Posts from novembro, 2008

Bell Gama

         

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                        A frase é muito conhecida, mas a nenhuma outra pessoa se aplica com tanta propriedade: A Bell não nasceu, estreou!

 

                        Foi num dia 1º de dezembro, como hoje. Hoje ela estréia idade nova longe daqui, em Paris. Como uma estrela.

 

“Chamaram-me Isabella.

Eu me chamo Bell.

Intitulei-me Bell Gama na quarta-série quando achei que deveria ter um nome artístico. O nome eu consegui. Todos hoje me chamam assim, até mesmo meus pais.”

(…)

“O nome é Bell.

A artista ainda está por vir.

Espero que, quando vier, seus textos a defendam.”

 

                        Assim ela se apresenta no seu blog, “Projeto Grifos”, cujo link está ao lado.

 

                        Pensei em dizer uma porção de coisas sobre ela. Da sua generosidade inesgotável. Da sua fina sensibilidade. Do seu extraordinário talento. Do seu imenso carinho por tudo e por todos. Que este blog é muito mais dela do que meu. Só existe porque ela o criou, quase me obrigando a sair da concha.

 

                        Concluí, então, que muito melhor será deixar que ela fale por si mesma. Segue abaixo um post do seu blog. A artista também já estreou, e seus textos bastam para defendê-la.

 

 

Solitária

Estava com solitária. Mas nunca comi carne de porco. Pelo menos não crua, daquelas que professor de biologia fala que faz ter solitária. Era taenia solium ou taenia saginata? Não sei. Também não comi terra. Tenho pavor das histórias das crianças que comem terra, comem tijolo… já ouvi até de gente que come sabonete.  Não sou uma delas. Na minha casa nem tem jardim. Aliás, tem. Mas é um jardim para ser visto, não para se lambuzar de terra. Minha mãe nunca permitiu isso. Aliás, não entendi porque nunca ninguém percebeu que eu tinha solitária. Tenho repulsa dela. Tenho vergonha. Acho que nunca mostrei. Acho que nunca falei.

Interpretação simples, disse minha terapeuta. Era a primeira vez que um sonho tão óbvio como esse se manifestava. Por outro lado, nunca tinha tido um sonho tão figurativo. Sempre senti a solitária dentro de mim, mas nunca quis falar dos meus vermes. Agora eles povoavam meu sonho e faziam lembrar o vazio que se instaurava dentro de mim. Não bastava a revolta adolescente, os amores inventados e as deprês de fim de tarde. Agora, o vazio todo tinha uma forma que habitava dentro de mim e consumia vorazmente tudo que me servia de alimento, diet, light ou não.

Saí do consultório com a cabeça em parafuso. Passei na livraria. Encontrei meu diagnóstico. Na página 12 do Dr. Llosa estava “ Traduzindo em imagem, direi que você acaba de fazer algo que, dizem, algumas senhoras do século XIX, preocupadas com a gordura e resolvidas a recuperar uma silhueta de sílfide, faziam: engolir uma solitária. Já lhe aconteceu alguém que carregasse nas entranhas esse abominável parasita?”

Parabéns, Dr. Llosa! Acaba de encontrar. E agora? Linhas `a frente ele concluía: “ A vocação literária não é um passatempo, um esporte, um lazer refinado que se pratica nas horas vagas. É uma dedicação exclusiva e excludente, uma prioridade `a frente da qual nada pode passar, uma servidão livremente escolhida que transforma suas vítimas (suas ditosas vítimas) em escravos”.

Nunca tinha encontrado minha vocação ou fugia dela. Passei inúmeras seções terapêuticas falando de emprego, de trabalho até que ela disse: então porque não abandona este emprego? O pior foi quando disse: mas quais são os seus planos? E eu fiquei por dez minutos dizendo as minhas possibilidades de ascensão na empresa quando ela interveio: Acho que não entendeu a pergunta, não perguntei qual o seu plano de carreira. Perguntei: o que você quer fazer da sua vida?

Pergunta difícil… que há anos procurava responder. Sei lá, faço tudo bem, respondia sempre. E ía levando, alimentando a solitária com tudo o que podia ser alimento: baladas, chocolate, homens, viagens… até igreja evangélica eu tentei. Nada satisfazia a maldita!

Agora eu já sabia. A solitária estava ali. Era minha. Carregaria-a sempre comigo. Tinha que parar de ter repulsa e conviver. Ou melhor, achar a melhor maneira de acalmá-la com alimento.

Devorei Llosa.

Devorei Rubens Paiva.

Devorei Flaubert.

Devorei Clarice.

Devorei Machado.

Devorei Guimarães Rosa.

Devorei Kafka.

Devorei Goethe.

Devorei Camus.

Devorei Garcia Márquez.

Estou devorando Balzac.

E continuo com um apetite desgraçado. Incrédula por nunca ter provado Cervantes, Borges, Cortázar, Dostoiévski, Manuel Bandeira, e tantos outros.

Finalmente, agora as letras alimentam minha revolta solitária. 

Bell Gama

Saramago

           

                     Assisti a uma entrevista de José Saramago, como sempre lúcido e instigante, ainda que fisicamente combalido depois de superar uma pneumonia que quase o matou.

 

                     Indagado a respeito disso, se ao longo da enfermidade chegara a ter medo de morrer, respondeu que embora não tenha temor algum da morte, jamais chegou a pensar que iria morrer por causa da doença, conquanto soubesse que o seu estado era grave. Sentia tamanha serenidade, que não podia cogitar que estivesse morrendo. Só depois que se achava fora de perigo, teve consciência de que escapara por muito pouco. Aliás, o livro que veio lançar no Brasil, “A Viagem do Elefante”, dedicou-o carinhosamente “A Pilar, que não deixou que eu morresse”.

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                     Sabe-se de muitas experiências semelhantes, de pessoas que estiveram às portas da morte e relataram depois, com uma ou outra diferença, a sensação de bem-estar, de apaziguamento, de plenitude. Os idiotas da objetividade — como os designava a verve insuperável de Nelson Rodrigues — terão explicações físicas e científicas para isso, como a produção de endorfinas e outras substâncias pelo organismo, a falta de oxigenação do cérebro e quejandos.

 

                     Ao ouvir Saramago, a mim me acorreu a perplexidade de sempre diante da condição humana, dos sortilégios da vida e da morte. Aqueles mesmos idiotas dirão que me falta fé ou que deveria me submeter a algum tipo de terapia psicanalítica.

 

                     Mas essa perplexidade talvez seja a própria razão vital, o próprio tônus da existência, que se vai exaurindo quando nos aproximamos do perecimento. Eros e Tânatos.

 

                     É a incompreensão, o inconformismo, a busca de explicação que nos impele adiante, que impulsiona a filosofia, a arte, a ciência, a própria trajetória humana, enfim.

 

                     Afinal, haverá um fim em tudo ou o fim de tudo?

 

saramago       

 

Os gatos

 

 

                    

                        Meu amigo Roberto Rockmann, além da sua Tuka e dos vinhos, ama também os gatos (amor que divide com ela). Tem ele me dado a grande satisfação de freqüentar este blog e, no último comentário que deixou, indagou-me a respeito de poemas sobre gatos.

 

                        Sempre gostei muito dos bichos. De todos eles, indistintamente. Até mesmo daqueles que muita gente considera repulsivos ou nojentos, como sapos, ratos (bem a propósito, o filme “Ratatouille”, sobre um ratinho “chef de cuisine” é simplesmente adorável), corujas, lagartixas e outros. Aliás, existe uma lagartixa com a qual divido há muito tempo o pequeno escritório de casa, onde escrevo estas linhas. Acostumada comigo (ela ou talvez suas descendentes, tanto tempo faz!), anda pela minha mesa, pela parede próxima, sobre os livros, e de vez em quando deixa as suas cagadinhas, como a registrar a sua presença quando não estou para nos fazermos companhia.

 

                        Até o começo deste ano que se esvai, tive um cachorrinho, chamado Snow, que tomei da minha filha Isabella e era a minha alegria e refrigério. A sua morte, não tenho pudor em confessar, me entristeceu profundamente, tanto que até hoje ainda não consegui ter outro.

 

                        Embora nunca haja sido dono de um gato (se é que os gatos têm dono, pois, como todos os bichos de estimação, eles é que são donos de nós), agrada-me muito a sua altivez, sua independência e personalidade. Rockmann me disse certa feita que o gato é o bicho ideal para nós, os escorpianos.

 

                        Quanto a poemas sobre gatos, há uma imensidão deles. Alguns excelentes, outros, grandes porcarias. Vários poetas se revelam absolutamente apaixonados pelos bichanos, como Baudelaire, Neruda e Ferreira Gullar, para citar apenas alguns, de nacionalidade diversa.

 

                        Selecionei alguns poemas sobre gatos que me agradam, de autoria de poetas dos quais também gosto especialmente, que vão postados a seguir. Ferreira Gullar, mencionado acima, tem diversos e lindos poemas sobre o tema, alguns deles feitos para crianças. Tem até mesmo uma música em parceria com Adriana Calcanhotto, denominada “Gato pensa?”. Digo isso porque o poema dele que escolhi para postar (por considerar um grande poema) não fala diretamente sobre o gato, embora nele se inspire.

  

 

Gato que Brincas

 

Fernando Pessoa

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

 

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

 

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

 

 

 

Ode ao gato

Pablo Neruda

 

Os animais foram

imperfeitos,

compridos de rabo, tristes

de cabeça.

Pouco a pouco se foram

compondo,

fazendo-se paisagem,

adquirindo pintas, graça, vôo.

O gato,

só o gato apareceu completo

e orgulhoso:

nasceu completamente terminado,

anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro

a serpente quisera ter asas,

o cachorro é um leão desorientado,

o engenheiro quer ser poeta,

a mosca estuda para andorinha,

o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato

quer ser só gato

e todo gato é gato

do bigode ao rabo,

do pressentimento à ratazana viva,

da noite até os seus olhos de ouro.

Não há unidade

como ele,

não tem

a lua nem a flor

tal contextura:

é uma coisa só

como o sol ou o topázio,

e a elástica linha em seu contorno

firme e sutil é como

a linha da proa

de uma nave.

Os seus olhos amarelos

deixaram uma só

ranhura

para jogar as moedas da noite

Oh pequeno

imperador sem orbe,

conquistador sem pátria

mínimo tigre de salão, nupcial

sultão do céu

das telhas eróticas,

o vento do amor

na intempérie

reclamas

quando passas

e pousas

quatro pés delicados

no solo,

cheirando,

desconfiando

de todo o terrestre,

porque tudo

é imundo

para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente

da casa, arrogante

vestígio da noite,

preguiçoso, ginástico

e alheio,

profundíssimo gato,

polícia secreta

dos quartos,

insígnia

de um

desaparecido veludo,

certamente não há

enigma

na tua maneira,

talvez não sejas mistério,

todo o mundo sabe de ti e pertence

ao habitante menos misterioso,

talvez todos acreditem,

todos se acreditem donos,

proprietários, tios

de gatos, companheiros,

colegas,

discípulos ou amigos

do seu gato.

Eu não.

Eu não subscrevo.

Eu não conheço o gato.

Tudo sei, a vida e seu arquipélago,

o mar e a cidade incalculável,

a botânica,

o gineceu com os seus extravios,

o pôr e o menos da matemática,

os funis vulcânicos do mundo,

a casaca irreal do crocodilo,

a bondade ignorada do bombeiro,

o atavismo azul do sacerdote,

mas não posso decifrar um gato.

Minha razão resvalou na sua indiferença,

os seus olhos têm números de ouro.

 

 

Canción novísima de los gatos

Federico García Lorca (Poema inédito até 1986)

 

Mefistófeles casero

está tumbado al sol.

Es un gato elegante con gesto de león,

bien educado y bueno,

si bien algo burlón.

Es muy músico; entiende

a Debussy, más no

le gusta Beethoven.

Mi gato paseó

de noche en el teclado,

¡Oh, que satisfacción

de su alma! Debussy

fue un gato filarmónico en su vida anterior.

Este genial francés comprendió la belleza

del acorde gatuno sobre el teclado. Son

acordes modernos de agua turbia de sombra

(yo gato lo entiendo).

Irritan al burgués: ¡Admirable misión!

Francia admira a los gatos. Verlaine fue casi un gato

feo y semicatólico, huraño y juguetón,

que mayaba celeste a una luna invisible,

lamido (?) por las moscas y quemado de alcohol.

Francia quiere a los gatos como España al torero.

Como Rusia a la noche, como China al dragón.

El gato es inquietante, no es de este mundo. Tiene

el enorme prestigio de haber sido ya Dios.

¿Habéis notado cuando nos mira soñoliento?

Parece que nos dice: la vida es sucesión

de ritmos sexuales. Sexo tiene la luz,

sexo tiene la estrella, sexo tiene la flor.

Y mira derramando su alma verde en la sombra.

Nosotros vemos todos detrás al gran cabrón.

Su espíritu es andrógino de sexos ya marchitos,

languidez femenina y vibrar de varón,

un espíritu raro de inocencia y lujuria,

vejez y juventud casadas con amor.

Son Felipes segundos dogmáticos y altivos,

odian por fiel al perro, por servil al ratón,

admiten las caricias con gesto distinguido

y nos miran con aire sereno y superior.

Me parecen maestros de alta melancolía,

podrían curar tristezas de civilización.

La energía moderna, el tanque y el biplano

avivan en las almas el antiguo dolor.

La vida a cada paso refina las tristezas,

las almas cristalizan y la verdad voló,

un grano de amargura se entierra y da su espiga.

Saben esto los gatos mas bien que el sembrador.

Tienen algo de búhos y de toscas serpientes,

debieron tener alas cuando su creación.

Y hablaran de seguro con aquellos engendros

satánicos que Antonio desde su cueva vio.

Un gato enfurecido es casi Schopenhauer.

Cascarrabias horrible con cara de bribón,

pero siempre los gatos están bien educados

y se dedican graves a tumbarse en el sol.

El hombre es despreciable (dicen ellos), la muerte

llega tarde o temprano ¡Gocemos del calor!

Este gran gato mío arzobispal y bello

se duerme con la nana sepulcral del reloj.

Que le importan los senos (?) del negro Eclesiastés,

ni los sabios consejos del viejo Salomon?

Duerme tu, gato mío, como un dios perezoso,

mientras que yo suspiro por algo que voló.

El bello Pecopian (?) se sonríe en mi espejo,

de calavera tiene su sonrisa expresión.

Duerme tu santamente mientras toco el piano

este monstruo con dientes de nieve y de carbón.

Y tú gato de rico, cumbre de la pereza,

entérate de que hay gatos vagabundos que son

mártires de los niños que a pedradas los matan

y mueren como Sócrates

dándoles su perdón.

¡Oh gatos estupendos, sed guasones y raros,

y tumbaos panza arriba bañándoos en

el sol!

 

Les Chats

Charles Baudelaire

 

Les amoureux fervents et les savants austere

Aiment également, dans leur mûre saison,

Les chats puissants et doux, orgueil de la maison,

Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires.

 

Amis de la science et de la volupté,

Ils cherchent le silence et l’horreur des ténèbres;

L’Erèbe les eût pris pour ses coursiers funèbres,

S’ils pouvaient au servage incliner leur fierté.

 

Ils prennent en songeant les nobles attitudes

Des grands sphinx allongés au fond des solitudes,

Qui semblent s’endormir dans un rêve sans fin;

 

Leurs reins féconds sont pleins d’étincelles magiques,

Et des parcelles d’or, ainsi qu’un sable fin,

Etoilent vaguement leurs prunelles mystiques.

 

Soneto do gato morto

Vinicius de Morais

 

Um gato vivo é qualquer coisa linda

Nada existe com mais serenidade

Mesmo parado ele caminha ainda

As selvas sinuosas da saudade

 

De ter sido feroz. À sua vinda

Altas correntes de eletricidade

Rompem do ar as lâminas em cinza

Numa silenciosa tempestade.

 

Por isso ele está sempre a rir de cada

Um de nós, e ao morrer perde o veludo

Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

 

Acaba, é o antigato; porque nada

Nada parece mais com o fim de tudo

Que um gato morto.

 

Pensão Familiar

 

Manuel Bandeira

 

Jardim da pensãozinha burguesa.

Gatos espapaçados ao sol.

A tiririca sitia os canteiros chatos.

O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.

Os girassóis

amarelo!

resistem.

E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.

Com gestos de garçom de restaurant-Palace

Encobre cuidadosamente a mijadinha.

Sai vibrando com elegância a patinha direita:

— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

 

Lição de um Gato Siamês

Ferreira Gullar

 

Só agora sei

que existe a eternidade:

é a duração

finita

da minha precariedade.

 

O tempo fora

de mim

é relativo

mas não é o tempo vivo:

esse é eterno

porque efetivo

─ dura eternamente

enquanto vivo.

 

E como não vivo

além do eu vivo

não é

tempo relativo:

dura em si mesmo

eterno (e transitivo).

  

 

 

 

Dúvidas dubitáveis

duvida 

Paciente é o doente que aguenta o médico?

 

Errar por muito é melhor do que errar por pouco? 

 

O suicida é um homicida frustrado?

 

E se o suicida não morre: devemos lhe dar parabéns ou pêsames?

 

Se a fé move montanhas, cordilheira é lugar de pouca fé?

 

Se mudar os planos, mudo de plano?

 

O universo paralelo tem porta de vaivém?

 

O comum de dois gêneros é bissexual ou só faz gênero?

 

O manto diáfano da fantasia agasalha quando esfria?

Ego Trip

 

 

 

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Para a Júlia, que estuda Psicologia e anda me ensinando sobre Id, Ego, Superego.

 

 

 

 

O Ego é o eco

(ou a eca)

do que fiz,

ressoa retumbante

mesmo quando

só assôo o nariz.

 

 

Amigos à parte

 

 

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“Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.”

(Carlos Drummond de Andrade, “Poema de Sete Faces”)

                        Desde os dezoito anos, vivo atrás dos óculos. Já usei bigode, e assim como o poeta, tenho poucos amigos.

 

                        Isso não significa que seja solitário ou arredio, embora não abdique do direito de estar só, o que me faz muito bem de vez em quando. Tenho inúmeros conhecidos, colegas, companheiros, confrades, mas amigos à parte.

 

                        A propósito, anotava Voltaire: “Faz muito tempo que se fala do templo da Amizade e sabe-se que foi muito pouco freqüentado”,“(…) pois os maus só têm cúmplices, os voluptuosos têm companheiros de devassidão, os interesseiros têm sócios, os políticos congregam partidários, o comum dos homens ociosos tem ligações, os príncipes têm cortesãos; somente os homens virtuosos têm amigos. Cétego era cúmplice de Catilina, Mecenas era cortesão de Otávio, mas Cícero era amigo de Ático.”

 

                        Sem pretensão alguma de me comparar com figuras da grandeza de Drummond, Voltaire ou Cícero, penso de fato que a amizade seja naturalmente seletiva. Ser ou ter irmão, muitas vezes, pode não passar de mero determinismo genético, ao passo que os laços que unem dois amigos são forjados por uma confluência indelével de afinidades, e também de contrastes, ou de complementaridades.

 

                        Com alguns que conheci na juventude, mesmo depois de vários anos sem nos vermos, a camaradagem e a conversa simplesmente continuam a fluir, como se nunca tivessem sido interrompidas. Nesses, reconheço um amigo.

 

                        Com o passar do tempo, vamos ficando mais restritivos, mais cheios de manias, o que dificulta novas amizades.

 

                        Apesar disso, ou por isso mesmo, algumas amizades da maturidade se tornam muito especiais e prazerosas. É o caso de um amigo e colega de trabalho, com quem passei a conviver há pouco mais de cinco anos. Ex-delegado de Polícia, teve a coragem de pedir exoneração em virtude dos vencimentos aviltantes, para não correr o risco de se corromper. Recomeçou a vida profissional praticamente do zero, próximo dos quarenta anos, já casado e com filho. Mas revela ainda, em muitos momentos, a velha têmpera de “tira”, ou “tirocínio policial”, como costuma ele dizer, jocosamente. Trata-se, na verdade, de uma sincera vocação que se frustrou por força do modo ignóbil e insensato com que os nossos governantes “obram” no âmbito da segurança (ou insegurança) pública. Em conseqüência dessa inépcia irresponsável, quantos outros talentos policiais não foram perdidos, por terem abandonado a carreira ou se embrenhado por descaminhos? Ainda agora o estado de São Paulo padece com uma greve da sua Polícia Civil, que se arrasta há meses e já redundou em incidentes de imensa gravidade, sem que o governo se mostre capaz de dar uma solução adequada.

 

                        As muitas histórias desse meu querido amigo, que ele narra com especial sabor quando estamos a jogar conversa fora, fazem dele um grande personagem, à espera de um autor.

 

                        Outro amigo da maturidade — ainda muito recente, mas creio que já posso incluí-lo nesse rol — tomei emprestado da minha filha e do meu genro, por meio dos quais nos conhecemos. Inteligente, culto e perspicaz, tem sido um verdadeiro privilégio desfrutar da sua companhia e da sua adorável mulher. Grande conhecedor de vinhos e gourmet (o que ele nega, com veemência), mas sem aquela afetação e autoridade com que muitos costumam pontificar, saboreia também as outras coisas boas da vida, como cinema, música, literatura. Quase que obrigado pelos amigos e convivas, acabou por criar um blog, “Aventuras Enogastronômicas”, para o qual há um link ao lado e que a cada dia está melhor, mais interessante e atraente. Entre lá e confira por si mesmo.

Genealogia

 

O avô

 a calva

o ovo

e o alvo.

 

A mãe

 a mama

 a mão

 e a ama.

 

O pai

 a palma

 o pau

 e o prumo.

 

O sexo

 o nexo

 o plexo

 e o fluxo.

 

O amor

 a mora

 a mira

 e o muro

 

A vida

 a ida

 a dádiva

 e a dívida.

 

A pá, o pé e o pó.