Deste cais
De revoos
E migração dos sonhos,
Sob sol e azul
Em deslimite,
O poema, em vertigens,
Insiste.
Selma Barcellos
https://www.youtube.com/watch?v=86_SUeOWXmI
“Vieste” (Ivan Lins / Vitor Martins), com Lenine
TODAS AS PALAVRAS
A palavra é larva
que se transmuda
desprende da língua muda
e no seu voo sonoro
engravida os ouvidos
repetindo o milagre
da Imaculada Conceição.
A palavra lavra
a folha branca
depositando no seu ventre liso
negras sementes
que fecundam os olhos
e a imaginação.
Como no poema de Bandeira
a minha vida fica
cada vez mais cheia
de palavras
(e de minhas tantas tolices)
todas as palavras menos uma
a que você nunca me disse.
“Tantas palavras” (Dominguinhos / Chico Buarque), com Chico
RETRATO FALADO
Quando no espelho me fito
é outro aquele que vejo,
sou eu mesmo que reflito
ou outrem que em mim desejo?
Quando recordo o que fui
vislumbro uma errante sombra,
é só a lembrança que flui
ou um fantasma que me assombra?
Quando penso o que serei
não atino aonde vou,
eu apenas me sonhei
ou de fato aqui estou?
o pássaro azul
(Charles Bukowski ─ Tradução: Pedro Gonzaga)
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
quer foder com minha
escrita?
quer arruinar a venda dos meus livros na
Europa?
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique
triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro,
e você?
Mestre Millôr está contigo e não abre, Selminha…
Poesia Matemática
Millôr Fernandes
Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
“Quem és tu?”, indagou ele
em ânsia radical.
“Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.
CHEMIN VERT
Para Ivan, João, Rubem e Ariano
Do outro lado da janela
o muro.
Do outro lado do muro
(para aquele que pula)
pulula o caminho verde.
Na folhagem/voragem do tempo
recolho esse instante na brandura
das pétalas encerradas
entre as páginas dos livros
(mas jamais ressequidas)
e prossigo pelo além perfume.
Mais tarde, aquém muro,
tornarei às coisas que findam
e aos homens que morrem.
Brenno Augusto Spinelli Martins
MEIO-DIA
Meio-dia
E ela espreguiça
E levita entre nuvens,
Estrelas e orvalhos
Que colheu de manhã.
Meio-dia
E ela medita
E me dita as palavras
Que quer ver escritas
No livro da tarde.
Meio-dia
E ela se excita
E recita a poesia
Que quer que eu repita
Na calma da noite.
(Foto de Claudia Pereira)
“Flor da Idade” (Chico Buarque)