Camões na gruta de Macau, em gravura de Desenne, 1817
Já ninguém duvidará que foi pobre Camões, para não dizer indigente, que viveu sem ofício nem benefício e assim morreu, tão desconsoladamente, na sua casa da Mouraria, em asilo ou hospital, em miserável catre, sem ter um lençol que lhe servisse de mortalha, como informou o carmelita descalço Frei José Índio. Fora de Portugal, em Moçambique ou alhures, soldado raso, tão pobre continuou que “comia de amigos”. E confirma a sua pobreza D. Gonçalo Coutinho, que transferiu a sua sepultura para o interior da Igreja de Santa Ana, mandando gravar-lhe o epitáfio:
“Aqui jaz Luis de Camoens
Príncipe
Dos Poetas de seu Tempo,
Viveu pobre e miseravelmente
E assim morreo”.
A mesa de seus pais, na Mouraria, devia condizer com essa escassez de mendigos, comendo todos o pão que o diabo amassou, e bebendo a água da bica, tanto que o poeta, a troco de umas moedas, ou em espécie, fazendo versos, de que se serviam terceiros como autores, reclamava de um deles as galinhas que lhe haviam sido prometidas:
“Cinco galinhas e meia
Deve o senhor de Cascais,
E a meia vinha cheia
De apetite para as mais”.
Dirige-se ele também, em redondilhas, “A um fidalgo que lhe tardava com uma camisa que lhe prometera”:
“Quem no mundo quiser ser
Havido por singular,
Para mais se engrandecer,
Há-de trazer sempre o dar
Nas ancas do prometer.
E já que Vossa Mercê
Largueza tem por divisa,
Como todo o mundo vê,
Há mister que tanto dê,
Que venha a dar a camisa”.
Aquilino Ribeiro, em seu livro Luís de Camões”, vol. I, fazendo prova larga de que o épico vivia sem profissão, renda ou prebenda, anota que tirava ele ocasionalmente o sustento naquele versejar para outros, e parcamente remunerado: “Os proventos do autor e representante, embora exíguos, somados ao versejador de encomenda, um soneto a este galã, um vilancete àquele peralta, uma ode ao fidalgo velho e baboso, tais e tais redondilhas ao palaciano, versos religiosos aos frades e à beata, perfazem a fonte econômica a que Luís de Camões iria buscar seus meios de vida. Nada haveria, no entanto, mais eventual e precário, em despeito da boa fama que pudesse correr de sua arte”.
A tença que lhe chegou, quando da publicação dos Lusíadas, veio tarde, ao fim da vida. E ainda assim, demorou a ser paga, emperrada nos desvãos da burocracia reinol, o que explica a pobreza que o continuou assolando na casinha da Mouraria.
Nem lhe valeu o precário cargo de Provedor de Defuntos, no exílio, e de que, por intrigas ou perseguição, foi logo alijado, acusado de desfalque, e levado preso para Moçambique. Prisão outra já sofrera, no Tronco, em Lisboa.
Outra lenda é da sua pretendida fidalguia, quando não passava de escudeiro, último degrau na escala social em que se marginava com os pobres diabos, os vilões e joãos ninguém.
É ainda Aquilino Ribeiro que impugna a história de que Camões teria escrito boa parte de Os Lusíadas na Gruta de Goa, que mediria 1,35m por 3,20m, e “serviria para um gorila não para um civilizado”.
E ainda observa.
“Além da incomidade que revestiria permanecer lá mais tempo do que permite o desenfado, há absurdo em querer elevá-la à categoria de cela, casulo que seja, dum trabalhador intelectual das exigências de Luís de Camões. Os Lusíadas, com efeito, não são apenas obra de joalheiro, mas de erudito. Para compor aquelas estâncias, em que se encadeia, por via de regra com engenhosa arte, a mitologia com a ciência, toda a gama das ciências, era forçoso compulsar os textos. Supondo que o espaço do recinto era suficiente para este exercício, Camões teria que transportar para lá todos os dias a sua cabazada de livros”.
Aqui bate o ponto.
Fora de qualquer contestação, Os Lusíadas não são obra apenas de um grande poeta. São obra de um erudito, de um historiador, que tinha profundo conhecimento geográfico, estudara a cosmovisão ptolomaica, a astronomia, a medicina, a náutica, e outras ciências, vasculhara com mão noturna e diurna a mitologia, lera Virgílio, Ovídio, e os clássicos da literatura latina na própria língua, e Homero, Platão e Aristóteles em traduções, estudara os fenômenos atmosféricos, compulsara assiduamente Petrarca, impregnara-se do dolce stilo nuovo, abeberara-se em todos os escritores portugueses, enfim, que tinha um saber enciclopédico, abrangendo tudo o que se sabia na época.
Para tanto, no mínimo, seria preciso que Camões possuísse uma preciosa livralhada, uma biblioteca.
Como ajustar-se, porém, esta livraria, de difícil transporte, com a sua pobreza franciscana, com os seus desterros e prisões, com as suas viagens, abrigando-se em miseráveis choupanas onde foi largado como soldado raso? Indo nas naus para terras de África e da Índia, sem ter de seu mais do que uma muda de roupa e a espada, espremido nas enxergas dos tripulantes, como levaria consigo tantos autores e livros?
Ninguém o explica, nada o explica.
Convém lembrar que Lisboa, na época, “excluindo servos e escravos, de pequeno âmbito”, tinha uma população de menos de cem mil habitantes. A classe mais baixa, certamente, era a maioria. Vivia de seus ofícios miúdos. Analfabetos havia-os por toda a parte, até mesmo entre nobres e fidalgos. Os conventos decerto tinham a sua livraria, de livros religiosos e para religiosos na maior parte. Imperavam a censura e a Santa Inquisição; ainda a mais grave obra podia ser tida como herética, e excluída das bibliotecas. Os Lusíadas, para serem publicados, tiveram de obter licença d’el Rei, e submeter-se ao imprimatur de Santa e Geral Inquisição, através de Frei Bartolomeu Ferreira, que ainda assim alertou os leitores de que o poeta se valera da “ficção dos Gentios”, isto é, dos deuses mitológicos, o que seria “fingimento”, do autor como poeta, e que esses deuses pagãos “sam Demonios”.
Nem se elevava Lisboa à categoria das nossas cidades médias que abundam por aí. Não se suponha também que as letras e as artes se refugiavam nos palácios, numa corte ilustrada que cultivava a leitura. Alguns raros fidalgos naturalmente eram amantes das belas artes. O mais que se cuidava era dos privilégios de sangue, entregue o resto à mercância, às conquistas ultramarinas, às guerras contra os hereges, ao comércio das especiarias, à aurea sacra fames. Só se distinguia a arquitetura, na construção dos palácios e das igrejas, e seu ornamento. Não ficaram grandes nomes de pintores, em Portugal. Sobreviveram a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerônimos, o Mosteiro da Batalha, fortins, e palácios. E floresceu a indústria náutica, com as suas caravelas e os seus instrumentos de navegar, cujo incentivo vinha de longe, com Sagres e o Príncipe D. Henrique. Portugal, que tanto se expandira em colônias além mar, decaía, com sua rivalidade da Espanha, as incursões dos piratas franceses e ingleses, e o domínio da França e da Inglaterra. Quase só lhe restou o Brasil, para onde, mais tarde, fugindo das tropas de Napoleão, D. João VI viria, trazendo a sua biblioteca e a parasitagem de sua corte, com Dona Maria, a Louca.
O próprio Camões, de volta a Portugal, na estância 145 do último Canto do seu poema, com clareza vê que já pouco representava para os nobres, e o povo em geral, a arte e o engenho: “Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho / Destemperada e a voz enrouquecida / E não do canto, mas de ver que venho / Cantar a gente surda e endurecida. / O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza.”
Mas a indagação fica no ar: que livros tinha consigo Camões, para deles haurir a espantosa erudição, o diversificado conhecimento da máquina do mundo, que espalhou por toda a sua epopeia, e ainda pela sua obra lírica? Sem dúvida, para mostrar-se exato e veraz, teria de consultá-los a miúdo, lê-los e relê-los.
Cem livros (o que não é muito) já são um transtorno para quem, como ele, em sua extrema pobreza, haveria de se dispersar em aventuras, viagens marítimas que duravam mais de dez meses, exílios, combates, doenças, e tinha ainda de prover como podia a própria alimentação, procurar hospedagem em cantos imundos, e até dormir ao relento. E os livros pesam, sobrecarregam a bagagem, teriam de ser levados de um lugar para outro, são roídos pelas traças, destroem-se com a umidade, o mofo, encharcavam-se com as tempestades que acossavam as naus. Além disso, custavam caro para quem não tinha nem como se alimentar, eram raros e difíceis de se adquirir.
Pode-se pensar em apenas alguns livros fundamentais que ele mantinha consigo: a Bíblia, a Eneida de Virgílio, Petrarca, um ou outro Platão e Homero, estes traduzidos para o idioma português. Talvez alguns livros de história e de geografia. Quem sabe menos que os dez livros que levaríamos para uma ilha deserta, conforme esta questão repetida que nos propõem periodicamente as revistas e os jornais. Eram nada para quem tudo abordou em Os Lusíadas e na sua obra lírica; para quem foi mestre da língua, de correção impecável, sem estar grudado a gramáticas e gramaticadas. Dicionário? Teria ele em mãos, nas suas aventuras e desventuras, algum dicionário? Qual?
É válida a suposição de que, em África, na Índia e na China, se valesse da livraria de algum vizo-rei ou potentado, que complacentemente lhe abrissem a porta, ou dele se servissem como escriturário, ou lhe encomendassem odes e sonetos, cuja autoria fraudulentamente se outorgariam. Camões foi, neste sentido, um ghost-writer avant la lettre, profissão que hoje já se oficializou até entre nós, e rende dinheiro. Menos para o nosso poeta, que trocava os seus versos por galinhas e uma camisa, e não as recebia dos devedores.
Que livros possuía Camões, em que livros tanto aprendeu para tão fartamente carregar de ensinamentos a sua obra? Nem sequer se pode supor que escrevesse no silêncio das bibliotecas, compulsando-os. A sua vida aventureira, as arruaças em que se meteu, desterro e viagens, a companhia de soldados rudes e de prostitutas, era mais própria de quem escrevesse nas tascas, ou sobre os joelhos, tremendo de frio no inverno e abrasado pelo sol do verão, e não raro faminto. E ele não passou dos cinqüenta e seis anos, vivendo os últimos deles em Lisboa já avelhantado, doente, alquebrado, rondando as ruas como um pedinte. É verdadeiramente admirável que ainda assim deixasse a obra que compôs, à qual com fulguração dos versos se juntava a escrupulosa doutrina bebida em muitos autores, nos clássicos da antiguidade e nos contemporâneos.
Nem mesmo se admite que, na adolescência e na mocidade, tivesse estudado na Universidade de Coimbra, onde se debruçaria sobre os compêndios por longos anos. Não fez cursos regulares, não dispunha das rendas dos pais ou de parentes, não pode abrigar-se à proteção de ninguém. Em suma, “viveu pobre e miseravelmente, e assim morreu”.
Leiam-se Os Lusíadas. Em cada estrofe, em cada verso, debruçar-se-iam mais tarde os comentadores para explicar a exatidão dos termos geográficos, das referências históricas, das tramas mitológicas, das anotações dos fenômenos meteorológicos, das indicações da cosmologia, da medicina, da náutica. Já no quarto verso da primeira estância do Canto Primeiro, “Passaram muito além da Taprobana”, vem Augusto Epifânio da Silva Dias, e explica: é a parte “do Oceano Atlântico e do Mar das Índias, que banha a África pelo lado Meridional”, e aponta em seguida Heródoto, os fenícios, Ovídio que, “querendo citar um ponto da terra muito remoto, nomeia a ilha de Taprobana”, socorre-se ainda de Plínio, e completa que, para Camões, a Taprobana era a ilha de Ceilão. E logo depois, ao verso sexto da segunda estância (“Se vão da lei da morte libertando”), vale-se outra vez de Plínio e da Epístola de São Paulo aos Romanos, de que talvez seja ele uma reminiscência: “Nunc autem soluti sumus a lege mortis”. E assim por diante, interminavelmente, em cada verso. Se vamos a outro comentador, Francisco da Silveira Bueno, imediatamente após o primeiro verso da primeira estância do Canto Primeiro, “As armas e os barões assinalados” (e nem seria preciso dizê-lo), lembra ele o Virgílio da Eneida: “arma virumque cano…”
Desta maneira seguem todos os comentadores, repetindo-se uns aos outros, mas de tal sorte que não há verso de Os Lusíadas, ou da obra lírica de Camões, que não se reporta a exemplos de muitos outros poetas e autores, para confirmar a sua exatidão e os vastíssimos conhecimentos dele.
Certamente, para escrever o seu poema épico e a sua lírica, Camões tudo leu, ilustrou-se em milhares de livros e autores.
Mas onde estaria esta vastíssima biblioteca, como poderia tê-la consigo, na sua vida miserável, sem ócio e com muitos maus negócios?
Mistério, mistério indevassável.
Convém ainda lembrar, que já no Século XVIII, aqui no Brasil e também em Portugal, eram raríssimos os que estivessem na posse de uma biblioteca particular de pouco mais de cem livros. Em Vila Rica, à época da Conjuração Mineira, as pessoas abastadas e ilustradas tinham poucos livros, como Cláudio Manuel da Costa com os seus trezentos e oitenta e três volumes, quase todos de Direito e uns poucos volumes de Camões, Quevedo e Calderón de la Barca; Tomás Antônio Gonzaga possuía oitenta e três, Alvarenga Peixoto dezessete e o Coronel Francisco de Paula oitenta e quatro. Somente o cônego Luís Vieira da Silva tinha uma rica biblioteca de cerca de oitocentos volumes, segundo Rubens Borba de Moraes (Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial) e Eduardo Frieiro (O Diabo na Livraria do Cônego). E eram excepcionais os donos dessas livrarias, gente bem posta na vida, alguns em cargos públicos, ao contrário de Camões, sem eira nem beira. Gente estável, assentada, sem aventuras nem desventuras, que só a Conjuração veio a desgraçar, mandando alguns para o desterro.
Aquilino Ribeiro é pela hipótese de que Camões tenha estudado em Lisboa, e não em Coimbra. E lembra o que diz o Visconde de Juromenha: “As relações que Simão Vaz de Camões tinha com os padres de S. Domingos, que naquele tempo gozavam de bastante reputação literária; a proximidade da casa com o convento; a docilidade com que o poeta a seu rogo emendou e riscou alguns lugares do poema; e o recreio que mostrava e a consolação que sentia com a companhia destes religiosos nos últimos e desgraçados tempos da sua vida, arrastando-se, encostado a umas muletas, para ouvir as lições de teologia que se davam neste convento, me faz acreditar que fossem estes religiosos os primeiros preceptores do nosso Poeta, frequentando ele as suas aulas, que naquele tempo eram concorridas pelas principais pessoas da Corte”.
Conjeturas… Porque é certo que Camões não chegou a completar nenhum curso regular. E se tão achegado estivesse ele aos padres de S. Domingos, por que ao fim de sua vida verdadeiramente os sacerdotes não o agasalharam e ampararam, deixando-o a vagar pelas ruas, doente e sem uma moeda na algibeira?
Mais difícil será admitir que tivesse estudado na Universidade de Coimbra.
De qualquer maneira, os anos escolares foram breves e poucos. Logo estava Camões a compor as suas redondilhas, as suas odes, elegias e sonetos, a vender alguns poemas por pouco ou nenhum dinheiro aos fidalgos que os encomendavam, a frequentar a súcia de malandros dos bairros de má fama, a acutilar pagem da Corte, a sofrer prisão no Tronco, a ser desterrado e despachado para Ceuta, a navegar como soldado para a Índia e para a China.
As suas leituras devem ser do tempo da adolescência e do começo da mocidade, quer se fizessem na livraria do Convento de S. Domingos, ou alhures, nas bibliotecas de fidalgos que lhe dessem acesso. Naturalmente, continuou lendo a vida toda, nas mesmas circunstâncias, porquanto dificilmente teria consigo mais de vinte volumes, apenas seus.
Voltando a Aquilino Ribeiro, para quem Os Lusíadas não são apenas obras de joalheiro, mas de erudito, e para compor as suas estâncias, em que se encadeiam a mitologia com a ciência, toda gama de ciências, “era forçoso compulsar os textos”.
Que textos e que autores, se o poema todo, ou em grande parte, foi composto na Índia e na China, e o poeta, desprovido de biblioteca, vivendo do ínfimo soldo de soldado, e logo demitido do efêmero cargo de provedor, e preso, não podia ter consigo, de seu, mais que a roupa do corpo e uma vintena de livros?
É realmente um mistério. A vastíssima erudição refletida no poema épico e em toda a sua obra exigiria que ele tivesse à mão uma rica biblioteca. A biblioteca que nunca teve. E só a genialidade de Luís Vaz de Camões, servida por uma memória espantosa das leituras que fez e registrou com absoluta exatidão, para se servir dos autores quando lhe aprouvesse, sem compulsar-lhes o texto, pode explicar este mistério.
Annibal Augusto Gama
Extraído do livro “Os Diamentes de Ophir”, Funpec Editora