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Um elogio ao amor puro

 

         Selma Barcellos

Selma no Jardim de Luxemburgo

 

 

 

 

 

 

 

 

“Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.

Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, banancides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso “dá lá um jeitinho sentimental”.

Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. é uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra.

A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.”

 

Texto de Miguel Esteves Cardoso para o Expresso

 

 
“Que reste-t-il de nos amours” (Charles Trenet – versão de Ronaldo Bastos), com Henri Salvador e Rosa Passos
 
 
 
 

Place des Vosges

 

                 Alfredo Fressia

Alfredo Fressia

 

       

 

 

 

 

PLACE DES VOSGES

 

Alfredo Fressia

 

 

Futuro era el de antes, el del tiempo de mis quince años. Todas las noches me gasto las suelas de los zapatos caminando hasta la plaza Matriz, y me siento a esperar el futuro. Vení, comprá maníes con chocolate y sentate. Las mujeres que fuman ya me conocen. Yo no, todavía no me conozco. Y tampoco miro a nadie, ni a nada. Como maníes con chocolate. ¿Espera a alguien? Sí, al futuro. Respiro hondo, sentado del lado de la Catedral, de espaldas a la calle Sarandí. Todas las noches, soy asiduo y puntual. Sé que cuando el futuro aparezca, vendrá volando por atrás del Cabildo. Una ráfaga, y yo lo atraparé en mis pulmones y me llevará leve como en un globo, lejos de la p laza. La noche está fresca, llovió de tarde. ¿Y hoy, llegó? No, debe estar atrasado, viene de muy antes. Los maníes con chocolate me pesan como una piedra. Y me miro los zapatos, desamparados.

 

 place des vosges 2

 

 

PLACE DES VOSGES

 

 

Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

 

Futuro era o de antigamente, o do tempo de meus quinze anos. Todas as noites gasto as solas dos sapatos caminhando até a praça Matriz, e sento-me esperando o futuro. Vem, compra amendoins com chocolate, senta aqui. As mulheres que fumam já me conhecem. Eu não, não me conheço ainda. E tampouco olho para ninguém, nem para nada. Como amendoins com chocolate. Ele espera alguém? Sim, o futuro. Respiro fundo, sentado ao lado da Catedral, de costas para a rua Sarandi. Todas as noites, sou assíduo e pontual. Sei que quando o futuro aparecer, virá voando por trás do Cabildo.  Uma lufada, e o pegarei nos meus pulmões e ele me levará tão leve como um balão, longe da praça. A noite está fresca, choveu à tarde. E hoje, ele chegou? Não, deve estar atrasado, ele vem de muito antes. Os amendoins com chocolate pesam-me como uma pedra. E olho meus sapatos, desamparados.

 

 

“Jardin d’hiver” (Benjamin Biolay / Keren Ann), com Stacey Kent

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