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Golpe e Ditadura

 

             Euclides Rossignoli

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No próximo dia 31 de março estaremos meio século distantes do golpe que derrubou o governo do presidente João Goulart. Eu tinha 25 anos, morava em São Paulo e acabara de ingressar na universidade. Era membro do Partido Comunista Brasileiro, a mais importante organização de esquerda da época, que atuava na clandestinidade e era comandada pelo revolucionário histórico Luis Carlos Prestes.

O golpe inaugurou o período da ditadura militar, durante a qual as eleições foram abolidas e cinco generais se revezaram na presidência da República como ditadores. O agrupamento político de esquerda que hoje se encontra à frente dos destinos da Nação, liderado pelo PT, certamente produzirá um bom volume de atos e discursos para maldizer a data.

Será lembrado que o presidente João Goulart, eleito em eleição livre, foi deposto por um golpe de direita liderado pelos militares, porque pretendia fazer grandes reformas em benefício do povo e do País. Será dito que, uma vez expulso do governo o presidente legitimamente eleito, os militares instalaram uma ditadura que durou mais de 20 anos e que, entre outras coisas más, aprisionou lideranças populares, cassou mandatos de parlamentares e outros políticos, acabou com a eleição para a escolha do presidente da República e governadores de estados, interveio em sindicatos de trabalhadores, instituiu a censura à imprensa e às produções culturais, assim como perseguiu, torturou, matou e fez desaparecer pessoas que se dispuseram a lutar pela democracia.

Os mártires da ditadura serão lembrados e reverenciados. Os ditadores e seus seguidores serão amaldiçoados. A verdade histórica, porém, será relembrada e contada na porção e proporção dos interesses daqueles que hoje estão no poder. Isto significa que cederá generosos espaços ao engano e à propaganda. Por exemplo: todos os que sofreram e morreram por obra da ditadura terão sofrido e morrido em nome da sagrada causa da democracia, versão que não tem a evidência dos fatos.

Alguns pedaços dos acontecimentos serão naturalmente silenciados, quando não deturpados. Como governava o País o presidente João Goulart, especialmente no seu último ano de governo? Qual era o agrupamento político mais poderoso no âmbito das forças esquerdistas que apoiavam o presidente? Como se posicionavam as forças que apoiavam Goulart diante da divisão mundial entre o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco dos países ditos socialistas, governados pelos comunistas e liderados pela então União Soviética? Por que as forças de esquerda e o governo perderam apoio popular para a direita? Após o golpe militar, como se comportaram as forças mais radicais da esquerda? Na ditadura, as primeiras ações armadas contra os militares ocorreram antes ou depois do Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968? Qual era a ideologia dos grupos de esquerda que organizaram a luta armada contra a ditadura? Em que paises foram treinadas as lideranças das forças guerrilheiras que promoveram a luta armada?

As respostas da verdade histórica a essas perguntas não são cômodas para a esquerda bolivariana que hoje governa o País. Compreende-se que ela não se disponha a respondê-las. Ou pelo menos não se disponha a respondê-las com a sustentação dos fatos.

Em 1964, tanto as forças que apoiavam o governo como as forças que lhe faziam oposição não exibiam maior fervor pela democracia. Esquerda e direita travavam uma guerra de vida ou morte para ver quem eliminava o adversário, não para estabelecer um regime verdadeiramente democrático. Venceu a direita.

O partido em que eu militava, o PCB, o grande aliado de Goulart, tinha, como sempre teve, por objetivo chegar à ditadura do proletariado, não à democracia. A democracia era aceitável temporariamente, como meio, não como fim.

 

 

 

Larga ela lá

 

            Euclides Rossignoli

 euclides rossignoli

 

 

 

 

 

Bem antigamente, quando não havia nenhum sistema público de saúde, a coisa era mais ou menos assim: o sujeito, quando precisava de atendimento médico, ou pagava tudo (consultas, exames, internações, remédios), ou era tratado como indigente, e aí não pagava nada.

Um belo dia apareceu no escritório do advogado Dr. João Bento um conhecido dele, um agricultor que vivia de muita labuta num pequeno pedaço de terra que havia herdado do pai.

Contou o caso:

— Dr. João Bento, em vim aqui pra ver se o senhor tira a minha mulher que está internada na Santa Casa.

— Mas o que é que está acontecendo?

— É, doutor, minha mulher teve de ser internada às pressas na Santa Casa e precisou ser operada. Já faz mais de quinze dias que ela está lá, mas agora, graças a Deus, está boa, está curada.

— E qual é o problema, então?

— É que eles disseram que não dão alta pra ela enquanto não pagar a conta. E eu não tenho dinheiro, doutor. O que eu tiro lá no sitinho quase não dá nem pra gente comer. Mas eles não querem saber. Disseram que, enquanto eu não pagar, eu não posso levar minha mulher embora. Então eu vim aqui pra ver se o senhor dá um jeito de tirar ela de lá.

— Eles estão tratando mal sua mulher?

— Não, doutor, isso não. Ela está sendo tratada muito bem.

— Então você larga ela lá na Santa Casa.

— Sem pagar, doutor?

— Sem pagar.

— Mas pode fazer isso, doutor?

— Você tem dinheiro para pagar?

— Não, isso eu não tenho.

— Então faça o que eu lhe disse. Mas não apareça mais na Santa Casa. Vai cuidar do seu serviço.

Cinco dias depois o agricultor voltou a procurar o advogado.

— Dr. João Bento, o senhor falou pra mim não aparecer mais na Santa Casa, então eu não fui, mas eles já mandaram avisar três vezes lá em casa que deram alta pra minha mulher.

 

sus

 

 

Filhos da inocência

         

         Euclides Rossignoli

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Pela ampla repercussão que tem em diferentes níveis da vida do País, entendo que o mais grave problema brasileiro é a explosão da reprodução humana nos grupos mais pobres e de menor escolaridade da população. É incompreensível a  desatenção do poder público, da instituição família e dos meios educacionais com relação a ele.

Eu me inquieto com os adolescentes, aqueles meninos e meninas,  que se tornam pais sem o desejarem aos treze, catorze ou quinze anos. É muito triste ver uma menina nesta idade engravidar sem querer engravidar e ter um filho sem que conscientemente o desejasse.

A vida dos adolescentes que involuntariamente se tornam pais passa normalmente por grandes transtornos. O menino, sem condição econômica de corresponder ao evento, muitas vezes abandona a menina e o filho ao Deus dará. Mas, se for pessoa sensível, terá de carregar pela vida toda a culpa pelo abandono. A adolescente, por sua vez, acaba tendo de deixar a escola e de assumir antes da hora um trabalho qualquer para criar sozinha o filho. 

Mas a precocidade na geração da prole produz resultados sociais que vão muito além dos problemas que afetam os jovens pais. Despreparados, do ponto de vista econômico e emocional, para cuidar da sua descendência, os jovens envolvidos acabam por sobrecarregar suas famílias. Mais tarde, com enorme frequência, aparecem os problemas dos próprios filhos na escola e, fora dela, na sociedade mais ampla. Seria de admirar que o crime e as drogas não encontrassem campo fértil, mais adiante, entre esses filhos de jovens que tão cedo se tornaram pais. 

Entre a população mais pobre e menos escolarizada a gravidez não desejada é também evento de enorme ocorrência. O resultado são os milhões de famílias que não conseguem obter sequer o necessário para a subsistência. A pobreza aguda e permanente das populações das periferias dos grandes centros e de muitas outras áreas do País guarda estreita relação com o problema da explosão da reprodução humana pela gravidez não desejada. Vai hoje pela casa dos treze milhões o número de famílias que recebem auxílio governamental direto para sobreviver.

Um sexualismo avassalador permeia toda a nossa cultura. A poderosa força do erótico está presente na TV, no cinema, na moda, na publicidade, nas revistas e nos jornais. As novelas são o exemplo mais notório. O ativismo sexual antes do casamento, que até meados dos anos 1960 era amplamente vedado às mulheres, hoje é comportamento habitual desde a adolescência.

A reprodução não desejada, que dificulta ou destrói qualquer planejamento de vida familiar, é problema sério de educação que não tem merecido a menor atenção do poder público. É preciso, pela educação sexual, tornar claro para todos, especialmente para as mulheres, que a natureza pode cobrar um preço elevado pela oportunidade do prazer sexual sem precaução. Houvesse mais cuidado nas relações destituídas da intenção de procriar e muito menos haveria para se discutir e para se legislar acerca da questão do aborto.     

Hoje, mais do que no passado, existem meios contraceptivos seguros para evitar a gravidez não desejada. O que falta é uma política que dê a todos, homens e mulheres, jovens e adultos, informação e acesso aos recursos que a ciência criou para este propósito. A ausência de ação da família e dos poderes públicos na área da reprodução humana pode, sem nenhum exagero, ser entendida como atentado a um direito elementar dos humanos: o direito que cada um tem de planejar sua vida e a vida de sua prole.

 

criança abandonada

 

 “O meu guri” (Chico Buarque), com Elza Soares

 

 

 

Parece mentira

 

           Euclides Rossignoli

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Tem coisas que eu nem gosto de contar porque parece mentira. Mas eu vou contar.

Era o ano de 1966 ou 1967. Meu amigo Roberto Pellegrino, o italiano, morava aqui em Ourinhos, mas namorava a Maria Inês — com quem veio a se casar —, que também morou aqui, mas havia mudado para Campinas, de modo que, de vez em quando, o Roberto tinha que ir a Campinas para namorar.

Uma vez, lá em Campinas, como parte do namoro, o italiano e a Maria Inês resolveram ir ao cinema. E foram. Era o Cine Carlos Gomes. Famoso. Importante.

Chegaram, compraram ingressos e entraram. Viram dois lugares bem localizados, foram lá e sentaram. O Roberto achou que estava um pouco quente e tirou o paletó. Não passou muito tempo, veio lanterninha e dirigiu-se ao italiano:

— O senhor, por favor, queira vestir o paletó. Não é permitido ficar sem paletó.

O Roberto já se dispunha a atender, quando viu ali perto um sujeito sem paletó pelo qual o lanterninha passara sem se incomodar. Falou:

— Mas olha ali aquele senhor, também sem paletó!

Aí o funcionário fulminou-o com o seguinte argumento:

— É, mas aquele rapaz já veio sem paletó. O senhor, não. O senhor veio de paletó. O senhor não pode ficar sem paletó. Não é permitido.

Foi assim.

 

Anos 60 do século passado. O Cine Ourinhos, único cinema da cidade na época, foi todo reformado. A plateia ganhou cadeiras novas. O balcão ganhou poltronas e se tornou chique. Nele, estabeleceram os proprietários, os homens só podiam entrar trajando paletó.

No início ocorreram alguns desencontros e mal-entendidos. Houve quem quisesse entrar no balcão sem paletó e quem imaginasse precisar ir de paletó para ingressar na plateia. Era novidade também para as bilheteiras e porteiros.

Uma bela noite, o professor Luiz Cordoni resolveu ir ao cinema. Foi, comprou ingresso para a plateia e se apresentou ao porteiro para entrar.

— O senhor não pode entrar.

— Por que não? Para a plateia, que eu saiba, não precisa paletó!

— É, mas o senhor está de suspensório.

De fato, o professor Luiz Cordoni usava suspensório.

 

 

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Professores e Alunos

 

            Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

— O senhor aí, que está dando tapinhas nas cabeças do colega. Pra fora da classe!

— Quem professor!? Eu!?

— É, o senhor mesmo. Pra fora da sala!

— Mas eu não fiz nada, professor!

— Eu vi. Vai pra fora da sala!

— Ah, eu não vou, professor.

— Vai pra fora.

— Eu não vou, professor.

— Não vai!?

— Não.

— Pois então fique.

Esse era um professor que tive, meio século atrás. Não lembro o nome dele, até porque todo mundo o conhecia por professor Parafuso. Suas aulas eram uma verdadeira bagunça, e acho que não há necessidade de explicar a razão.

professores e alunos 2

 

Foi em 1852, na Escola Profissional de Ourinhos, na Vila Margarida, lá no fim da Rua 7 de Setembro, perto da linha do trem. Os professores falaram. As professoras falaram. O diretor foi de classe em classe. O uniforme é cáqui. Inteiramente cáqui. Aquele brim meio cor de barro. Vocês sabem. Calça e camisa cáquis. A partir do dia primeiro do próximo mês, ninguém entra na escola sem uniforme. Essa ladainha foi repetida cansativamente durante um mês inteiro 

No primeiro dia do mês seguinte, todo mundo apareceu trajando uniforme cáqui. Calças e camisa cáquis. Uma beleza!

Todo mundo, menos um. Um só. O Aristodemo, filho de um comerciante da Barra Funda, estava de verde. Calças e camisas verdes. Mas precisamente, verde-garrafa.

— Eu não tenho dúvida. Eu ouvi muito claramente e por diversas vezes que o uniforme tinha que ser inteiramente verde-garrafa.

A molecada tinha entre doze e catorze anos. Imagine o leitor a gozação em cima do pobre do Aristodemo, que, aliás, já era visado por causa do seu nome atrapalhado.

***

E já que estamos falando de professores e alunos, aproveitemos para apreciar alguns dos absurdos que o homem é capaz de produzir numa redação de exame vestibular. Vejas as afirmações a seguir. 

Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor.

O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro d’água.

As aves Têm na boca um dente chamado bico.

O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia.

Quando um animal irracional não tem água para beber, só sobrevive se for empalhado.

O Chile é um país alto e magro.

Na Grécia, a democracia funcionava muito bem porque os que não estavam de acordo se envenenavam.

As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia.

Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia.

O terremoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas.

A harpa é uma asa que toca.

Menos desmatamentos é igual a mais florestas arborizadas.

 

 

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O inferno

 

            Euclides Rossignoli

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Quando menino, eu acreditava no céu e no inferno. Era um pavor. O céu, lugar de mil delícias, eu não conseguia imaginar uma figuração mais concreta. Mas o inferno, esse me atormentava como lugar de inefáveis sofrimentos. Eram os fogos, as trevas e os ferros mais apavorantes que a mente humana pode imaginar, fustigando dia e noite nossas pobres carnes e mentes. E, no comando de tudo, horrorosos demônios chifrudos e rabudos que se divertiam e se inebriavam com a nossa dor.

Mas havia algo ainda pior do que o tormento em si. Algo com que minha cabeça de criança nunca pôde concordar, mas que era meu terror permanente. Para mim, pior do que o tormento, pior do que todos os suplícios, era a ideia da condenação eterna. Jamais pude aceitar que a danação ao inferno fosse eterna, fosse pra sempre, pra nunca mais acabar. Nunca. Uma vez condenado à suprema degradação era o sofrer e sofrer, pela eternidade, para o sempre que jamais termina.

Esse pavor do inferno me fazia um menino medroso. Tinha medo doentio da morte. Mas um dia o seu Abilinho disse para minha mãe que era capaz de curar meus medos. Era capaz de curar a ponto de me tornar, depois, um sujeito abusador. O seu Abilinho era um caboclinho esperto e bem falante, dado a orações curativas e benzeduras. Era compadre de dona Albina, a nossa vizinha, que tinha cinco filhos e um marido que bebia muito. O seu Abilinho estava tentando curá-lo da bebida.

Tudo o que seu Abilinho precisava para me curar era que eu fosse com ele ao cemitério. Não achei graça nenhuma na proposta, mas acabei concordando. Fomos. Minha mãe, dona Albina e dois dos filhos dela foram juntos. No cemitério, o seu Abilinho nos levou para passear por entre os túmulos, parando aqui e ali, quem sabe para nos acostumar com a morte. Depois de um bom tempo, pediu para que os outros esperassem e que eu o acompanhasse a um certo lugar. Esse certo lugar, logo descobri, era nada mais nada menos do que o ossuário, um poço largo onde eram lançados os restos finais daqueles que já haviam passado pela vida. Ali, o seu Abilinho me fez olhar demoradamente dentro do poço. Eram tíbias, fêmures, úmeros e crânios, destacando-se dos ossos menores em decomposição. Uma espécie de lixão dos mortos.

Antes de abandonarmos o local, o seu Abilinho abaixou a cabeça e emudeceu numa longa oração lá sua. Quando terminou disse:

— Agora, vamos embora.

Ainda hoje, passado mais de meio século, quando acontece de eu me mostrar descrente em relação às coisas do outro mundo, minha mãe, que é muito religiosa, diz:

— Bem que o seu Abilinho falou que você ia ficar abusante.

 

 

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Inferno, quadro anônimo português, possivelmente de 1520

 

 

Gente esquisita

 

            Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

Não vamos chamá-los malucos. Chamemo- los apenas esquisitos. O mundo está assim de gente esquisita.

Já contei numa crônica o caso da senhora de Itatinga, a dona Rute, uma santa senhora, que não tem mais do que um único pecado para contar ao padre nas suas confissões semanais — o pecado da inveja, ou melhor, o pecado de ter inveja de viúva. Uma inveja específica. É o único pecado que não conseguiu até hoje eliminar. Ela conta para quem quiser ouvir.

Outro caso de esquisitice, de grande esquisitice este, é o do Josefo, cunhado de um amigo nosso, de Curitiba. Desde algum tempo atrás o Josefo está numa situação difícil e incomum. Está desempregado e cheio de dívidas, porque não pode trabalhar. Não pode. É farmacêutico, tem saúde, mas não pode mais trabalhar porque entrou para um culto, uma dessas religiões digamos alternativas, e lá ensinaram que os medicamentos não servem rigorosamente para nada. Só servem para dar lucros à indústria farmacêutica. Ele deixou de acreditar nos remédios e abandonou a profissão.

Há também o caso da Renatinha, uma médica conhecida, quase amiga nossa, que, certamente por esquisitice, para toda e qualquer dor, só receita chá de folha de laranjeira.

Já o Cláudio Atílio, um cartunista amigo nosso lá de São Paulo, esse meteu na cabeça, sem mais essa nem aquela, que não deve comer ou beber alimentos que contenham leite ou qualquer dos seus derivados. Antes de comer alguma coisa, ele indaga seriamente, inclusive nos restaurantes, se na composição não entrou algum derivado do leite. Se entrou, ele não come. Além disso, apesar de gostar muito de macarrão, ele não come se o macarrão for do tipo parafuso.

Minha tia Ida, tia-avó na verdade, também era esquisita. Tinha um vício, mania ou sei lá o quê: toda santa noite, antes de dormir, tinha que tomar uma canequinha de pinga. Jamais  dormiu sem tomar sua canequinha de pinga.

E a Ana Maria? A Ana Maria, colega de escola da Maria Inês na juventude, tinha esquisitice próxima da de minha tia. Não podia passar pela estação ferroviária de Botucatu sem ali tomar um sorvete chicabon. Era diariamente. Estivesse o dia quente, frio ou gelado, se entrassem na estação de Botucatu, a Ana Maria tinha que tomar um chicabon. Nos dias mais gelados, quando todo mundo entrava no bar esfregando as mãos para tomar um café, um leite quente ou um pingado quase pelando, ela corria para tomar seu chicabon.

Outro bastante esquisito era o vizinho do Nestor. Sempre que bebia uns goles, o que ocorria principalmente nos fins de semana, o vizinho do meu amigo Nestor brigava com a mulher e nunca perdia a oportunidade de dizer que ia embora de casa. Fazia já uns quinze anos que ele dizia a mesma coisa. Um belo dia, no auge da briga, ele saiu com esta: “Sabe porque eu já não fui embora dessa casa? É porque meu pai já morreu, coitado. Se ele ainda fosse vivo, sabe o que ele ia dizer pra mim? Ele ia falar: Essa mulher não presta, meu filho. Larga dela. E eu largava”.

Mas ninguém, no meu entendimento, ganha em esquisitice da tia Lúcia. Tia Lúcia não come e não compra verduras. Diz ela que seu avô Florisvaldo, já falecido, contou-lhe certa vez que todo hortelão, grande, médio ou pequeno, possui um cachorro que tem o péssimo hábito de mijar nos canteiros da horta. Depois disso, ela não comeu mais verdura.

 

cachorro fazendo xixi

 

 

 

O footing da Mello Peixoto

 

             Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

Sábado ao anoitecer. Um banho demorado e estimulante, a melhor roupa, os sapatos bem engraxados, a brilhantina esfregada nas palmas das mãos para amaciar os cabelos. O entusiasmo tomando conta da alma. O jantar, o sair e o caminhar alegre até a Praça Mello Peixoto. Era a década dos anos 1950, aqueles hoje conhecidos como Anos Dourados — a Rádio Nacional, os boleros, Frank Sinatra, Nat King Cole, Elvis Presley, Paul Anka, Pat Boone, Doris Day, Tony Curtis, James Dean, Sandra Dee, as orquestras do interior e os bailes, o cinema, a vida sem violência. A gente ia ao footing da praça encontrar os amigos e procurar por uma namorada. Tínhamos aí dezessete, dezoito, dezenove anos. No sonhar sem barreiras o mundo era todo nosso.

Uma das minhas maiores saudades dos tempos passados de Ourinhos é o footing da Praça Mello Peixoto. Ele acontecia aos sábados e domingos à noite nas calçadas externas e internas da praça. Rapazes e moças tinham aí sua melhor oportunidade de flerte e início de namoro. Os jovens sem parceiros andavam no passeio externo. Nos passeios internos caminhavam os casais de namorados. Não havia a prática do ficar que existe hoje. Também não havia sexo antes do casamento. Casamento com todas as formalidades: juiz, padre, padrinhos, papel passado, convites e festa. E entre o namoro e o casamento ainda havia o noivado com o devido uso de aliança no dedo anular da mão direita.

Componente indispensável do footing era o serviço de alto-falante pelo qual os jovens ofereciam músicas e mandavam pequenas mensagens aos seus flertes.

Nos primeiros tempos o footing externo compreendia o caminhar por todo o perímetro da praça. Moças, aos pares, caminhavam num sentido, e rapazes, também aos pares, caminhavam no sentido oposto. Como se estivessem — e estavam — em exposição. Depois, a distância percorrida diminuiu pela metade: a calçada toda da parte voltada para a Rua 9 de Julho, metade da extensão da parte voltada para a Avenida Altino Arantes, e metade da extensão da parte voltada para a Rua Paraná.

Não demorou muito e o footing mudou de novo. Só as moças continuaram caminhando. Os rapazes passaram a ficar parados na rua, à beira da calçada. Finalmente, em seus últimos tempos, o costume se restringia ao caminhar das moças e ao estar dos moços unicamente na calçada da parte da praça voltada para a Rua 9 de Julho. As moças iam e vinham de uma esquina à outra. Diante do que fora, podemos dizer que chegamos ao little footing, último estágio antes do desaparecimento completo do velho e bom costume.

Forma singela e eficiente da sociabilidade, o footing tinha hora certa para terminar. Faltando dois ou três minutos para as 22 horas, a praça estava lotada; passados dois ou três minutos das 22 horas, a praça estava vazia. Só poucos e pequenos grupos de rapazes permaneciam um tanto mais, comentando a noite, os flertes, os inícios de namoro. O fenômeno ocorria porque os pais coincidiam em marcar as 22 horas para as moças voltarem pra casa.

Quem conseguiu uma namorada, ou pelo menos um flerte, voltava alegre e feliz. Quem não conseguiu nada, voltava esperançoso de que da próxima vez tudo seria diferente. O mesmo acontecia com as moças que procuravam o par sonhado.

 

footing

 

 

A voz do povo…

 

               Euclides Rossignoli

euclides rossignoli

 

 

 

 

 

 

 

O dito popular que sentencia “A voz do povo é a voz de Deus” é conversa mole. A voz do povo, prestem atenção caros leitores, serve muito frequentemente é para veicular a maldade, a injúria, a impiedade, ficando bem mais próxima da voz do diabo.

Vejam, por exemplo, o que faz a voz do povo no campo da alcunha. O apelido, uma verdadeira praga nas cidades pequenas, quase sempre surge carregado de maldade por associação à aparência física da pessoa, a atividade que ela exerce ou às suas habilidades e inabilidades. O grau de malignidade varia muito, mas a regra é que o apelido tenha a carga negativa do ridículo, do feio ou, no mínimo, do desagradável.

Quando jovem, eu soube de pessoas que tinham apelidos tão feios que nem podiam saber, embora a cidade de Ourinhos inteira soubesse. Tinha, por exemplo, lá na Vila Margarida, o João Quati, assim chamado porque de fato se parecia com aquele carnívoro da família dos prociônidas. Tinha o Zé Encrenca, que ficou assim conhecido simplesmente por ser esquentado. Tinha o Zé do Sino, um professor de história que era o primeiro a chegar às missas. Tinha o Zequinha Mortadela, que trabalhava como entregador de embutidos. Tinha o Chico Bucheiro, que vendia nas ruas, com uma carrocinha, miúdos de boi e de porco. Tinha o Tufik Cinco Por Cento, que atuava no campo da agiotagem. Tinha a Maria Galinha, mulher casada mas bem danada. Tinha o Jonas Relho, que nem posso falar porque tinha esse apelido. Tinha a Maria Bigodinho, morena bonita, mas dona de um buço marcante. Tinha o Hélio Cateto, um professor cuja compleição lembrava o porco-do-mato caititu. Tinha também o Jacaré, o Zé Apavorado, o Zé Toicinho, o Paulo Cuié, o Orelha de Pau, o João Geladeira, o Mauro Boca de Gaveta, o Tamancada. 

Agora me lembrei de muitos outros. Tinha o João Kilovate, que trabalhava na empresa de força e luz lendo o consumo nos relógios das casas. Tinha a Luzia Cadillac, que topava uma voltinha com todo mundo. Tinha o Zé Protocolo, assim apelidado porque trabalhava no serviço de protocolo da prefeitura. Tinja o Miltinho Alicate, um sujeito das pernas tortas. Tinha o Nelson Cachorro e o Jaime Peru. Tinha o motorista Tatu e o Ermenegildo Vaca. Tinha o Zé Diarreia e o Osmar Penico. Tinha a Maria Canecão, o Zé Cadelinha e o Sílvio Bagunça. Tinha o Zé Boi, o Leitão e o Antoninho Cabeça de Passarinho. Tinha o Capeta, o Ticanha, o Mané Pega Tudo, o Joel mico, o Lamparina e o Boca de Égua.

São apelidos, todos eles, muito desagradáveis. Mas nenhum ganha em ridículo e maldade daquele que a voz do povo reservou ao pobre que era dono do laboratório de análises clínicas da cidade. Como naquela época o exame mais comum e mais solicitado pelos médicos era o de fezes, o cidadão ficou conhecido como Zé da B…

 

PS: Esta crônica já estava acabada quando recebi correspondência de Curitiba, apontando lacunas. Vítimas da voz do povo, lembra o missivista, eram também o odontologista Diógenes Baratinha e o professor Mário Preto. Este Mário Preto, além de não ser afrodescendente, era branco até no nome: Mário de Oliveira Branco Filho, o Marinho. Veja o que não faz a voz do povo!

 

 

NOTA DA REDAÇÃO

 

“Euclides Rossignoli nasceu em 1939, na Fazenda Santa Clara, no município de Santa Cruz do Rio Pardo. Veio para Ourinhos com um ano de idade e foi criado na Vila Margarida, onde passou a infância e boa parte da juventude. Em 1959 mudou-se para a capital, onde estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). De volta a Ourinhos, foi professor de sociologia e de estudos sociais em escolas de ensino médio. Foi vereador de 1983 e 1988.”

Essa a singela apresentação de Euclides, que consta da orelha do seu delicioso livrinho, “Ourinhos Histórias e Memórias”, publicado pelo autor com o prêmio obtido no “Concurso de Fomento a Produções Culturais e Oficinas Criativas” da Secretaria Municipal de Cultura de Ourinhos.

Adverte ele, modestamente, que “Embora haja neles muita história, os escritos que o leitor encontrará neste livro não constituem textos de História. O autor não é historiador nem realizou pesquisa alguma para escrevê-los. Usou apenas a memória e sabe que, muitas vezes, propositadamente ou não, registrou a versão mais do que o fato”.

Quem o lê, porém, logo se dá conta de que histórias ou estórias ele as conta com a graça e o talento de um belo escritor. Cada um guarda em si uma Recife de Bandeira, uma Itabira de Drummond, uma Macondo de García Marquez, uma Buenos Aires de Borges, uma Belo Horizonte de Pedro Nava, uma Istambul de Orhan Pamuk, uma Rio de Janeiro de sempre de Paulinho Lima, uma Guaxupé de Annibal Gama. Todas elas, assim como a Ourinhos de Euclides Rossignoli, são únicas e são a mesma, pois como diz Pessoa “A terra é semelhante e pequenina / E há só uma maneira de viver.”

Euclides vem rebrilhar a constelação de craques do Estrela Binária.

 

 

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