Posts from dezembro, 2008

Ainda os memoriosos

       

               

                       

                        Para os memoriosos, paulistanos ou não, que gostariam de lembrar uma São Paulo que conheceram, ou só ouviram dizer, dois livros preciosos:

                      sao-paulo-dos-meus-amores2  “São Paulo de Meus Amores”, de Afonso Schmidt, publicado em 1954 (ano do quarto centenário), e reeditado em 2003, pela editora Paz e Terra (Coleção São Paulo), com patrocínio do Grupo Santander Banespa. O autor, nascido em 1890, foi jornalista e escritor, com extensa obra, ganhador de diversos prêmios literários, entre eles o de intelectual do ano, em 1963, pela União Brasileira de Escritores. Ajudou a fundar o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e foi membro da Academia Paulista de Letras. Trabalhou durante longos anos para “O Estado de S. Paulo”, até falecer, no dia 3 de abril de 1964, curiosamente dois dias depois do golpe militar, que por certo reprovaria e o afligiria, já que foi redator de jornais anarquistas e de operários, tendo participado ativamente da fundação do Partido Comunista do Brasil. Mas não espere encontrar, no livro, o militante político ou o jornalista engajado. Trata-se de crônicas breves e melancólicas, que perscrutam à luz da memória afetiva o passado e a história de São Paulo.

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                       postais-paulistas1 “Postais Paulistas”, de Frederico Branco, há muito tempo esgotado, ganhou uma 2ª edição, em 2002, pela Editora Senac. Também jornalista de longa militância, o autor, nascido em 1927 e falecido em 2001, foi cronista semanal, nos anos de 1970 a 1990, do “Jornal da Tarde”. O livro reúne as crônicas publicadas naquele jornal entre 1973 e 1993. Paulistano da rua Conselheiro Brotero, sempre foi apaixonado por São Paulo, que conhecia e palmilhou como poucos. Anota, com agudeza, o Prof. Elias Thomé Saliba, no prefácio, que “Frederico Branco caminha pela cidade atual juntando os cacos dos tempos passados. Tempos de uma bonomia alegre, nos quais ainda era possível perceber a passagem regular das estações do ano nos plátanos e ipês, de passeis nos velhos camarões (os bondes fechados da Light), de chás na Mappin Stores, lanches na Salada Paulista ou filmes no Odeon ou no Metro. Acompanhando o autor nos seus passeios, vamos nos surpreender pela sinceridade comovente e encantadora dos seus personagens: Zilá, a engolidora de fogo, “seu” Pontes, livreiro antigo que costumava ler os livros que vendia; “seu” Nestor pianista, que animava a Barra Funda com sua música noturna; Remo Carotenuto, barbeiro em domicílio; Neco Perneta, o palpiteiro sapo-falante do Bar e Bilhares Benfica; Marcílio Capeta e sua arte coreográfica de abordar bondes (a esses eu acrescentaria o Robert Taylor da Lapa, cujo velório inolvidável e agitado é relatado na crônica que abre o livro) — enfim, uma humanidade vasta e variada que teimava em sobreviver numa cidade meio híbrida, feita de intimismo provinciano e cosmopolitismo agressivo.” O livro traz ainda algumas lindas ilustrações de Tereza Saraiva.   

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Os Memoriosos

 

 

                        Jorge Luis Borges, num de seus contos mais memoráveis, conta de um deles. Talvez o maior de todos. Assim descreve o seu dom (ou seu tormento):

 

 

 

“Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, já tinha requerido um dia inteiro. Disse-me; “Mais recordações tenho eu sozinho que as tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”. E também: “Meus sonhos são como a vigília de vocês”. E, igualmente, próximo do amanhecer: “Minha memória, senhor, é o despejadouro de lixos”. Uma circunferência num quadro negro, um triângulo retângulo, um losango são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo acontecia a Irineu com as emaranhadas crinas de um potro, com uma ponta de gado numa coxilha, com o fogo mutável e com a inumerável cinza, com os muitos rostos de um morto num longo velório. Não sei quantas estrelas via no céu.”

 

                        O próprio Borges era um memorioso. Meu avô também. Lembro-me dele, com os olhos fechados, a falar de lugares, pessoas e coisas que nunca tinha visto, mas se lembrava perfeitamente.

 

                         Faço parte dessa família. 

 

                        Lembram-me coisas que me passaram, ou não. Mas se me lembram, me passaram, e me passarão.

 

                        A bem de ver, o que temos é só o passado. O presente, este instante fugaz, acaba de passar. O futuro, se vier, será o presente que passa.

 

                        Morremos quando nos esquecemos, ou nos esquecerem.

 

                        É de um memorioso a angústia derradeira de Roy Batty (N6MAA10816, Nexus-6, Masculino, Nível físico A, Nível mental A, Data de fabricação 1/08/16) o mais poderoso dos andróides de Blade Runner (magnificamente interpretado por Rutger Hauer):

 

 

blade-runner5“I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhaüser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in the rain. Time to die.”

 

                        É a vida que se vai, em vão, quando as lembranças se perdem, como lágrimas na chuva:

 

 

No silêncio da sala

os pingos da torneira que vaza

são uma voz que não cala

inundando o vazio da casa.

 

Clepsidra sonante

é a própria vida que esvai

(sem que se dê conta)

a cada gota que desponta

 

Oscila, resiste, insiste,

por fim cai, tremifusa,

como uma lágrima na chuva .

                                             .

                                               .