Para a Júlia, que estuda Psicologia e anda me ensinando sobre Id, Ego, Superego.
O Ego é o eco
(ou a eca)
do que fiz,
ressoa retumbante
mesmo quando
só assôo o nariz.
“Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.”
(Carlos Drummond de Andrade, “Poema de Sete Faces”)
Desde os dezoito anos, vivo atrás dos óculos. Já usei bigode, e assim como o poeta, tenho poucos amigos.
Isso não significa que seja solitário ou arredio, embora não abdique do direito de estar só, o que me faz muito bem de vez em quando. Tenho inúmeros conhecidos, colegas, companheiros, confrades, mas amigos à parte.
A propósito, anotava Voltaire: “Faz muito tempo que se fala do templo da Amizade e sabe-se que foi muito pouco freqüentado”,“(…) pois os maus só têm cúmplices, os voluptuosos têm companheiros de devassidão, os interesseiros têm sócios, os políticos congregam partidários, o comum dos homens ociosos tem ligações, os príncipes têm cortesãos; somente os homens virtuosos têm amigos. Cétego era cúmplice de Catilina, Mecenas era cortesão de Otávio, mas Cícero era amigo de Ático.”
Sem pretensão alguma de me comparar com figuras da grandeza de Drummond, Voltaire ou Cícero, penso de fato que a amizade seja naturalmente seletiva. Ser ou ter irmão, muitas vezes, pode não passar de mero determinismo genético, ao passo que os laços que unem dois amigos são forjados por uma confluência indelével de afinidades, e também de contrastes, ou de complementaridades.
Com alguns que conheci na juventude, mesmo depois de vários anos sem nos vermos, a camaradagem e a conversa simplesmente continuam a fluir, como se nunca tivessem sido interrompidas. Nesses, reconheço um amigo.
Com o passar do tempo, vamos ficando mais restritivos, mais cheios de manias, o que dificulta novas amizades.
Apesar disso, ou por isso mesmo, algumas amizades da maturidade se tornam muito especiais e prazerosas. É o caso de um amigo e colega de trabalho, com quem passei a conviver há pouco mais de cinco anos. Ex-delegado de Polícia, teve a coragem de pedir exoneração em virtude dos vencimentos aviltantes, para não correr o risco de se corromper. Recomeçou a vida profissional praticamente do zero, próximo dos quarenta anos, já casado e com filho. Mas revela ainda, em muitos momentos, a velha têmpera de “tira”, ou “tirocínio policial”, como costuma ele dizer, jocosamente. Trata-se, na verdade, de uma sincera vocação que se frustrou por força do modo ignóbil e insensato com que os nossos governantes “obram” no âmbito da segurança (ou insegurança) pública. Em conseqüência dessa inépcia irresponsável, quantos outros talentos policiais não foram perdidos, por terem abandonado a carreira ou se embrenhado por descaminhos? Ainda agora o estado de São Paulo padece com uma greve da sua Polícia Civil, que se arrasta há meses e já redundou em incidentes de imensa gravidade, sem que o governo se mostre capaz de dar uma solução adequada.
As muitas histórias desse meu querido amigo, que ele narra com especial sabor quando estamos a jogar conversa fora, fazem dele um grande personagem, à espera de um autor.
Outro amigo da maturidade — ainda muito recente, mas creio que já posso incluí-lo nesse rol — tomei emprestado da minha filha e do meu genro, por meio dos quais nos conhecemos. Inteligente, culto e perspicaz, tem sido um verdadeiro privilégio desfrutar da sua companhia e da sua adorável mulher. Grande conhecedor de vinhos e gourmet (o que ele nega, com veemência), mas sem aquela afetação e autoridade com que muitos costumam pontificar, saboreia também as outras coisas boas da vida, como cinema, música, literatura. Quase que obrigado pelos amigos e convivas, acabou por criar um blog, “Aventuras Enogastronômicas”, para o qual há um link ao lado e que a cada dia está melhor, mais interessante e atraente. Entre lá e confira por si mesmo.