Annibal Augusto Gama
Não seria adequado que ela viesse à minha casa, àquela hora, e desacompanhada. De qualquer maneira, eu sou velho, e embora me achasse só, não vi nenhuma inconveniência na sua visita. Pela janela, eu havia percebido quando ela desceu do coche. Segurava um dos lados da saia, que se arrastava no chão. Além do véu, as abas do grande chapéu cobriam-lhe parte do rosto. Trazia uma sombrinha na outra mão. Do corpete bem apertado desabrochava-lhe o busto, com os seios firmes.
Abri-lhe a porta.
Ela entrou, olhou-me por trás do véu, e antes de me estender a mão, descalçou a luva de cano alto. Com uma reverência, beijei-lhe os dedos. Ela sorriu, e tirou o chapéu. Desprendia-se do seu corpo um perfume suave. Peguei-lhe o chapéu, a sombrinha, as luvas, e fui pousar tudo no porta-chapéus. Em seguida, movi para perto dela a poltrona mais confortável, e ela sentou-se. Ainda de pé, perguntei-lhe se desejava que abrisse a janela, ou se preferia que continuasse velada pela cortina. Ela fez um gesto, soerguendo um pouco os ombros nus, que entendi ser uma concordância com o que eu achasse melhor.
Puxei uma cadeira de braços e sentei-me em frente dela. Fazia um pouco de frio, e perguntei-lhe se aceitava uma chávena de chá. Respondeu-me que sim. Ergui-me, pedi-lhe desculpas por me afastar, e fui preparar o chá. Alguns minutos depois, retornei com o chá, os biscoitos, as fatias de bolo, e servi-a. E eu também bebi uma chávena de chá junto com ela. A ponta dos seus sapatinhos aparecia na fímbria da saia. Ela circulou os olhos, olhos de longos cílios, pelas prateleiras dos meus livros.
─ Disseram-me que o senhor lê muito. Com tantos livros aqui, vejo que deve ser verdade.
─ Sim, minha senhora, leio de dia e de noite. Ainda agora, antes que a senhora viesse, estava relendo…
Ela ergueu a mão.
─ Sim, eu sei… Foi por isso que eu vim.
─ Venha quando quiser, madame. Será sempre bem recebida.
Ela pousou a chávena de chá sobre a mesinha, e enxugou delicadamente os lábios com o guardanapo
─ Além de leitor contumaz, o senhor á advogado. Muito conveniente. Ele também era advogado. Mas não vim pedir-lhe que seja meu advogado, nem propor-lhe uma causa.
Com efeito, eu observei-lhe, a justiça é muito errática. E muito subjetiva. E a mim parecia que as sentenças nunca deviam transitar em julgado. Ao contrário, os processos deviam estar sempre sendo renovados, acrescidos, com novos argumentos, a eliminação de outros, as provas se sobrepondo e as sentenças se desdizendo. Até acreditava que, no outro mundo, devia ser assim. Lá, devíamos ser permanentemente inocentes e culpados.
─ O senhor diz isto com muita graça ─ ela pareceu concordar. ─ Na eternidade, nada acaba. Tudo está começando, e continuando.
Não lhe perguntei se ela era feliz. Parecia-me bem, muito bem, no esplendor dos seus trinta e poucos anos, e supus que fosse feliz.
O que eu quis saber foi como deveria chamá-la: Senhora Capitu, ou Senhora Capitolina?
─ Pode chamar-me de Capitu. Assim sempre fui chamada, e não gosto de Capitolina.
─ Senhora Capitu, e ele, ele é feliz?
─ Não sei. Vejo-o muito pouco, e de longe. É uma pena. Já o José Dias… O José Dias vem falar comigo de vez em quando. É um homem curioso, mas evitamos falar dele.
Anoitecia rapidamente. Fui aceder as lâmpadas dos dois abajures, nos cantos da sala.
─ A senhora sente-se injustiçada?
Moveu devagar a cabeça, duvidosa.
─ O senhor mesmo disse-me há pouco que a justiça é muito errática. Além disso, não fui julgada, nem condenada regularmente.
Era verdade. Todavia, de um modo ou de outro, ele a condenara.
Ela pareceu adivinhar o que eu pensava, e retorquiu:
─ Sim, é o que está no livro. Mas não foi ele que escreveu o livro.
Eu podia admitir que sim. Ainda que escrito na primeira pessoa do singular, como se fosse uma autobiografia, não fora ele que o escrevera.
─ O senhor sabe que foi o Senhor Machado de Assis quem o escreveu. O Senhor Machado de Assis era um homem surpreendente e suspicaz. Gostava de pôr as pessoas em confronto e dar-lhes interpretações controvertidas que confundiam os seus próprios leitores. Enquanto isso, ele ria à socapa.
Era um modo de ver as coisas. No entanto, como é que Machado de Assis soubera de toda a estória, com tantas minúcias, desde a adolescência de Bentinho e de Capitu?
─ O senhor não ignora que o Senhor Machado de Assis tinha muito ciúme de sua mulher, Dona Carolina. A fidelíssima, a irreprochável Carolina. Imagine se ele tivesse tido um filho com Carolina, e o filho parecesse com qualquer das pessoas das relações de ambos?
─ Então a senhora acha que ele transferiu uma hipótese intimamente formulada para uma criação literária?
─ Não, não digo que ele transferiu tudo. Ele devia conhecer-nos, ou informar-se de nós através de outros. Havia, na época, muitos mexericos, tantos como ainda há hoje, e o Rio, a Corte, era uma cidade muito pequena. Daí a imaginar ou criar o restante foi um passo. Mas não nego que tudo está muito bem entrelaçado.
Por que então ela não perguntava diretamente a Machado de Assis?
─ A senhora o vê por lá o Senhor Machado de Assis?
─ Não. Ele se encontra noutro setor, com as pessoas da sua profissão e talento. O lugar é muito vasto.
─ Mas a senhora deve estar com Dona Carolina. Por que não lhe pede para falar com o marido a fim de que se resolva a sua situação?
─ Porque agora é tarde, muito tarde, e já não adianta nada.
Sim, ela tinha razão. Quantos milhares de leitores já não tinham lido Dom Casmurro e firmado posição a favor de Capitu, ou contra?
─ Sabe o que mais? ─ ela prosseguiu. ─ Bentinho nunca deixou de ser um adolescente. Um adolescente incurável. Eu amadureci, ele não.
Com toda aquela sutileza, com toda aquela malícia, com todas aquelas reflexões do romance? Ah, sim, ela sustentava que não fora ele que escrevera o livro, mas Machado de Assis. A culpa era de Machado de Assis.
Levantou-se da poltrona. Estendeu a mão para se despedir. Fui buscar-lhe o chapéu, a sombrinha, as luvas.
Graciosa como sempre, passou pela porta. Vi quando subiu ao coche. E partiu.
SONETO CAPITOLINO
Teus olhos oblíquos e ubíquos
obnubilam a todos que ousam lê-los
e nunca mais deixarão de vê-los
sem obliteração aonde vão.
Olhos dissimulados, de ressaca,
sortilégios de um velho bruxo casmurro
que se esquiva, desguia, vira a página
e nos conduz para a armadilha
dos teus olhos capciosos
que como arautos mudos
capturam os bentos e os malditos
os precatados e os incautos
a lhes prenunciar o mundo
que se descortina além-retina.
Antonio Carlos Augusto Gama