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Talvez num tempo da delicadeza

 

 

 

Encantou-se Manoel de Barros.

Por ele continuamos encantados.

 

 

 manoel de barros

 

 

O LIVRO SOBRE NADA

 

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.

Tudo que não invento é falso.

Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.

Tem mais presença em mim o que me falta.

Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.

Sou muito preparado de conflitos.

Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.

O meu amanhecer vai ser de noite.

Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.

Meu avesso é mais visível do que um poste.

Sábio é o que adivinha.

Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.

A inércia é meu ato principal.

Não saio de dentro de mim nem pra pescar.

Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.

Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.

Peixe não tem honras nem horizontes.

Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.

Eu queria ser lido pelas pedras.

As palavras me escondem sem cuidado.

Aonde eu não estou as palavras me acham.

Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.

Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.

A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.

Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.

Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.

Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.

O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

Por pudor sou impuro.

O branco me corrompe.

Não gosto de palavra acostumada.

A minha diferença é sempre menos.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.

Não preciso do fim para chegar.

Do lugar onde estou já fui embora.

 

                                                                                                                                                                                                                                              Manoel de Barros

 

 

“Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu”

 

 

 

Há mais mistérios entre o céu e a terra…

 

       Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto

 

 

 

 

 

 

 

Cher Gama,

na página 82 do livro “Corrosão”, há um poema chamado “Carmen” que significa ‘Poesia” em latim (aprendi isso nos tempos idos do Curso Clássico, com nosso professor Lourenço). Eu remeto à minha própria experiência nos remparts de Seville. quando quase morri. E dediquei à colega que ficou comigo esperando a minha morte, pois os médicos disseram que eu ia morrer. Ela é de Monte Alto, uma cidade perto de Ribeirão, que você deve conhecer.

 

 

                                               CARMEN

 

                                                                                  à Claudia Netto do Valle

 

                                               Monte Alto.

                                               Muralhas,

 

                                               nas encostas de Sevilha,

                                               a morte rondava.

 

                                               Monte Alto.

                                               Muralhas,

                                               O Guadalquivir…

 

                                               Por que cargas d’água

                                               escapei?

 

Tuna-España-Sevilla-DD 

 

 

 

 

A morte veste Prada

 

         Selma Barcellos

Selma (perfil)

 

 

 

 

 

 

 

  

“Todo dia leio cuidadosamente os avisos fúnebres dos jornais: às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas.”  

“A morte é dramática, o enterro é cômico, e os parentes, ridículos.”  

(Millôr Fernandes)

 

 

Surpresa é a notícia de que cresce no mercado o segmento ‘funeral de luxo personalizado’, tendência originada – pasmem! – nos EUA. Segundo os empresários, sucesso absoluto. Nenhum ‘homenageado’ voltou para reclamar. Quanto ao ridículo/cômico, ou nada disso, prossigam com a leitura.

Mansões, sobretudo em São Paulo, disponibilizam lounges fúnebres com decoração temática que alude a Paris e Nova York, bufês variados, manobristas, carro importado com LED para o transporte do féretro, trilha sonora – Enya, My Way, imprescindíveis – e doces, os bem-velados, distribuídos na saída, pequenos mimos para que os ‘convidados’ fiquem, digamos, satisfeitos (o morto, este sim, é um homem realizado).

Se a família preferir o evento em casa, para tudo há solução (menos para a dita cuja). Basta chamar o Funeral Home ou velório delivery. Até porque não existe segurança nos cemitérios à noite.

Uma promoter de funerais com glamour conta que tapete persa, música ao vivo e helicóptero lançando pétalas já foram atendidos. Lamenta apenas não ter podido realizar o último desejo de um cliente que queria pés de cana e limão sobre seu túmulo para “fazer caipirinhas eternamente”.

“Fico besta como morrem os personagens de Shakespeare, nem os passarinhos morrem com mais naturalidade, com mais simplicidade. Vede, o personagem faz um teatrozinho, é ferido (ninguém morre de cama, é tragédia!) e… morre. Morre assim nesta única palavra, dies. É ou não é formidável? Morrem numa palavra.”  (Otto Lara Resende)

Porém, em se tratando de oratória fúnebre, o bardo inglês é um mustSó não deixem a promoter saber.

 

 

 

Odisseia

 

 

Odisseia 

 

                                                                   ODISSEIA

 

 

                                                Não se morre de morte morrida

                                                nem se morre de morte matada.

                                                Não se morre de inopino

                                                nem se morre de destino.

                                                A morte são sutilezas,

                                                coisas que morrem em nós,

                                                esmaecidas, sem beleza,

                                                vão calando a vista

                                                vão turvando a voz

                                                sem que se disse

                                                sem que se visse

                                                até que um dia

                                                aquém, além,

                                                possamos como Ulisses

                                                ser ninguém.

 

 

 

O horror, o horror

 

 

 

atropelamento em ribeirão preto

 

 

Em 1890, Jósef Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski, polonês naturalizado britânico, subiu o Rio Congo e durante essa jornada presenciou um dos períodos mais sangrentos da triste história africana, cuja população à época, escravizada na extração de marfim, estima-se que tenha sido reduzida à metade.

Anos mais tarde, já convertido no escritor Joseph Conrad, publicou a obra-prima Coração das Trevas, com claras reminiscências daquela aventura assombrosa. O protagonista do romance, Marlow, é encarregado de subir um rio até o posto comandado por Kurtz, um europeu que enlouquecera entre os selvagens. Kurtz só aparece nas últimas dez páginas, mas sua presença pesa sobre o livro todo. Esse personagem, louco ou lúcido demais (o que talvez seja a pior forma de loucura), equilibra-se na tênue linha entre civilização e selvageria. Suas palavras finais resumem não apenas a história colonial da África, mas de toda a humanidade: “O horror, o horror.”

Francis Ford Coppola, a partir do livro de Conrad, e deslocando a ação para o Vietnã, realizou em 1979 outra obra-prima, o filme Apocalypse Now, com Marlon Brando no papel de um Kurtz coronel desertor do exército norte-americano.

Ontem, mais de 120 anos depois da experiência sinistra de Joseph Conrad no Rio Congo, nesta aprazível São Sebastião do Ribeirão Preto, que acabara de completar 157 anos no dia anterior, outrora denominada “Capital da Cultura”  e “Califórnia Brasileira”, um energúmeno endinheirado, subindo com sua possante Range Rover por uma das principais avenidas da cidade, pela qual caminhavam milhares de pessoas, de forma absolutamente pacífica e ordeira, manifestando o descontentamento cívico e ao mesmo tempo a esperança do povo brasileiro em transformar o Brasil num país melhor e mais igualitário, sentindo-se contrariado pelo bloqueio de sua augusta passagem, atirou o transatlântico terrestre sobre a multidão, matando um jovem de 18 anos e ferindo várias outras pessoas.

Não, não adianta buscar explicações.

A única explicação é aquela mesma constatada por Conrad: o horror, o horror!

Apenas o horror!

 

 

O morto e o vivo

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

 

Quando foi buscar na paróquia a sua certidão de batismo, para casar-se na Igreja, ficou surpreso. Era irmão gêmeo, e o seu irmão havia falecido. Constava, porém, nos registros paroquiais, que o morto era ele, e não o outro. O mesmo aconteceu no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Diante de tal problema, devia procurar uma retificação daqueles registros. Isto demandava tempo, advogado, e o mais. 

Sua noiva achou que ele estava era a protelar o casamento. O advogado consultado lhe disse:

— O melhor seria você continuar morto. Morto não tem responsabilidade. Pode fazer o que quiser, e não será punido. Além disso, você pode amigar, ou amancebar-se, que é melhor do que casar. A Constituição atual equipara a amigação ao casamento.

A noiva, porém, repeliu tal sugestão. Queria casar-se de papel passado e vestida de noiva.

Intervieram então o futuro sogro e a futura sogra.

— Olhe aqui — exigiram — você trate de honrar o seu compromisso. Senão, rua! 

As ruas não admitem defuntos passeando por elas. Querem-nos enterrados no cemitério.

A prova de que se está vivo, dá-a os médicos. Mas estes, muitas vezes, se enganam. Que é estar vivo? Há tão variados modos de viver que até hoje não se deu uma explicação conveniente do que é viver.

Seus pais também não puderam dar solução ao caso. Disseram-lhe: 

— Você e o seu irmão eram tão parecidos que às vezes um mamava duas vezes e o outro ficava sem mamar. 

Ele lembrava-se de que quem ficava sem mamar era ele, porque chorava muito, a despeito de se propalar que quem não chora não mama. 

Pareceu-lhe ainda que seus pais preferiam o outro, que não mais lhes dava despesa.

 O noivado rompeu-se.

E como oficialmente continuava morto, foi vivendo sem compromisso nenhum.

A lição é esta.

Viva sem compromissos, sem horários nem honorários. Vá para onde quiser, ou fique, que tudo dá na mesma.

Afinal, de um modo ou de outro, você morre.

O caso dele, contudo, era singular: se morresse, não havia como passar-lhe o atestado de óbito, porque já morrera muito antes.

Ora, ora, viver ou morrer não é a mesma coisa?

Vivos ou mortos, somos todos defuntos. E defunto não tuge nem muge.

defunto 

 

 

 

Adeus

 

 

assim falou zaratustra

 

 

                                     “Deus  está morto”

                                     Nietzsche dixit!

                                     Quem sabe se de fato

                                     morreu ou se resiste?

 

                                     (somente morre

                                     quem existe

                                     morreu Nietzsche)

 

                                     Depois de Deus

                                     morrer quem possa?

                                     Talvez a Morte

                                     (consorte nossa).

 

 

Ledo engano

 

 

 

Lêdo Ivo 

 

                                   O poeta Lêdo Ivo

                                   (menos lido que devido)

                                   fez a viagem só de ida

                                   lá em terras da Espanha

                                   neste triste fim de ano.

                                   Assim é a lida da vida:

                                   sempre nos apanha em ledo engano!

 

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=mcCsoscEz8Y[/youtube]

 

 

 

                                               A passagem

 

 

                                                                                                                   Lêdo Ivo

 

 

                                   Que me deixem passar – eis o que peço

                                   diante da porta ou diante do caminho.

                                   E que ninguém me siga na passagem.

                                   Não tenho companheiros de viagem

                                   nem quero que ninguém fique ao meu lado.

                                   Para passar,exijo estar sozinho,

                                   somente de mim mesmo acompanhado.

                                   Mas caso me proíbam de passar

                                   por seu eu diferente ou indesejado

                                   mesmo assim eu passarei.

                                   Inventarei a porta e o caminho

                                    passarei sozinho.

 

 

 

Millôr

 

 

 

 

            Millôr foi único, até no nome.

 

 

Sempre me benzo — e se em vez de Millôr Fernandes eu me chamasse Bulbo Raquidiano?

Claro, sabemos muito bem que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?

O cadáver é que é o produto final. Nós somos apenas a matéria prima.

Todo homem nasce original e morre plágio.

Morte súbita é aquela em que a pessoa morre sem o auxílio dos médicos.

Morrer é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois.

 

 

http://mais.uol.com.br/view/3368910

(clique no link acima para assistir a uma entrevista de Millôr falando sobre a vida) 

 

 

 

O italiano de Lisboa

 

 

 

  

 

          O escritor italiano Antonio Tabucchi, que afirmava sonhar em português, língua que amava e na qual escreveu grande parte de sua obra, morreu ontem na sua Lisboa, onde vivia nos últimos anos.

            Quando as pessoas morrem, principalmente se são famosas, só se dizem trivialidades.

            Prefiro ficar então com o Requiem que o próprio Tabucchi escreveu para Pessoa, sua outra grande paixão:

 

[…]

 Em rigor, um Requiem teria de ser escrito em latim, pelo menos é o que prescreve a tradição. Ora, acontece que eu, infelizmente, não me dou bem com o latim. Seja como for, percebi que não podia escrever um Requiem na minha língua e que precisava de uma língua diferente, uma língua que fosse um lugar de afeto e reflexão.

Este Requiem, além de uma “sonata”, é também um sonho, durante o qual a minha personagem vai encontrar vivos e mortos no mesmo plano: pessoas, coisas e lugares que precisavam talvez de uma oração, oração que a minha personagem só soube fazer à sua maneira, através de um romance. Mas, acima de tudo, este livro é uma homenagem a um país que eu adotei e que também me adotou, a uma gente que gostou de mim e de quem eu também gostei.

Se alguém observar que este Requiem não foi executado com a solenidade que convém a um Requiem, não posso deixar de concordar. Mas a verdade é que preferi tocar a minha música não num órgão, que é um instrumento próprio das catedrais, mas numa gaita de beiços, que se pode levar no bolso, ou num realejo, que se pode levar pelas ruas. Como Drummond de Andrade, sempre gostei de música barata, e como ele dizia, não quero Haendel para meu amigo, nem ouço a matinada dos arcanjos. Basta-me o que veio da rua, sem mensagem, e, como nos perdemos, se perdeu.

 

            A vantagem do escritor ─ se alguma vantagem há na morte ─ é que mesmo depois de morto ele permanece por aqui nos seus livros, como Tabucchi agora se acha aqui comigo no seu livro que tenho em mãos:

 

A quinta estava mergulhada o silêncio, tinha-se levantado uma brisa fresca que acariciava as folhas da amoreira. Boa noite, disse, ou melhor: adeus. A quem ou a quê estava a dizer adeus? Não sabia bem, mas era o que me apetecia dizer em voz alta. Adeus e boa noite a todos, repeti. Encostei a cabeça para trás e pus-me a olhar para a lua.