Era no tempo do rei.
Se fosse hoje, seria mais um “combate do século”, como Muhammad Ali X Joe Frazier; Muhammad Ali X George Foreman; Mike Tyson X Evander Hollifield; Anderson Silva X Chaell Sonnen, e tantos outros.
O apresentador anunciaria estrepitosamente:
— No corner azul, pesando 68 quilos, 1,70m de altura, invicto, o rei da ginga, capoeira Pula de Lado; no corner vermelho, pesando 71 quilos, 1,73m de altura, também invicto, o rei da pernada, capoeira Coice nos Bagos.
Aquele não foi apenas um “combate do século”, mas o combate de todos os séculos e de todos os tempos.
Não se travou no ringue nem no octagon, mas num recanto do Rio de antanho, lá pelas bandas dos Arcos da Carioca, como se chamava então os Arcos da Lapa.
Pula de Lado e Coice nos Bagos eram os dois maiores mestres do jogo da capoeira, com as cabeças a prêmio, caçados diuturnamente pelo major da Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte Miguel Nunes Vidigal, ou simplesmente Vidigal, o chefe da polícia de outrora, temido e odiado pelos bandoleiros, malfeitores, valentões, capoeiras e pelo populacho em geral, aos quais, com seu séquito de fardas azuis, não dava um segundo de trégua.
Pulo de Lado e Coice nos Bagos jamais haviam se enfrentado. Respeitavam-se. Evitavam-se. Ambos dominavam todas as manhas da capoeira, embora as alcunhas não deixassem dúvida quanto à especialidade de cada um.
Mas daquela feita, durante os folguedos do entrudo, não tiveram como se esquivar do confronto tão esperado. Era preciso resolver de uma vez por todas a pendenga de quem era o maior.
O jogo varou a noite enluarada, que salpicava de estrelas o chão de terra.
Todos os golpes de ataque e defesa foram exibidos pelos dois capoeiras: armadas, bençãos, cabeçadas, chapas, martelos, meia-luas, rabos de arraia, coices, saltos mortais, voos, rasteiras. O jogo de Pula de Lado era mais refinado e artístico; o de Coice nos Bagos, mais contundente e perigoso.
Há quem diga que o jogo demorou tanto tempo porque no fundo, no fundo, nenhum dos dois queria de fato acertar para valer o outro. Preferiam exibir-se, intimidar-se, e talvez um admirasse o que o outro fazia.
Até que, quando a manhã ia alta, um pândego anunciou:
— Evém o Vidigal!!!
Pula de Lado, que havia se desviado magistralmente de todas as pernadas e investidas do oponente, perdeu a atenção por um instante com a patranha (suspeita-se que o falso arauto era do grupo adversário), desviou-se para o lado errado e tomou o coice nos bagos, que nem fora o melhor golpe desferido pelo dito cujo.
Um certo Pessoa diria depois que “quem tem alma, não tem calma”
Pois quem leva um coice nos bagos, perde a alma e a calma. Pulo de Lado não quis afago, esqueceu a dor e partiu para a ignorância de vez, deixando a altivez de lado. Encabruado, apanhou um caibro abandonado e com ele acertou o joelho do escoiceador.
O jogo virou rixa generalizada, envolvendo os adeptos de cada facção e até o povaréu que acompanhava a refrega
Ao fim e ao cabo, Pulo de Lado, Coice nos Bagos e muitos outros acabaram detidos de fato por Vidigal e sua milícia, que acorreram ao local justamente por causa da arruaça.
Depois disso, nenhum dos dois voltou a ser o mesmo.
Pulo de Lado sumiu do mapa, sem deixar descendência.
Coice nos Bagos, manquitola, já não metia medo em ninguém.
Há quem afirme, contudo, que nas noites de lua cheia duas sombras se vislumbram nos velhos Arcos da Carioca trocando golpes de capoeira a mancheias.
P.S. Não sou o Yann Martel (veja aqui), logo entrego logo. Este texto me saiu do delicioso livro de Ruy Castro, “Era no tempo do rei”, que por sua vez escamoteia confessadamente Manoel Antonio de Almeida e seu antológico “Memórias de um sargento de milícias”. Ruy Castro menciona de passagem os dois capoeiras, “Pulo de Lado” e “Coice nos Bagos”, no extenso rol daqueles perseguidos e detidos pelo temível Vidigal. Não sei se existiram, mas os nomes me entranharam e perseguiram até que lhes arrumasse um tira-teima nos velhos Arcos da Carioca. Como diria Martel — desta vez com inteira razão —, sou um escritor menor diante de uma grande ideia.