“O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”
(Machado de Assis, “Quincas Borba”)
A escritora Nélida Piñon ─ que, aliás, foi a primeira mulher a ser eleita para a Presidência da Academia Brasileira de Letras, a Casa de Machado de Assis ─ costuma dizer que se Machado de Assis existiu, o Brasil é possível.
Concordo inteiramente com ela. Machado de Assis tem para a literatura brasileira a mesma importância de Camões, para a portuguesa, Dante, para a italiana, Cervantes, para a espanhola. Foi ele quem definiu ou consolidou o padrão literário do Brasil.
Embora o homem Machado de Assis, ao que se sabe, não tenha sido pai, a derradeira negativa com que o cético e cínico Brás Cubas encerra suas memórias póstumas —“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” — não se aplica à figura do escritor, que gerou rebentos admiráveis e imorredouros.
Neste ano que marca o centenário da morte do Bruxo do Cosme Velho, muitos livros versando sobre ele têm sido lançados ou relançados, muitos artigos e ensaios, escritos. É um momento oportuno para a releitura e o reexame de uma obra que, sob aparente simplicidade, encerra múltiplas faces, nem todas ainda decifradas, e que talvez nunca o sejam inteiramente. Basta lembrar a famigerada e irrespondível pergunta (ou que respondemos de acordo com nossas idiossincrasias): “Capitu traiu Bentinho?”
O ensaísta e pensador Gilberto de Mello Kujawski é um dos que se dispôs a buscar novas visões ou a abordar aspectos inusitados da obra e da vida de Machado de Assis. Depois de escrever durante muitos anos para jornal “O Estado de S. Paulo”, a publicação dos seus artigos foi sumariamente interrompida pelo atrabiliário editor daquele jornal, que não gostou de algumas considerações feitas em um artigo, devidamente assinado pelo articulista, sobre figuras notáveis da república brasileira. A par de lastimável e desrespeitoso em relação aos leitores do jornal, dos quais me excluo desde então, o episódio é de suma gravidade (mesmo assim, muito pouco divulgado) por caracterizar flagrante censura, bem como cerceio do pensamento e da opinião perpetrados por um jornal que posa de liberal e defensor das liberdades públicas. Ao que parece, o zeloso editor do “Estadão” segue à risca a máxima machadiana que serve de epígrafe a este post.
Afastado do jornal (pior para o jornal), Gilberto Kujawski continua a nos brindar com seus ensaios e artigos num site que tem o seu nome e cujo link está aí ao lado. No site, há três excelentes ensaios sobre Machado, que merecem ser lidos: “Machado de Assis Trocado em Miúdos”, “Machado de Assis, O Trocista” e “O Rio Machadiano ─ Corte Vitoriana nos Trópicos”.
Ainda sobre Machado, tomei conhecimento pelo Gilberto de um ótimo livro, recentemente lançado, que de modo sóbrio e despretensioso (e essa é uma de suas grandes virtudes) apresenta um estudo profícuo e arguto da vida e da obra machadiana: “Machado de Assis ─ Exercício de admiração”, escrito por Ayrton Marcondes, Editora A Girafa. Também vale a pena ler.
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Sobre essa frase já teci milhares de comentários entre amigos sobre o real sentido dela, mas acho que estou na contramão. Para mim, ao dizer isso, Brás Cubas assume sua derradeira e mais dolorida derrota. Muitos acham que, ao não ter filhos, ele sairia vitorioso pelo fato de que os filhos poderiam repetir os erros do pai. Ou os filhos bem sucedidos relegariam o pai a um canto escuro da história. Acho que não ter filhos é a derrota suprema, porque ele sepultou o talvez e nem quis dar chance ao dia de amanhã.
Pergunta: quem foi o editor que mandou embora o Gilberto? O que escreveu? O Daniel Piza escreveu um livro cheio de erros sobre o Machado, mas mantém a verve no jornal.