Meu amigo Roberto Rockmann, além da sua Tuka e dos vinhos, ama também os gatos (amor que divide com ela). Tem ele me dado a grande satisfação de freqüentar este blog e, no último comentário que deixou, indagou-me a respeito de poemas sobre gatos.
Sempre gostei muito dos bichos. De todos eles, indistintamente. Até mesmo daqueles que muita gente considera repulsivos ou nojentos, como sapos, ratos (bem a propósito, o filme “Ratatouille”, sobre um ratinho “chef de cuisine” é simplesmente adorável), corujas, lagartixas e outros. Aliás, existe uma lagartixa com a qual divido há muito tempo o pequeno escritório de casa, onde escrevo estas linhas. Acostumada comigo (ela ou talvez suas descendentes, tanto tempo faz!), anda pela minha mesa, pela parede próxima, sobre os livros, e de vez em quando deixa as suas cagadinhas, como a registrar a sua presença quando não estou para nos fazermos companhia.
Até o começo deste ano que se esvai, tive um cachorrinho, chamado Snow, que tomei da minha filha Isabella e era a minha alegria e refrigério. A sua morte, não tenho pudor em confessar, me entristeceu profundamente, tanto que até hoje ainda não consegui ter outro.
Embora nunca haja sido dono de um gato (se é que os gatos têm dono, pois, como todos os bichos de estimação, eles é que são donos de nós), agrada-me muito a sua altivez, sua independência e personalidade. Rockmann me disse certa feita que o gato é o bicho ideal para nós, os escorpianos.
Quanto a poemas sobre gatos, há uma imensidão deles. Alguns excelentes, outros, grandes porcarias. Vários poetas se revelam absolutamente apaixonados pelos bichanos, como Baudelaire, Neruda e Ferreira Gullar, para citar apenas alguns, de nacionalidade diversa.
Selecionei alguns poemas sobre gatos que me agradam, de autoria de poetas dos quais também gosto especialmente, que vão postados a seguir. Ferreira Gullar, mencionado acima, tem diversos e lindos poemas sobre o tema, alguns deles feitos para crianças. Tem até mesmo uma música em parceria com Adriana Calcanhotto, denominada “Gato pensa?”. Digo isso porque o poema dele que escolhi para postar (por considerar um grande poema) não fala diretamente sobre o gato, embora nele se inspire.
Gato que Brincas
Fernando Pessoa
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Ode ao gato
Pablo Neruda
Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, vôo.
O gato,
só o gato apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa só
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa
de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite
Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertence
ao habitante menos misterioso,
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.
Canción novísima de los gatos
Federico García Lorca (Poema inédito até 1986)
Mefistófeles casero
está tumbado al sol.
Es un gato elegante con gesto de león,
bien educado y bueno,
si bien algo burlón.
Es muy músico; entiende
a Debussy, más no
le gusta Beethoven.
Mi gato paseó
de noche en el teclado,
¡Oh, que satisfacción
de su alma! Debussy
fue un gato filarmónico en su vida anterior.
Este genial francés comprendió la belleza
del acorde gatuno sobre el teclado. Son
acordes modernos de agua turbia de sombra
(yo gato lo entiendo).
Irritan al burgués: ¡Admirable misión!
Francia admira a los gatos. Verlaine fue casi un gato
feo y semicatólico, huraño y juguetón,
que mayaba celeste a una luna invisible,
lamido (?) por las moscas y quemado de alcohol.
Francia quiere a los gatos como España al torero.
Como Rusia a la noche, como China al dragón.
El gato es inquietante, no es de este mundo. Tiene
el enorme prestigio de haber sido ya Dios.
¿Habéis notado cuando nos mira soñoliento?
Parece que nos dice: la vida es sucesión
de ritmos sexuales. Sexo tiene la luz,
sexo tiene la estrella, sexo tiene la flor.
Y mira derramando su alma verde en la sombra.
Nosotros vemos todos detrás al gran cabrón.
Su espíritu es andrógino de sexos ya marchitos,
languidez femenina y vibrar de varón,
un espíritu raro de inocencia y lujuria,
vejez y juventud casadas con amor.
Son Felipes segundos dogmáticos y altivos,
odian por fiel al perro, por servil al ratón,
admiten las caricias con gesto distinguido
y nos miran con aire sereno y superior.
Me parecen maestros de alta melancolía,
podrían curar tristezas de civilización.
La energía moderna, el tanque y el biplano
avivan en las almas el antiguo dolor.
La vida a cada paso refina las tristezas,
las almas cristalizan y la verdad voló,
un grano de amargura se entierra y da su espiga.
Saben esto los gatos mas bien que el sembrador.
Tienen algo de búhos y de toscas serpientes,
debieron tener alas cuando su creación.
Y hablaran de seguro con aquellos engendros
satánicos que Antonio desde su cueva vio.
Un gato enfurecido es casi Schopenhauer.
Cascarrabias horrible con cara de bribón,
pero siempre los gatos están bien educados
y se dedican graves a tumbarse en el sol.
El hombre es despreciable (dicen ellos), la muerte
llega tarde o temprano ¡Gocemos del calor!
Este gran gato mío arzobispal y bello
se duerme con la nana sepulcral del reloj.
Que le importan los senos (?) del negro Eclesiastés,
ni los sabios consejos del viejo Salomon?
Duerme tu, gato mío, como un dios perezoso,
mientras que yo suspiro por algo que voló.
El bello Pecopian (?) se sonríe en mi espejo,
de calavera tiene su sonrisa expresión.
Duerme tu santamente mientras toco el piano
este monstruo con dientes de nieve y de carbón.
Y tú gato de rico, cumbre de la pereza,
entérate de que hay gatos vagabundos que son
mártires de los niños que a pedradas los matan
y mueren como Sócrates
dándoles su perdón.
¡Oh gatos estupendos, sed guasones y raros,
y tumbaos panza arriba bañándoos en
el sol!
Les Chats
Charles Baudelaire
Les amoureux fervents et les savants austere
Aiment également, dans leur mûre saison,
Les chats puissants et doux, orgueil de la maison,
Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires.
Amis de la science et de la volupté,
Ils cherchent le silence et l’horreur des ténèbres;
L’Erèbe les eût pris pour ses coursiers funèbres,
S’ils pouvaient au servage incliner leur fierté.
Ils prennent en songeant les nobles attitudes
Des grands sphinx allongés au fond des solitudes,
Qui semblent s’endormir dans un rêve sans fin;
Leurs reins féconds sont pleins d’étincelles magiques,
Et des parcelles d’or, ainsi qu’un sable fin,
Etoilent vaguement leurs prunelles mystiques.
Soneto do gato morto
Vinicius de Morais
Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.
Pensão Familiar
Manuel Bandeira
Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.
Lição de um Gato Siamês
Ferreira Gullar
Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
finita
da minha precariedade.
O tempo fora
de mim
é relativo
mas não é o tempo vivo:
esse é eterno
porque efetivo
─ dura eternamente
enquanto vivo.
E como não vivo
além do eu vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo).