Dorival Caymmi é uma das coisas boas da vida, das melhores, para ser degustado sem pressa, slow food.
Como das melhores é esta gravação, creio que pouco conhecida, de um clássico do mestre (qual de suas canções não é um clássico?), feita pelo grupo Nouvelle Cuisine, com o excepcional vocalista Carlos Fernando Nogueira, que deixou a banda (a qual agora se chama apenas Nouvelle) para se dedicar à carreira solo.
“Você não sabe amar” (Dorival Caymmi / Carlos Guinle / Hugo Lima), com Nouvelle Cuisine
E consta que esta seria a versão predileta do próprio Caymmi para um outro clássico seu.
Atrasado para uma gravação na TV, saiu praticamente da cama para o carro do Bôscoli, que lhe perguntou:
─ Não vai passar nem um pente no cabelo?
─ Não, eu já vim penteado da Bahia.
***
Carecia mesmo não. Ao rei primeiro de Maracangalha y Balangandã, à mais completa tradução de dengo com cheiro de mar, concede-se.
Para Ubaldo, Caymmi era um “fazedor de beleza”. E ainda tocava um violão recôncavo. Podia tudo.
Amigos, pelos 100 anos do mestre, comemorados hoje, o que vocês gostariam de ouvir? Digam lá. Por ora, Bethânia e o valentão mais doce da MPB.
http://www.youtube.com/watch?v=ZA1JGx-Frng
“A música é Caymmi, Caymmi é a música, e eu não seria músico se não fosse Caymmi.” (Tom Jobim)
“Tirem os olhos de mim, que eu nada sou além de um tocador de violão. O gênio se chama Caymmi. Então, vão ouvi-lo, vão entrevistá-lo. Ele é o mestre, ele é a música.” (João Gilberto)
“O melhor é Caymmi.” (Carlos Drummond de Andrade)
“Escrevi 400 canções e Dorival, 70. Mas ele tem 70 perfeitas e eu não.” (Caetano Veloso)
(Jangadeiro, tela de Caymmi)
[…]
“Uma outra noite singular me levou para as praias da infância à espera da jangada. E se ela voltasse só? Gritei pelo nome dele, como na “Suíte dos Pescadores”. A névoa foi se desfazendo e vi não só uma embarcação. O mar vinha constelado de jangadas, os rudes remendos das velas brilhando feito veios de ouro. Estrelas cadentes iluminavam à volta com verde luz, verde arrebentação, e o que são as cristas das ondas a não ser arestas de astros antigos? Havia cardumes de rosas, rosas formosas de abril, saltando do mar como peixes, pétalas de escamas em tremeluzir de pálpebras. Chico, Bento, Pedro, Zeca, João Valentão, Anália, Jorge Amado, Carybé, todo o povo de Caymmi, o pobre povo brasileiro na miríade de jangadas. Voltavam com nossas sedes e fomes históricas, sofridos como nunca, torturados pelos cães dos poderosos, mas cheios de altivez e integridade nas roupas brancas rasgadas. E também, de relance, Dorival com a Senhora dos Navegantes, e ele sorria porque nosso futuro inova nosso passado, e neles Dorival Caymmi está sempre cantando, dulcíssimo de sal marinho, lampejo eterno em cada gota do presente.”
Podem achar que eu pirei. Pra escrever sobre Caymmi e a morte, só louco.”
(Aldir Blanc, em “A volta da jangada”, ‘O Globo’, 27/4/2014)
“Beijos pela noite”, dos amigos Caymmi, Jorge Amado e Carlos Lacerda. Bobagem…
Tive a sorte existencial de nada ter me atrapalhado (pais, religiões, faculdades, essas coisas) e nunca ter sido obrigado a pensar no que ia ser quando crescesse. Pois, ainda menino, trabalhava na redação de O Cruzeiro (uma saleta de 20 metros quadrados que em dez anos seria a redação da maior revista do Brasil – 750 000 exemplares) com apenas três funcionários: Accioly Netto, diretor, Edgard de Almeida, paginador (hoje seria designer), e eu, contínuo, entregador, resenhador, colador, factótum, em suma.
Foi aí que vi entrar todo mundo e seu pai (Gago Coutinho, que tinha cruzado o Atlântico antes de Lindbergh, Manso de Paiva, assassino do candidato a ditador Pinheiro Machado, e um jovem mulato recém-chegado da Bahia).
Não encontrando quem procurava e vendo as figuras que eu recolava, esse jovem me disse: “Você ainda vai colar aí muito retrato meu”.
Tempo depois ele, Caymmi, me diria que fui a primeira pessoa que ele conheceu ao chegar ao Rio – glória da qual não abro mão. A vida nos juntou longos anos, até que o tempo nos afastou, nos esgarçou. A foto testemunha quando estivemos juntos em Itapoã (quase intocada), pra onde ele voltava pela primeira vez depois de muitos anos.
Mas esta nota não é pra lembrar Dorival e sua existência incomparável. É para lembrar Stela Maris, sua sempiterna companheira. A voz extraordinária de Stela, que me chegava orvalhada pela neblina da madrugada, nas ondas da Rádio Tupi fechando seu programa. A voz tonitruante de Caymmi vinha acompanhada pela voz dela, pelo contracanto inesquecível de Stela, na emoção do acalanto que encerrava o dia: “Boi, boi, boi da cara preta…”.