristeza”, composto por Adoniran inteiramente fora do padrão melódico dos seus sambas paulistanos, como a dar a resposta do seu imenso talento.

               O diplomata Vinicius estava em Paris, integrando a delegação brasileira na Unesco, e de lá acompanhou o repentino e estrondoso sucesso da canção, gravada inicialmente por Aracy Cardoso e em seguida por outras cantoras consagradas, como Elizeth Cardoso e Maysa (esta encarnava como ninguém a personagem do poema).

               Adoniran achava que a melhor gravação e interpretação de todas era a de Mauricy Moura, ele próprio gravou “Bom dia, tristeza” mais de uma vez e chegou a incluir uma introdução falada bem ao seu estilo (seria uma réplica bem-humorada a Vinicius?): “A tristeza é um bichinho que para roer está sozinho. E como rói, a bandida. Parece rato em queijo parmesão”.

               Talvez tenha sido a arte do desencontro (não encontrei nenhuma foto dos dois juntos).

 

 

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[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=PQM9Ied5Kc0&feature=related]