Big Brother

  

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                        Começou mais um Big Brother. O nono. Jamais pensei que o programa(?), passada a novidade, resistisse tanto tempo. Deve haver, pois, um público cativo imenso, embora desconfie muito dos números estratosféricos divulgados pela emissora.

 

                        Longe estou de ser moralista ou dono da verdade. Muito pelo contrário. As mulheres da minha vida — que são as pessoas que mais amo e prezo neste mundo, e fazem de mim o que bem entendem — adoram a atração televisisa, acompanham, comentam e se divertem. Inevitavelmente acabo pegando uma carona de vez em quando.

 

                        Mesmo assim, considero o tal programa(?) a manifestação e a exploração do que há de pior no ser humano.

 

                        Apesar de gostar muito de George Orwell (do homem e da obra), desde que me caiu às mãos A Revolução dos Bichos (Animal Farm), de ser 1984 um livro cult, e de saber da sua aterradora e sinistra premonição, esperei pacientemente, por um requinte de satisfação, para ler o romance no próprio ano de 1984, quando vivíamos os estertores da ditadura militar iniciada em 1964. Li numa velha edição de 1957, da Companhia Editora Nacional, com tradução de Wilson Velloso.

 

                        O exemplar, que pertence (ou pertencia) a meu pai, ainda está comigo. É uma modesta brochura, com uma capa retrô e deliciosamente kitsch, em vermelho e preto sombrios, o título destacado em números garrafais que se projetam, entremeados de singelos desenhos de “olhinhos”, com fachos de luz ao fundo (não sei definir se de holofotes ou de explosões ). Abaixo, o tosco e pequenino perfil de um casal que se abraça.

 

                    Era um dia frio e ensolarado de abril, e o relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.

                        O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, diz a legenda.

                        Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez.

 

(…)

 

                     A voz da teletela estava ainda falando de prisioneiros, presa e matança, mas lá fora a gritaria diminuíra um pouco. Os garçons tinham voltado ao trabalho. Um deles aproximou-se com a garrafa de gim. Winston, imerso num sonho bem aventurado, não reparou quando lhe encheram o copo. Já não corria nem dava vivas. Estava de volta ao Ministério do Amor, tudo perdoado, a alma branca de neve. Estava na tribuna dos réus, confessando tudo, implicando todos. Ia andando pelo corredor de ladrilhos brancos, com a impressão de andar ao sol, acompanhado por um guarda armado. Por fim penetrava-lhe o crânio a bala tão esperada.

                        Levantou a vista para o rosto enorme. Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh, mal-entendido cruel e desnecessário! Oh, teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gim escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão.

 

                        Qualquer semelhança não será mera coincidência.

 

orwell

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