Pois é, prá que tanta luta, tanta força bruta para ganhar a vida enquanto de fato estamos a perdê-la, tanta correria, tanta pressa de chegar (onde?), sem tempo de simplesmente ver essa límpida lua a rebrilhar mansamente num céu de tanta estrela?
Ocorreu-me isso ontem, quando por volta das 21 horas retornava excepcionalmente mais cedo da faculdade, onde o período de provas e exames finais já começou.
Deparei com a lua e o céu magnífico ainda no estacionamento, o que me fez dirigir calma e vagarosamente até em casa. Não precisava, mas cheguei a parar num posto no caminho para completar o tanque, só para prolongar um pouco o percurso e o curso dos meus pensamentos.
No estado de espírito em que me achava, como se o universo conspirasse (juro que é pura verdade), assim que deixei o posto começou a tocar no rádio do carro uma das canções de que mais gosto, mas há muito, muito tempo mesmo não ouvia, e que expressava com grande antecipação a louca vida e o mundo doido em que nos consumimos.
Trata-se de uma composição de Sidney Miller, que anda meio ou totalmente esquecido, compositor inspiradíssimo, da década de 60, que morreu muito moço, com apenas 35 anos, mas deixou uma obra sólida e comovente, com várias canções antológicas.
Em 1965 gravou sua primeira música, “Queixa”, feita em parceria com Zé Kéti e Paulo Tiago, classificada em quarto lugar no I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior de São Paulo, defendida pelo grande Ciro Monteiro. Em 1967 com a canção “A estrada e o violeiro”, que interpretou em dueto com Nara Leão, conquistou o premio de melhor letra do III Festival de Música Popular Brasileira promovido pela TV Record. Naquele mesmo ano, juntamente com Théo de Barros, Caetano Veloso e Gilberto Gil, compôs a trilha sonora para a peça Arena conta Tiradentes, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.
Foi autor também da trilha sonora da peça Por mares nunca dantes navegados (1972), de Orlando Miranda, para a qual musicou alguns sonetos de Camões. São dele ainda, entre outras lindas canções, a muito conhecida “O Circo” (“vai, vai, começar a brincadeira, que a charanga vai tocar a noite inteira, vem, vem, vem, ver o circo de verdade, tem, tem, tem, tem, picadeiro e qualidade”), Meu violão e Pede passagem.
Depois de abandonar os cursos de Sociologia e Economia para se dedicar inteiramente à música, o seu jeito tímido e de bom menino, seus olhos tristonhos, a temática urbana e em especial o talento e cuidado na construção das letras fizeram com que fosse comparado com o então iniciante Chico Buarque.
Ao chegar em casa, corri a remexer meus velhos LPs e encontrei uma gravação de Pois é, prá quê?, interpretada pelo conjunto MPB 4, em plena forma.
Disco na vitrola, um taça de vinho na mão, e a noite adormeceu quase em paz (apesar, ou por causa, do nó na garganta).
Pois é, prá quê?
Sidney Miller
O automóvel corre, a lembrança morre
o suor escorre e molha a calçada
há verdade na rua, há verdade no povo
a mulher toda nua, mais nada de novo
a revolta latente que ninguém vê
e nem sabe se sente, pois é, prá quê?
O imposto, a conta, o bazar barato
o relógio aponta o momento exato
da morte incerta, a gravata enforca
o sapato aperta, o país exporta
e na minha porta, ninguém quer ver
uma sombra morta, pois é, pra quê?
Que rapaz é esse, que estranho canto
seu rosto é santo, seu canto é tudo
saiu do nada, da dor fingida
desceu a estrada, subiu na vida
a menina aflita ele não quer ver
a guitarra excita, pois é, pra quê?
A fome, a doença, o esporte, a gincana
a praia compensa o trabalho, a semana
o chope, o cinema, o amor que atenua
o tiro no peito, o sangue na rua
a fome a doença, não sei mais porque
que noite, que lua, meu bem, prá quê ?
O patrão sustenta o café, o almoço
o jornal comenta, um rapaz tão moço
o calor aumenta, a família cresce
o cientista inventa uma flor que parece
a razão mais segura pra ninguém saber
de outra flor que tortura, pois é prá quê?
No fim do mundo há um tesouro
quem for primeiro carrega o ouro
a vida passa no meu cigarro
quem tem mais pressa que arranje um carro
prá andar ligeiro, sem ter porque
sem ter prá onde, pois é, prá quê?
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Exatamente como me lembrava! Lindo!
Pois é, pra quê?
– Pra lermos algo tão lindo assim, para ouvir uma imortal melodia e… pra ver a Lua Cheia de Buda, prenunciando o Festival Espiritual de Wesak!
Precisa mais?
– Também pra ver um avô “bobo” de felicidade com a neta, pra comer uma pamonha quentinha comprada por Alexandra… nossa, tanta coisa!
Foi um verdadeiro presente ouvir essa música de novo! E o vídeo também é muito bonito, enfim… é pra tudo isso!!!!!!! E mais um pouco!
PS: também pode ser pra ler o comentário da Soninha… cadê você, mulher?
Nunca saio daqui, querida!
Logo ali está o que senti.
Beijo grande.
Que lindo! Quando tenho esses momentos, intimamente felizes, também me pergunto exatamente isso: pois é, pra que? E quando nos damos conta que não há nada, nada maior do que aquilo que estamos vivendo vem aquele sorriso que escapa, seguido de um suspiro e a sensação de que estamos plenos, cheios, repletos de algo que não se consegue definir. Que delícia viver um momento desses! Mas, para se reconhecer um momento como esses é preciso duas coisas: disponibilidade (coração aberto para viver) e consciência (saber a hora de desacelerar o carro e apreciar). Você não só tem essas duas coisas, mas também a alma poeta que consegue nos transportar para um momento tão particular, tão seu. Me senti lá, ao seu lado, no posto, com o pescoço duro de tanto olhar para o céu e a bochecha doendo de tanto sorrir. Vou dormir mais plena hoje. Obrigada. Ti doro.
PS: (Só você mesmo para escrever um texto desses, com tanta informação sobre esse desconhecido cantor sem dar um google. Pai, na boa, você é um google de coisas boas).
Parente, primo, amigo? Muito amada pessoa.
Logo de cara, lendo você, com tantas informações sobre um cantor/compositor até muito desconhecido, me sinto obrigada a pensar onde consegue tanta informação senão nessa pobre maquininha que é o computador com todas as suas propriedades e condições? Até tenho certeza de que a música que tocou foi algo que lhe chegou profundo, pois os sons nos transportam além e muito além.
Querido, vendo a noite de ontem com aquela lua cheia maravilhosa, um céu repleto de estrelas, uma brisa fria roçando, nem devia parar num posto como refúgio ou justificativa pra parar. Apesar dos riscos que hoje corremos (muitos infelizmente), também parei estupefata e caindo de amores com aquela lua. Acho que em minha cabeça (muito louca e trafegante), mil sons soaram e músicas lindas tocaram.
V. sabe que não busco muito explicações históricas para os meus sentires. Nem tenho a ousadia de conhecimentos profundos como v.
Mas os sentimentos jorram, tornam-se imensas cascatas que se estalam nas pedras do caminho e no infinito dessa vida.
E a gente se pergunta o porquê de tanta luta, de tanta correria, de tanto ver os dias passarem sem nem a gente sentir, quando há tanta beleza e vida exposta à nossa frente.
Desde que me aferi com relação a que tenho muitos menos anos a correr dos que já corri, estou meio estática. Quero mais é ver a lua que tanto amo, contar as estrelas cadentes e fixas, acordar, abrir a janela e ver o sol num céu azul e gritar (mesmo que lá dentro): estou aqui e quero viver e amar e sentir e receber e dar e fazer!!!
Quero trocar mais e mais com as pessoas que me são amadas.
Quero muito não continuar a vivenda de ódio e amor que sempre me nutriu e de onde fui oriunda. Cada vez entendo mais isto tudo. E só quero ser, fazer e existir.
Noooosssa, de repente fui me colocando e exaltando. Perdoe. Adoro esse blog seu, querido e o tenho como marca diária, mesmo quando não me coloco. Por vezes os assuntos não me são pertinentes (futebol, por ex.) Mas, diariamente, estou aqui a postos pra lhe ouvir e sentir. Bjs.
Soninha, nem, ou muito menos pra mim (apesar de ficar “caidinha” por alguns jogadores – no momento o que mais desejo ver é o goleiro Felipe, do Corinthians – mas sou são-paulina!!!), o assunto futebol seria pertinente. Caso seguíssemos à risca os padrões sociais, isto continuaria sendo coisa exclusivamente de homens. Mas como se omitir ouvindo todos os dias comentários sobre futebol? (Trabalho com dois palmeirenses maravilhosos, na medida do possível, já que não torcem para o meu time – mas atualmente estou “aproveitando” a má fase do Palmeiras, “judiando” bastante dos dois! rsrs – Ambos sabem a escalação de todos os times e, como eu, são torcedores do Comercial aqui de Ribeirão)
E, mais ainda, como deixar de comentar algo que o Dr.Gama escreve tão bem, do fundo do seu coração e “para nós”, os seus leitores???? – Não tem jeito…
Querida Sonia
Anseio sua placidez sapiente, que serene o vulcão íntimo em que me consumo. Às vezes consigo, brevemente, em mágicos momentos como o descrito. Outros, são vividos e partilhados neste blog, nos comentários como o seu.
Dr. Gama, impossível não lembrar do senhor, já que mencionou este personagem há poucos dias atrás… Veja que bonito:
Bartleby, o escrivão, “Personagem para um dia frio”, por Lilian Prestes, no portal Onne, de Cesar Giobbi
“Falta menos de um mês para o início do Inverno. Em um país tropical como o nosso, frases como essa significam pouco quando apenas ditas. É preciso a figura do outro para também entrarmos no clima. Por exemplo, ao olhar láááá pra baixo da janela do escritório, sorriu ao ver senhoras vestindo confortáveis cardigãs, homens de colete e as vitrines da Rua Augusta finalmente se livrando da febre das botas peep toe.
E o que esperar dos próximos fins de semana? Aqueles de chuva, com direito a chocolate quente, moletom cinza e cobertor xadrez… Bem, como o visual de céu londrino não costuma bater muito o cartão por aqui, quando ele aparecer é bom aproveitá-lo ao máximo.
Imagine-se, então, indo até a cozinha para fazer um chá e – AAAAHHHH! Saiba que esse grito acaba de sair da sua boca ao perceber que um homem baixinho e gordinho, de óculos e roupas antigas esperava por você junto à mesa, para narrar-lhe passagens de sua vida com Bartleby, O Escrivão (48 págs., R$ 35, Editora CosacNaify).
Para que você o reconheça de longe, vou descrevê-lo em sua última roupagem: o velhinho (posto que o livro é narrado em primeira pessoa) veste uma capa dura de cor verde que parece um tecido, costurado com linha preta em toda a sua lateral. Para encontrar as páginas é preciso, antes de tudo, cortar a linha à direita e arrancá-la dos buracos feitos à máquina (de costura?).
Aberto seu invólucro, dá-se de cara com a parede: páginas duplas e coladas internamente, com blocos ou madeira (a foto em macro deixa margem a interpretações variadas) impressos de cima a baixo. Para chegar à história é preciso quebrar essas paredes com um machado: para isso, a CosacNaify (editora responsável pelo ousado projeto gráfico da obra de Herman Melville) providenciou réguas transparentes para serem encaixadas entre as folhas duplas a fim de rasgar a lateral das páginas.
(…Capa do arrojado relançamento da CosacNaify…)
De sopetão, o relato começa logo na primeira abertura, escrito em itálico – como se fosse um prefácio:
“Sou um homem de certa idade. A natureza de minha ocupação nos últimos trinta anos fez com que eu tivesse um contato pouco comum com certo grupo de homens aparentemente interessantes e um tanto diferentes, a respeito dos quais nada, que eu saiba, foi escrito… Refiro-me aos copistas ou escrivães. Conheci vários deles, (…) mas abri mão das biografias de todos os outros escrivães para contar algumas passagens da vida de Bartleby, que foi o mais estranho de todos os escrivães que jamais encontrei ou ouvi falar.”
O protagonista é um advogado, “daqueles pouco ambiciosos, que nunca se dirigem a um júri e nunca conseguem arrancar aplausos do público; mas que, na tranquilidade de um retiro confortável, fazem negócios tranquilos com ações e hipotecas”, tendo como “firme convicção de que a forma de vida mais fácil é a melhor”.
Essa postura acomodada e (por que não?) covarde é o combustível das próximas 37 páginas desta curta novela. Bartleby é contratado após o personagem assumir o cargo de Oficial do Registro Público, função que lhe aumentou consideravelmente a demanda, não mais suprida pelos outros três copistas que já trabalhavam em seu escritório.
No entanto, no terceiro dia após sua contratação, ao ser chamado para a revisão de alguns documentos junto dos demais escrivães, a resposta de Bartleby foi “singularmente amena e firme: ‘Acho melhor não’”.
Primeiro, Bartleby achou melhor não realizar certas funções. Depois, achou melhor parar de trabalhar. E a cada nova ordem ou orientação dita pelo advogado, a resposta era sempre a mesma: “Acho melhor não”, pronunciada com uma voz baixa e desprovida de qualquer emoção: voz que combinava perfeitamente com sua aparência “levemente arrumada, lamentavelmente respeitável, extremamente desamparada”.
Assim, a cada nova recusa, em vez de o protagonista demitir o escrivão imediatamente, ele decidia “adiar a reflexão sobre o dilema para quando tivesse tempo”, inventando desculpas metafísicas e até religiosas para o funcionário agir dessa maneira.
“Não é raro que um homem, a quem se intimida de um modo sem precedentes, completamente insólito e irracional, comece a duvidar das suas crenças mais banais. Por mais estranho que isso possa parecer, ele começa a desconfiar que a justiça e a razão estejam do outro lado.”
Dessa forma, as estranhas manias de Bartleby, em vez de encontrarem algum tipo de resistência de seu chefe, acabam por expulsar o protagonista de seu próprio imóvel, obrigando-o a se mudar para o outro lado da cidade.
O fim da novela deixo para o sábado à tarde – e faço votos para que a leitura termine por volta das seis horas, quando o céu já estará escuro o suficiente e o livro, cujo final é delicadamente embalado pela morte, lhe fará subir as cobertas até encobrir totalmente a cabeça.”
Tenho essa edição do Bartleby da CosacNaify, que é uma verdadeira joia e muito barata. O comentário da sua xará é muito bom. Valeu a indicação.
Boa Bell, o pai q antes era uma enciclopédia agora é o nosso google…beijo Carol