Posts from outubro, 2008

Voar é para os pássaros

 

“Caio verticalmente e me transformo em notícia.”

(Carlos Drummond de Andrade, “Morte no Avião”)

  

Para minha filha Carolina, que só entra no avião depois de checar o nome do comandante.

 

 

 

                        Domingo, pede cachimbo (quando criança, pensava que fosse “pé de cachimbo” e ficava a imaginar como seria essa árvore prodigiosa, com seus frutos dependurados: haveria uma árvore para cada tipo de cachimbo ou uma mesma árvore daria as várias espécies de cachimbo?).

 

                        Domingo, véspera da sempre odiosa segunda-feira!

 

                        Na falta de cachimbo, resolveu mergulhar de vez na nostalgia e passou o dia a remexer gavetas, a reler papeluchos amarelecidos pelo tempo, a folhear livros esquecidos, de repente encontrando entre as páginas uma pétala seca.

 

                        Acabou nos velhos discos de vinil, com suas lindas capas, encartes com fotos dos intérpretes e letras das músicas: Jovem Guarda, Beatles, o quase menino Francisco Buarque de Hollanda, o moço e belo Antonio Carlos Jobim, os rapazes do conjunto MPB4, as barbas negras de João Bosco e Aldir Blanc…

 

                        Entre eles, deparou com um disco ainda mais antigo, que havia surrupiado do pai, verdadeira preciosidade. Capa amarela de papelão, no verso a apresentação de Paulo Mendes Campos. Face A, Manuel Bandeira, Face B, Carlos Drummond de Andrade, dizendo seus poemas. Sim, dizendo, e não declamando ou recitando, que poesia é para ser dita na sua cadência própria, sem exageros e histrionices em que muitas vezes incorrem atores que se põem a “encenar” o poema, a “entrar” na personagem.

 

                        Colocou o disco na vitrola e em estado de graça passou a ouvir os dois poetas.

 

                        Manuel Bandeira absolutamente à vontade, chegando a cantarolar o refrão de uma canção infantil em “Evocação do Recife”, a dar sua tossidela de tísico numa pausa de “Vou-me embora pra Pasárgada“.

 

                        Drummond sempre comedido, porém comovente e preciso em “Caso do Vestido” e “Morte do Leiteiro”. Súbito, a voz aguda e tímida do poeta principia outro poema, “Morte no Avião”. Os versos secos lhe caem como um relâmpago, e se sente compelido a repetir duas ou três vezes o poema, as palavras cortantes martelando seus ouvidos. No dia seguinte, viajaria de avião para São Paulo, com aterrissagem em Congonhas.

 

                        Dormiu pouco, um sono agitado e intermitente, entremeado de fragmentos de sonhos. Acordou de mau humor, mais do que costumava ficar toda segunda-feira.

 

“Acordo para a morte.

Barbeio-me, visto-me, calço-me.

É meu último dia: um dia

cortado de nenhum pressentimento.

Tudo funciona como sempre.

Saio para a rua. Vou morrer.”

 

                        Pensou em adiar a viagem ou ir de carro, mas era impossível fazer uma coisa ou outra de última hora. Além de vários compromissos importantes em São Paulo ainda pela manhã, logo no começo da tarde faria sustentação oral de uma causa difícil, perante o Tribunal.

 

“Pela última vez miro a cidade.

Ainda posso desistir, adiar a morte,

não tomar esse carro. Não seguir para.

Posso voltar, dizer: amigos,

esqueci um papel, não há viagem,

ir ao cassino, ler um livro.”

 

                        Fez o check in, tomou vários cafezinhos, vagueou inquieto pelo aeroporto, sentou-se, levantou-se, foi ao banheiro.

 

“A morte dispôs poltronas para o conforto

da espera. Aqui se encontram

os que vão morrer e não sabem.

Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,

pequenos serviços cercam de delicadeza

nossos corpos amarrados.”

 

                        Chamada para embarque imediato. Foi o último a entrar na fila e lentamente caminhou pelo tapete vermelho como se fosse para o cadafalso (faz figa).

 

                        Ao pé da escada do avião, foi recebido pela tripulação sorridente, com destaque para a figura galharda do comandante, cujo nome pôde ler no crachá em letras que lhe pareceram garrafais: “COMANDANTE CAIO”.

 

 

Machado de Assis

 

“O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”

(Machado de Assis, “Quincas Borba”)

 

 

                        A escritora Nélida Piñon que, aliás, foi a primeira mulher a ser eleita para a Presidência da Academia Brasileira de Letras, a Casa de Machado de Assis costuma dizer que se Machado de Assis existiu, o Brasil é possível.

 

                        Concordo inteiramente com ela. Machado de Assis tem para a literatura brasileira a mesma importância de Camões, para a portuguesa, Dante, para a italiana, Cervantes, para a espanhola. Foi ele quem definiu ou consolidou o padrão literário do Brasil.

 

                        Embora o homem Machado de Assis, ao que se sabe, não tenha sido pai, a derradeira negativa com que o cético e cínico Brás Cubas encerra suas memórias póstumas —“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” — não se aplica à figura do escritor, que gerou rebentos admiráveis e imorredouros.

 

                        Neste ano que marca o centenário da morte do Bruxo do Cosme Velho, muitos livros versando sobre ele têm sido lançados ou relançados, muitos artigos e ensaios, escritos. É um momento oportuno para a releitura e o reexame de uma obra que, sob aparente simplicidade, encerra múltiplas faces, nem todas ainda decifradas, e que talvez nunca o sejam inteiramente. Basta lembrar a famigerada e irrespondível pergunta (ou que respondemos de acordo com nossas idiossincrasias): “Capitu traiu Bentinho?”

 

                        O ensaísta e pensador Gilberto de Mello Kujawski é um dos que se dispôs a buscar novas visões ou a abordar aspectos inusitados da obra e da vida de Machado de Assis. Depois de escrever durante muitos anos para jornal “O Estado de S. Paulo”, a publicação dos seus artigos foi sumariamente interrompida pelo atrabiliário editor daquele jornal, que não gostou de algumas considerações feitas em um artigo, devidamente assinado pelo articulista, sobre figuras notáveis da república brasileira. A par de lastimável e desrespeitoso em relação aos leitores do jornal, dos quais me excluo desde então, o episódio é de suma gravidade (mesmo assim, muito pouco divulgado) por caracterizar flagrante censura, bem como cerceio do pensamento e da opinião perpetrados por um jornal que posa de liberal e defensor das liberdades públicas. Ao que parece, o zeloso editor do “Estadão” segue à risca a máxima machadiana que serve de epígrafe a este post.

 

                        Afastado do jornal (pior para o jornal), Gilberto Kujawski continua a nos brindar com seus ensaios e artigos num site que tem o seu nome e cujo link está aí ao lado. No site, há três excelentes ensaios sobre Machado, que merecem ser lidos: “Machado de Assis Trocado em Miúdos”, “Machado de Assis, O Trocista” e “O Rio Machadiano Corte Vitoriana nos Trópicos”.

 

                        Ainda sobre Machado, tomei conhecimento pelo Gilberto de um ótimo livro, recentemente lançado, que de modo sóbrio e despretensioso (e essa é uma de suas grandes virtudes) apresenta um estudo profícuo e arguto da vida e da obra machadiana: “Machado de Assis Exercício de admiração”, escrito por Ayrton Marcondes, Editora A Girafa. Também vale a pena ler.

                       

Dialelo

 

Quando acordo

nasço,

de manhã

sou criança,

ao meio-dia

cresço,

à tarde

envelheço

e morro

na noite,

até que amanheço.

Ler e Escrever

 

                        Para mim, a literatura não se trata apenas da arte de escrever, mas, sobretudo, da arte de ler. A obra literária somente se completa e se realiza com a leitura. Nem sempre, ou quase nunca, o autor é o melhor intérprete de sua obra. O leitor, não raro, descobre aspectos não percebidos ou pretendidos pelo autor, dando nova vida ao texto. Não quero, com isso, enveredar pela semiologia e seus conceitos, mas apenas ressaltar a significância do leitor ou do ledor, o quê, aliás, nada tem de original e já foi abordado por gente de muito maior envergadura.

 

                        Há muitos anos escrevia Sérgio Milliet que “o poeta não se comunica com o leitor, nem ninguém se comunica com ninguém desde que a mensagem ultrapasse os limites restritos das banalidades cotidianas. O poeta é apenas um comutador; ele provoca a passagem da corrente elétrica, mas as lâmpadas que se acendem são de cores e potências diferentes. A luz amarela acesa em mim nada tem a ver com a vermelha do vizinho”.

 

                        Assim também os versos sempre lembrados de Fernando Pessoa, segundo os quais, não bastasse o poeta fingir que é dor a dor que na verdade sente, aqueles que lêem os seus versos sentem uma outra dor, que nem eles, nem o poeta têm.

 

                        Tinha razão, pois, o escritor André Gide ao dizer: “Antes de explicar o meu livro aos outros, aguardo que os outros o expliquem a mim”.

 

                        É isso também o que aguardo de quem acessar este blog.

A aventura da leitura

 

                        Aparentemente, a leitura é uma atividade solitária, que exige recolhimento e reflexão.

                        Na realidade, porém, quem lê nunca está só, mas em permanente convivência com o autor, com os outros leitores, com outros livros, lidos e não lidos.

                        A leitura será sempre uma aventura, um fluxo de emoções e sentimentos, de experiências vividas ou imaginadas.

                        Embora haja inúmeros e excelentes livros sobre essa aventura da leitura, três me agradam especialmente: dois deles escritos por Alberto Manguel, “Uma História da Leitura” (que já tornou um clássico), e “No Bosque do Espelho” (que tem o subtítulo de “Ensaios sobre as palavras e o mundo”), ambos editados no Brasil pela Companhia das Letras. Deste último destaco o trecho seguinte, da sua abertura:

“Ao juntar palavras com experiências e experiências com palavras, nós, leitores, esquadrinhamos histórias que ecoam uma experiência ou nos preparam para ela, ou, ainda, nos falam de experiências que jamais serão nossas (como bem sabemos), exceto na página candente. Da mesma forma, o que acreditamos que é um livro se remodela a cada leitura. Ao longo dos anos, minha experiência, meus gostos, meus preconceitos mudaram: à medida que os dias passam, minha memória continua repondo na estante, catalogando, descartando os volumes da minha biblioteca; minhas palavras e meu mundo – exceto por alguns marcos constantes – nunca são os mesmos. A famosa frase de Heráclito sobre o tempo aplica-se igualmente a minha leitura: “Nunca mergulhamos no mesmo livro duas vezes”.O que permanece invariável é o prazer da leitura, de segurar um livro em minhas mãos e experimentar subitamente aquele sentimento peculiar de admiração, reconhecimento, calafrio ou calor que, por nenhum motivo discernível, uma certa seqüencia de palavras evoca.”

                         O terceiro livro, cujo título é “Como falar dos livros que não lemos?”, foi escrito por Pierre Bayard e publicado no Brasil pela Editora Objetiva. Trata-se de uma deliciosa brincadeira (e as brincadeiras, como se sabe, são uma forma de travestir a realidade para apreendê-la), por meio da qual, fingindo fazer pilhéria ou escrever mais um dos abomináveis livros de auto-ajuda, o autor elabora um refinado ensaio sobre a cultura literária, formada tanto pelos livros lidos, quanto pelos não-lidos, mas que de algum modo se conhece e assimila.

Por que Estrela Binária?

 

                        O título, Estrela Binária, tem para mim particular significação. No céu da poesia há muitas estrelas. As que primeiro me encantaram foram as estrelas de Manuel Bandeira, poeta que, ainda na minha adolescência, me descortinou o céu da poesia, com as suas Estrela da Manhã, Estrela da Tarde, depois ampliadas para Estrela da Vida Inteira. Muitas outras estrelas luziram para mim a partir de Bandeira: Drummond, Vinicius, João Cabral, Borges, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Mário Chamie, José Paulo Paes, Annibal Augusto Gama. Desde então a literatura em geral e a poesia em particular têm sido a minha estrela binária.

 

                        Estrela binária designa duas estrelas muito próximas, gravitacionalmente ligadas entre si e que, a olho desarmado, não são distintas. Mais minudentemente, ensina Ronaldo Mourão que são “duas estrelas muito próximas (mas suficientemente isoladas do conjunto das outras), constituindo um sistema físico em equilíbrio dinâmico estável e no qual a atração gravitacional, interagindo entre si, faz que cada uma descreva em torno de um centro comum de gravidade uma órbita kepleriana”. A sua proximidade, porém, pode ser apenas aparente. “Estrela Dupla” foi a expressão pela primeira vez empregada por Ptolomeu, ao descrever a estrela Arkab.

 

                        O título, portanto, além da homenagem ao sempre querido Manuel Bandeira, expressa o binarismo constante da minha vida (tão bem apreendido pela minha filha Bell Gama na página “Sobre o Autor”), que gravita entre as exigências da vida cotidiana e a paixão pela literatura, pela música, pelo teatro e pelas outras artes.

 

                        Quem visitar este blog estará em órbita comigo, sem risco de colisão.

 

Tabuame

  

“De tanto levar frechada

do teu olhar

Meu peito até parece sabe o quê

Tálbua de tiro ao Álvaro

Não tem mais onde furar (não tem mais)”

(Adoniran Barbosa, “Tiro ao Álvaro”)

 

“Cada tálbua que caía,

Duia no coração,”

(Adoniran Barbosa, “Saudosa Maloca”)

 

 

As Tábuas da Lei

A tábua sincrônica

A tábua de logaritmos

A tábua de ressonância

A tábua de matéria.

 

A tábua de marés

A tábua corrida

A tábua rasa

A tabuada

As tábuas do caixão.

 

Esta a nossa condição:

levar tábua da vida,

sem tábua de salvação.

 

Sortilégio


 

Como as estrelas,

que ao vê-las

já não são,

a semente e o fruto

 

a paixão e o luto

o dito e o desdito

a prisão e a janela

a nascente e a foz

 

os outros e nós

a calma e a procela

a praga e a prece

 

o quanto acontece

já se findou

e sequer começou.

Antes da porta

 

Diante da porta do inferno,

de Dante ou de Iavé,

é vã toda a esperança,

tua carne perversa

será tragada de chofre

pela maré perene

de escaldante enxofre.

 

À porta do paraíso,

de Milton ou de Pedro,

é tudo liso e ancho,

sem nenhum segredo,

tuas asas de anjo

se abrirão em flores

na eterna primavera.

 

Mas, enquanto não fores,

a porfia do dia

te lança exorbitante

por mares nunca dantes,

e o barco escasso traça,

ao sabor do vento,

tua instável geografia.