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Amores serão sempre amáveis…

 

 

Para mim, entre as cinco mais belas canções de Chico Buarque

 

“E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização”

 

“Futuros amantes” (Chico Buarque), com ele

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=mN306Fkg6Wg[/youtube]

 

 

 

De como participei da fundação da Academia Brasileira de Letras

 

 

“É certo; então reprimamos

esta fera condição,

esta fúria, esta ambição,

pois pode ser que sonhemos;

e o faremos, pois estamos

em mundo tão singular

que o viver é só sonhar

e a vida ao fim nos imponha

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.”

 

(“A vida é sonho” (excerto), Calderón de la Barca)

 

 

 

Saídos da Livraria Laemmert, os circunspectos cavalheiros encasacados entraram por volta das 17 horas na confeitaria, tiraram as cartolas e os chapéus ao se sentarem numa ampla mesa reservada, ao fundo.

Logo foram atendidos por dois garçons, igualmente impecáveis nos seus trajes. A maioria preferiu chás variados, torradas, bolachinhas e outras guloseimas servidos àquela hora e que eram a especialidade da Casa. Alguns poucos arriscaram um xerez ou um vinho do Porto. Eu fui um deles.

O grupo observava uma tácita hierarquia. Os mais jovens eram todo ouvidos e pouco falavam. E o centro da reunião era o senhor de barba e cabelos encanecidos, amulatado, de pince nez, que falava pausadamente de modo a disfarçar uma leve gaguez. Tratava-se de Joaquim Maria Machado de Assis, intelectual consagrado, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta.

— Como sabem os senhores, apóio a ideia dos confrades Medeiros de Albuquerque e Lúcio de Mendonça de criarmos uma Academia Brasileira de Letras, nos moldes da Academia Francesa, e creio mesmo que tal providência, por necessária,  já se faça tarda, não para colhermos a efêmera glória mundana, mas como um marco da instituição de uma literatura nacional.

Ouvia-o atentamente, enlevado com a lucidez e elegância que expunha seu pensamento, a velada ironia de suas observações, tal como em seus romances, contos, poemas e crônicas.

Que honra e privilégio estar na companhia de tantas figuras admiráveis, especialmente dele, e a participar de momentos que haveriam de se tornar históricos!

Mas o que fazia eu ali?

Era um dos mais moços e sentia a vaga sensação de ser um estranho, embora nenhum dos convivas denotasse isso, tratando-me com lhaneza e afabilidade natural dos amigos.

O próprio Machado de Assis algumas vezes pareceu dirigir-se a mim, com o esboço de um sorriso, aparentando certa afeição, como se eu fosse um pupilo dileto ou até mesmo um filho, que ele nunca teve (ou teve, segundo as más línguas).

Apesar de me sentir muito bem e interessado na conversação e nas opiniões que se alternavam, pressentia que a qualquer momento haveria de deixá-los.

Como se sabe, depois de várias reuniões preparatórias, a Academia Brasileira de Letras foi fundada em dezembro de 1896, e oficialmente instalada em 28 de janeiro de 1897, com Machado de Assis sendo eleito o primeiro presidente da instituição, cargo que ocupou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908.

Eis que desperto no meu quarto, nesta São Sebastião do Ribeirão Preto, na manhã de um sábado do ano da graça de 2013, com as imagens vívidas do que relatei acima e uma sensação de rara euforia.

Acorro à cozinha, onde minha mulher prepara o café, e lhe conto em atropelo o sonho tão estranho quanto fascinante.

Ela, que sempre foi extraordinariamente intuitiva e com frequência faz predições que se confirmam, escuta-me com um sorriso maroto e os olhos verdejantes, e ao final diz que talvez eu possa mesmo ter estado lá. Quem sabe?

— O que mais importa é que o sonho lhe fez bem e você acordou numa manhã feliz.

De que matéria serão feitos os sonhos e as manhãs felizes?

 

 

MATÉRIA PRIMA

 

De que são feitos os sonhos?

 

Nostálgicos amores

revoltos mares

remotos temores

fragmentos de luzes

no umbroso porão

da memória ancestral

do primeiro Adão

e seu perdido Jardim

de flores, frutos, olores,

arrebatado de mim

pelo tempo e pela treva.

 

Tortuosa travessia

entre o crepúsculo e a aurora,

a vertigem do abismo me leva

a galgar trôpego e sôfrego

o promontório do dia.

 

 

Vou te contar…

 

drummond no mar estava escrita uma cidade 4

 

 

                                                       RIO 448 ANOS

 

 

                        “Vou te contar

                        minha alma canta

                        vejo o Rio de Janeiro

                        estou morrendo de saudades

                        Rio, seu mar

                        praia sem fim

                        Rio, você foi feito pra mim.

 

                        Da primeira vez era a cidade

                        da segunda o cais e a eternidade

                        o resto é mar

                        é tudo que não sei contar

                        da onda que se ergueu no mar

                        e das estrelas que esquecemos de contar.

 

                        No mar estava escrita uma cidade,

                        o mar batia em meu peito, já não cabia no cais.

                        A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu

                        a cidade sou eu

                        sou eu a cidade

                        meu amor.”

 

 

(Texto construído com excertos das letras de “Samba do avião” e “Wave” de Tom Jobim, e dos poemas “Mas viveremos” e “Coração numeroso”, de Carlos Drummond de Andrade)

 

 

“Wave” (Tom Jobim)

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=wGAfXN1-uVw[/youtube]

 

 

Era no tempo do rei…

 

 

 

 capoeira 2

 

 

Era no tempo do rei.

Se fosse hoje, seria mais um “combate do século”, como Muhammad Ali X Joe Frazier; Muhammad Ali X George Foreman; Mike Tyson X Evander Hollifield; Anderson Silva X Chaell Sonnen, e tantos outros.

O apresentador anunciaria estrepitosamente:

— No corner azul, pesando 68 quilos, 1,70m de altura, invicto, o rei da ginga, capoeira Pula de Lado; no corner vermelho, pesando 71 quilos, 1,73m de altura, também invicto, o rei da pernada, capoeira Coice nos Bagos.

Aquele não foi apenas um “combate do século”, mas o combate de todos os séculos e de todos os tempos.

Não se travou no ringue nem no octagon, mas num recanto do Rio de antanho, lá pelas bandas dos Arcos da Carioca, como se chamava então os Arcos da Lapa.

Pula de Lado e Coice nos Bagos eram os dois maiores mestres do jogo da capoeira, com as cabeças a prêmio, caçados diuturnamente pelo major da Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte Miguel Nunes Vidigal, ou simplesmente Vidigal, o chefe da polícia de outrora, temido e odiado pelos bandoleiros, malfeitores, valentões, capoeiras e pelo populacho em geral, aos quais, com seu séquito de fardas azuis, não dava um segundo de trégua.

Pulo de Lado e Coice nos Bagos jamais haviam se enfrentado. Respeitavam-se. Evitavam-se. Ambos dominavam todas as manhas da capoeira, embora as alcunhas não deixassem dúvida quanto à especialidade de cada um.

Mas daquela feita, durante os folguedos do entrudo, não tiveram como se esquivar do confronto tão esperado. Era preciso resolver de uma vez por todas a pendenga de quem era o maior.

O jogo varou a noite enluarada, que salpicava de estrelas o chão de terra.

Todos os golpes de ataque e defesa foram exibidos pelos dois capoeiras: armadas, bençãos, cabeçadas, chapas, martelos, meia-luas, rabos de arraia, coices, saltos mortais, voos, rasteiras. O jogo de Pula de Lado era mais refinado e artístico; o de Coice nos Bagos, mais contundente e perigoso.

Há quem diga que o jogo demorou tanto tempo porque no fundo, no fundo, nenhum dos dois queria de fato acertar para valer o outro. Preferiam exibir-se, intimidar-se, e talvez um admirasse o que o outro fazia.

Até que, quando a manhã ia alta, um pândego anunciou:

— Evém o Vidigal!!!

Pula de Lado, que havia se desviado magistralmente de todas as pernadas e investidas do oponente, perdeu a atenção por um instante com a patranha (suspeita-se que o falso arauto era do grupo adversário), desviou-se para o lado errado e tomou o coice nos bagos, que nem fora o melhor golpe desferido pelo dito cujo.

Um certo Pessoa diria depois que “quem tem alma, não tem calma”

Pois quem leva um coice nos bagos, perde a alma e a calma. Pulo de Lado não quis afago, esqueceu a dor e partiu para a ignorância de vez, deixando a altivez de lado.  Encabruado, apanhou um caibro abandonado e com ele acertou o joelho do escoiceador.

O jogo virou rixa generalizada, envolvendo os adeptos de cada facção e até o povaréu que acompanhava a refrega 

Ao fim e ao cabo, Pulo de Lado, Coice nos Bagos e muitos outros acabaram detidos de fato por Vidigal e sua milícia, que acorreram ao local justamente por causa da arruaça.

Depois disso, nenhum dos dois voltou a ser o mesmo.

Pulo de Lado sumiu do mapa, sem deixar descendência.

Coice nos Bagos, manquitola, já não metia medo em ninguém.

Há quem afirme, contudo, que nas noites de lua cheia duas sombras se vislumbram nos velhos Arcos da Carioca trocando golpes de capoeira a mancheias.

 

 

P.S.  Não sou o Yann Martel (veja aqui), logo entrego logo. Este texto me saiu do delicioso livro de Ruy Castro, “Era no tempo do rei”, que por sua vez escamoteia confessadamente Manoel Antonio de Almeida e seu antológico “Memórias de um sargento de milícias”. Ruy Castro menciona de passagem os dois capoeiras, “Pulo de Lado” e “Coice nos Bagos”, no extenso rol daqueles perseguidos e detidos pelo temível Vidigal. Não sei se existiram, mas os nomes me entranharam e perseguiram até que lhes arrumasse um tira-teima nos velhos Arcos da Carioca. Como diria Martel — desta vez com inteira razão —, sou um escritor menor diante de uma grande ideia.

 

 

 

O colecionador

 

 

 

          Para ficar mais próximo do Rio de Janeiro, do seu dia a dia e dos amigos que tenho por lá, tornei-me assinante da versão digital do jornal “O Globo”.

          O relacionamento do leitor com um jornal não difere muito dos relacionamentos da vida. Existem aqueles com quem simpatizamos e aqueles que nos aborrecem ou nos são indiferentes; pessoas com que nos identificamos de imediato e das quais nos sentimos próximos como se convivêssemos desde sempre.

          Assim também com os cronistas e colunistas permanentes dos jornais. Alguns, esperamos ansiosos o dia do encontro marcado; outros, viramos logo a página, como dobramos a primeira esquina para não cruzar com aquele chato de galochas.

          Nessas semanas de leitura de “O Globo” só tem aumentado meu encantamento com as crônicas de Joaquim Ferreira dos Santos, com seu jeito de “Gente Boa”, seu estilo simples e gostoso, sua sensibilidade na apreensão das coisas e dos fatos.

          Outro dia ele escreveu sobre o que seria um novo subgênero literário, como a nossa jabuticaba, a “crônica do vovô”, cujos autores “[…] passeiam ao redor de suas netas usando a mesma estupefação com que já observaram o Rio de Janeiro — a “crônica de exaltação da cidade” é outro subgênero — ou refizeram suas memórias de infância, uma ramificação em que todos também acabam mexendo. Do outro lado da página do jornal, o leitor reconhece, no texto do vovô babando as netas, o movimento universal do tempo que passa, das vidas que se renovam e da esperança do novo. A crônica faz a aposta lírica, nas entrelinhas, de que vem aí um mundo melhor.”

          Selminha, com seu inesgotável carinho, além de me avisar para ler a crônica do vovô Joaquim, logo me incluiu na categoria, capitaneada por Ricardo Noblat, Luis Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura, vejam só!

          Segunda-feira passada, Joaquim Ferreira dos Santos escreveu deliciosamente sobre uma mania que também tenho, a de anotar frases que ouço, vejo ou leio por aí.

          Sou, porém, mais dispersivo do que ele. Não mantenho um caderno (o que talvez passe a fazer), vou anotando em papeluchos que geralmente se perdem nas páginas de livros, em gavetas e pastas esquecidas. O que não é de todo mau, pois ao reencontrá-las de repente as frases me despertam o mesmo prazer que me levou a anotá-las.

 

 

O COLECIONADOR

 

Acho que já disse outrora, alhures, quiçá aqui. Quero enfatizar. Anoto frases. Ouço na rua, vejo num muro, leio num livro. Anoto. Um dia, perguntado de onde vinha tanta inspiração, Cole Porter respondeu: “Do telefonema do produtor”. Anoto frases como essas num caderno, frases não necessariamente inspiradoras, mas que por algum motivo me provocam um esgar no cerebelo e, um dia, se o telefone do produtor tocar, poderão ajudar no milagre de já encontrar fumegando o caldeirão das ideias. Não discuto com elas. Boto para dentro e esqueço. Quem sou eu para entender o que me vai nas internas.

Vou anotando, que é um modo como outro qualquer de salgar a carne para o banquete futuro. Pode ser Muhammad Ali ensinando a boxear (“Flutua como borboleta, ferroa como abelha”) ou Fabrício Carpinejar ensinando a se tocar a vida (“O bom humor é a cirurgia plástica de baixo custo”). Tudo sem hierarquia, um açougue de chã de dentro, gordura e letras. Anotei “Se o mundo fosse bom, o dono moraria nele”, de um parachoque de caminhão. Anotei também o artilheiro Dario Maravilha explicando aos repórteres, espantados com a boa direção de suas caneladas, que “não existe gol feio, feio é não fazer gols”.

De que isso me servirá, não lo sei. Pode ser o desabafo do Otto Lara, cansado da ignorância urbana dos jovens (“Não quero mais conhecer ninguém que não saiba o que é goiaba”) ou o jingle “Peço licença pra mandar Detefon em meu lugar”. Gostei, quero preservar aquele prazer. “Cada minuto é um milagre que não se repete”, dizia o locutor da Rádio Relógio — e eu já teria esquecido tamanha delícia se meus garranchos não a tivessem preservado.

Eis o meu hobby. Anoto frases, que é uma forma de expressar meu carinho para com elas. Cubro-as em seguida com um cobertor das lojas Pernambucanas e ponho para dormir com as minhas. Torço em silêncio para que elas se locupletem todas ou que pelo menos se restaure a moralidade do verbo, como dizia, e está anotado, o Stanislaw Ponte Preta. De mais não sei, de mais não encuco e nem me preocupo com o que delas vai resultar. “Depois de um século de atividade, a psicanálise chegou a uma conclusão científica: gafanhoto não tem grilo”, disse o Millôr.

As minhas frases dormem com as estranhas que eu trago da rua e rezo para que se reproduzam. Temos sido felizes em nossa cornucópia semântica. O que nasce daí, um tiroteio interminável de frases iluminando a noite das ideias, vai empacotado em papel de seda azul para o produtor. Em seguida, às vezes no formato de livro, outras mais em jornal, ele distribui o palavrório pelas boas casas do ramo. Vivo disso.

Na semana passada, o jornalista Marcel Souto Maior e a revista “Veja” lançaram livros com coleções de frases ditas por outros. Respirei aliviado. Eu não estava sozinho no culto da obsessão. Um dia, quem sabe, eu transfiro todas do caderno humilde em que dormitam as minhas para o luxo protetor da capa dura. São moças simples. Nenhuma delas foi tirada de um evento épico (“Amanhã não vai ser possível, porque encomendei um franguinho assado”, de Moreira da Silva, desmarcando uma entrevista), mas me são todas queridas e lhes quero o melhor. Haveria um capítulo com as do “Poderoso chefão”:

“Fique perto dos amigos, e muito mais dos inimigos”, “Nunca diga para alguém de fora da família o que está fazendo”, ou “Dom Corleone nunca pede um segundo favor quando lhe recusam o primeiro”. Haveria um outro capítulo com mandamentos de machões:

“Fale com calma, fale devagar e não diga muita coisa” (John Wayne), “Sexo é uma das nove razões para a reencarnação, as outras oito não têm importância” (Henry Miller) e “Perdoar, sim, esquecer, nunca” (John Kennedy).

Eu anoto essas frases com o fito de mantê-las sempre por perto, e brincar com a cara delas. Leio “Quem bebe Sukita não engole qualquer coisa”, e é impossível não rir. “Sapo não pula por boniteza, pula por percisão”, dizia Guimarães Rosa, e já são duas risadas.

Frank Sinatra escreveu, na parede do salão onde guardava seus trenzinhos, que “Quem morre com o maior número de brinquedos, ganha”. Tinha sido garoto pobre, queria uma quantidade enorme de trenzinhos. Eu acho que ganha quem morre com a maior diversidade. Tenho outros brinquedos, quase todos inconfessáveis diante de grandes plateias. Garimpar frases e cultuá-las no altar de um caderno é apenas um deles, e os livros lançados sobre o assunto me autorizam a dizer alto que eu também sou do clube. Elas não servem de autoajuda, nem para encaixar num discurso de formatura. São moças da venerável estirpe das que não se dão ao respeito. “Não há nada mais gostoso do que um ‘mim’ sujeito de verbo no infinitivo”, dizia Manuel Bandeira — e em seguida suspirava a delícia de um “para mim brincar”.

Era o que eu queria dizer. Anoto frases porque o joelho não me deixa mais subir no skate. É para mim brincar.

 

Joaquim Ferreira dos Santos

O GLOBO

3/9/2012

 

 

 

Meu reencontro com Espinosa

 

 

 

               A última vez em que estive com Espinosa foi no início de 2010, quando passava férias no Rio de Janeiro e ele ainda se recuperava de um grave ferimento que sofrera.

               Contei a respeito daquele nosso encontro aqui. Mesmo em convalescença, Espinosa acabou se envolvendo, e também a mim, numa outra investigação sobre o súbito e estranho desaparecimento de um dentista de vida pacata e metódica.

               Depois daqueles dias, somente nos falamos esporadicamente por e-mail e telefone. Numa das vezes em que fui ao Rio cheguei a procurá-lo na 12 DP de Copacabana, mas ele estava em gozo de licença-prêmio e havia viajado para Lisboa e Paris, certamente para vasculhar livrarias e sebos, como ele tanto gosta.

               Apesar da distância física, nossa amizade nunca se abalou, basta nos reencontrarmos para a conversa seguir como se nunca tivesse sido interrompida. Creio que os verdadeiros amigos e camaradas são desse jeito, sem cobranças e recriminações.

               Mesmo assim, andava incomodado com o afastamento. Cheguei a comentar isso com minha filha Carolina outro dia. Longe de Espinosa, perdi também o contato com seu amigo Luiz Alfredo Garcia-Roza, que ele me apresentou e de quem gosto muito. Andei procurando novos livros de Garcia-Roza pelas livrarias, mas faz tempo que ele não publica.

               Quinta-feira passada, ao flanar pela Livraria da Vila, no Shopping Higienópolis, eis que dou de cara com Espinosa a remexer nas prateleiras.

               Infelizmente, ambos estávamos apressados e só tivemos tempo para um abraço, um café e conversar rapidamente. Ele tinha vindo a São Paulo em diligência numa de suas investigações e voltaria logo mais para o Rio, na ponte aérea de Congonhas. Eu também estava de saída para Guarulhos, onde embarcaria para Buenos Aires.

               Apesar do pouco tempo, Espinosa, além de me dar notícias de Garcia-Roza, que vai muito bem, contou-me sobre um novo caso que o anda assombrando e ao qual se dedicaria integralmente assim voltasse para o Rio.

               Trata-se de um assassinato a faca cometido de madrugada em plena Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Espinosa tem certeza de que tudo foi presenciado por uma frágil moradora de rua, se não me engano conhecida como “Princesa”. Ela, porém, nega ter visto e, ainda segundo o feeling do meu amigo delegado, pode se achar em grande perigo.

               Tão logo regresse ao Brasil, vou entrar em contado com Espinosa para saber o que ele apurou. Tomara que já tenha solucionado o crime e que a pobre testemunha ocular não haja se tornado vítima também, não bastassem os males que a vida miserável lhe perpetra.

 

 

 

 

 

Parabéns, Rio de Janeiro a Janeiro

 

 

Para Selminha e Paulinho, privilegiados amigos queridos.

 

 

“No mar estava escrito uma cidade

no campo ela crescia, na lagoa,

no pátio negro, em tudo onde pisasse

alguém, se desenhava tua imagem,

 

teu brilho, tuas pontas, teu império

e teu sangue e teu bafo e tua pálpebra,

estrela: cada um te possuía.

Era inútil queimar-te, cintilavas.”

 

(Carlos Drummond de Andrade, Mas Viveremos, excerto)

 

 

 

            Hoje é o dia do aniversário do Rio de Janeiro, que completa 447 anos.

            Sou absolutamente fascinado pelo Rio ― sua gente, suas personagens, praias, bibliotecas e livrarias, o Corcovado, o centro velho, a Lapa boêmia, o Jardim Botânico, a Floresta da Tijuca, a inconcebível geografia, o samba que ressoa por todos os cantos ― e é nela que me refugio e refaço sempre que posso, e menos do que gostaria.

            O Rio tem problemas? Claro que sim, como todas as grandes cidades, como todo o Brasil e sua desigualdade afrontosa.

            Mas quando vou me achegando do Rio, encarno o Tom Gama, minha alma canta, sorrio e me acaba num instante com qualquer tristeza…

 

 

 

 

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Se não me agacho…

 

 

 

 

 

“Rio de Janeiro — Os prédios do quarteirão compreendido entre as Avenidas 13 de Maio e Almirante Barroso, a Rua Senador Dantas e a Travessa dos Poetas de Calçada, no centro do Rio, foram interditados na manhã de hoje (26) pela Defesa Civil. Todas as pessoas que estavam nesses edifícios estão sendo retiradas. O quarteirão fica em frente ao prédio que desabou na noite de ontem (25).” (Fonte: Agência Brasil, repórter Vitor Abdala)

 

 

            Há exatamente um ano caminhava pelo quarteirão onde ocorreu agora o desabamento dos três prédios no Rio de Janeiro, para conferir a Travessa dos Poetas de Calçada, que havia descoberto numa viagem curta, pouco antes.

            Escrevi, então, uma pequena crônica, que poderá ser lida ou relida clicando aqui.

            Se não me agacho…

 

 

 

O Rio é tão longe

 

 

“Não é grafomania. É civilidade.”

(Otto Lara Resende)

 

 

Meu pai, meu mestre

 

            Encarapitados nas suas montanhas e nos seus belos horizontes, será mesmo o Rio tão longe para os mineiros, nostálgicos do mar que não têm?

            Afinal, navegar é preciso; viver não é preciso, e mineiros de tantas gerações de ouro deixaram aquela Minas telúrica e provinciana (que não há mais) e foram aportar no Rio, capital do Brasil (e acaso existirá algum Brasil?).

            Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, e depois Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, os quatro Cavaleiros do Apocalipse, segundo eles próprios. Apocalipse que também não houve (ou então já aconteceu e não percebemos).

            Você bem poderia ter estado com eles ― e de certo modo esteve ― mas preferiu se embrenhar pela Mogiana bandeirante, não sem antes, em breve paragem nos vastos campos de Piratininga, conceber com uma também mineira este paulistano desgarrado, das quebradas do Bexiga, coestaduano de Adoniran.

            O Rio agora está tão perto com os aviões de carreira cada vez mais a jato. Menos de uma hora. Mas você hesita em aceitar meu convite para desfrutá-lo, e sempre dá uma desculpa para se enfurnar em casa. Eta mineiro desconfiado!

            Talvez o Rio também já não exista. Apenas resquícios do Rio de Machado, Ruy, Drummond, daqueles quatro cavaleiros mineiros de um “íntimo apocalipse”, de Vinicius e Jobim, de uma amorosa lua de mel, ainda resistem.

            Mas o que nos resta senão resistir?

 

 

 

 

 

 

A Travessa dos Poetas de Calçada

 

 

 

 

                        Quando estive no Rio, de afogadilho, para assistir à apresentação dos painéis “Guerra e Paz” de Portinari no Theatro Municipal, descobri por acaso a “Travessa dos Poetas de Calçada”.

                        Foi assim.

                        Logo depois de dar entrada no hotel, por volta das 10 horas, tomei um táxi e fui direto ao Theatro Municipal para pegar o meu convite, conforme instruções que havia recebido.

                        Soube então que a retirada dos convites não era na bilheteria do Theatro, como imaginava, mas sim num outro prédio ao lado. A minha ansiedade era tanta, que cheguei entes da equipe encarregada da entrega dos convites.

                        Enquanto esperava, para matar o tempo, saí a andar pelas imediações, dando vazão ao meu espírito de flâneur quando me vejo numa cidade desconhecida. O Rio não me é totalmente estranha, pelo contrário, mas a bem de ver todas as cidades, por mais que as conheçamos, sempre nos reservam surpresas, como uma amante caprichosa e sedutora.

                        Caminhei pela Avenida Treze de Maio e pela Rua Senador Dantas até que numa esquina deparei com uma tabuleta do restaurante Al Kwait, que se denomina o árabe mais antigo do Rio, anunciando as especiarias que minha avó materna fazia como ninguém.

                        O restaurante ainda não estava aberto para o almoço àquela hora da manhã, mas servia algumas guloseimas, como quibes e esfihas, num balcão e nas mesas da calçada. Sentei-me numa delas e pedi uma coalhada, um suco de laranja e um café.

                        Súbito, ao olhar a placa da indicação do local, me surpreendi-e emocionei ao ver que estava na Travessa dos Poetas de Calçada, um desses becos do centro do Rio em que provavelmente muitos passam sem dar a mínima atenção ao nome. Não havia na placa explicação alguma sobre os tais poetas de calçada. Aos que perguntei, garçons e pessoas que por ali estavam, ningúem sabia de nada.

                        Anotei o nome e o local para verificar depois, com mais calma.

                        Hoje retornei lá, mas as informações que colhi foram mesmo na internet e, aliás, são poucas.

                        Consta que nos anos 70 um poeta chamado Gilson escrevia poemas com giz em tapumes naquelas cercanias. Descobri, também, que Drummond trabalhava próximo dali, no Castelo, mas certamente o nome da travessa deve ser muito anterior aos dois.

                        Pouco importa. O que interessa é a maravilha do nome da travessa e para onde ele transporta a nossa imaginação.

                        Quem seriam os poetas de calçada? Poetas sem teto, que viviam pelas calçadas do beco?

                        Ou  será que apenas se reuniam naquele beco para dizer e escrever seus poemas? Uma confraria?

                        Haveria ali uma feira de poesia, com bancas de poemas fresquinhos (segundo o estilo), como nas feiras livres, para vender aos apaixonados ou vaidosos que apresentariam como seus às amadas ou nos saraus? Se houvesse, aconteceria também aquela hora da xepa do final das feiras, quando os produtos não vendidos ou rejeitados são vendidos mais baratos?

                       Quando foi isso?

                       Rubem Fonseca, que infelizmente tem escrito muita porcaria nos últimos tempos — seu mais recente romance (?) “O Seminarista” chega a ser constrangedor —, mas que sem dúvida é um grande mestre da narrativa, tem um conto antológico, recentemente reeditado pela Editora Agir, intitulado “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro”, em que o personagem Augusto Epifânio é um emérito perambulante do centro do Rio, mas não consta que ande pela Travessa dos Poetas de Calçada.

                        Eu, pobre homem da póvoa do Bexiga e do São Sebastião do Ribeirão Preto, é quem fui andar por lá.