Aquela máxima popular de que não se deve discutir sobre religião e política é uma bobagem. Como se trata de asneira dizer que o povo é sempre sábio, ou que a voz do povo é a voz de Deus.
O povo, essa abstração de que tantos se valem para se arvorar de seu arauto ou representante, é composto de justos e iníquos, prudentes e incautos, crédulos e velhacos, probos e pusilânimes, sapientes e imbecis.
A controvérsia, o confronto de pensamentos e de opiniões sempre enriquece, mesmo quando os antagonistas não se convencem um ao outro. Aliás, só os loucos jamais mudam o que pensam, daí sentenciar Chesterton que o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão.
O que se deve temer é a intolerância, o dogmatismo, o fanatismo, o magister dixit. A democracia, outra ideia distorcida ao sabor dos apetites pessoais, há de ter como fundamento básico a aceitação e a convivência das diferenças, para que não se torne aquele mero fetichismo numérico a que se referia Jorge Luis Borges, incompreendido e patrulhado por isso.
A mídia costuma realizar enquetes ou listas sobre o melhor livro, escritor, filme, jogador de futebol, cantor, ou o que valha. Entre amigos e confrades também é comum essa discussão, que pode ser divertida e interessante, desde que se mantenha a civilidade.
No ano que se findou, em virtude do centenário da morte de Machado de Assis, uma questão recorrente foi a de quem teria sido o maior escritor ou romancista brasileiro, ele ou Guimarães Rosa, a partir do quê se digladiaram as correntes de machadianos e de roseanos.
Li e ouvi considerações argutas, e também estultices, de ambos os lados, mas parece necessário ponderar se a comparação tem cabimento ou relevância. Afora o gosto pessoal ou o sabor da polêmica, haverá sentido em contrapor Shakespeare versus Brecht, Velasquez versus Picasso, Mozart versus Beethoven, Dante versus Cervantes, Camões versus Pessoa, Drummond versus João Cabral?
A arte, como a cultura em geral, é um processo essencialmente dinâmico e dialético, em que tudo se imbrica, pressupondo-se e perfazendo-se. Lembrava Ortega Y Gasset que uma das evidências que distingue o homem dos animais é que o homem acumula seu próprio passado, possui-o e aproveita-o. O homem não é nunca um primeiro homem, começa desde logo a existir sobre certa altura do pretérito acumulado.
Assim também com a literatura e os escritores, tanto que no dizer de Raymond Queneau, adotado como epígrafe por Alberto Manguel, “Toda grande obra de literatura, ou é a Ilíada ou é a Odisseia”. De resto, como anota o próprio Manguel, “Com toda a probabilidade a Ilíada e a Odisseia passaram a existir aos poucos, de modo indefinido, mais como mitos populares que como produções literárias, por meio do processo insondável de filtragem e combinação de baladas antigas, até adquirir uma forma narrativa coerente, baladas cantadas em línguas que já eram arcaicas quando o poeta (ou os poetas) que a tradição concordou em chamar de Homero compôs sua obra, no século VIII a.C.”. (Ilíada e Odisseia de Homero, tradução, Pedro Maia Soares — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008).
Annibal Augusto Gama observa em saboroso ensaio que um livro são muitos livros ou todo livro é um palimpsesto: “Que é um palimpsesto? Do grego palimpsestos, com o significado de “raspado novamente”, palimpsesto é principalmente o pergaminho que, em razão de sua escassez e alto custo, era usado duas ou três vezes, mediante raspagem de seu texto anterior; ou, mais explicitamente, o manuscrito sob o qual, às vezes através de olho desarmado, e agora mediante processos como a fotografia, os raios infravermelhos, ultravioletas, ou luz florescente, se descobre outro texto subjacente.” (Os Diamantes de Ophir — Ribeirão Preto, SP: FUNPEC Editora, 2007).
É praticamente pacífico o reconhecimento de que, a despeito de alguns notáveis escritores que o precederam (o próprio Machado reputava José de Alencar o chefe da literatura nacional), Machado de Assis, como já anotado aqui, foi quem definiu ou consolidou o padrão literário do Brasil, que à época ainda buscava se firmar com identidade própria. A esse respeito, no início da sua carreira, Machado escreveu um ensaio crítico revelador, denominado “Instinto de Nacionalidade”, em que assinala: “Não há dúvida de que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas, que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (Obras Completas, 10ª reimpressão — Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004)
Mais tarde, o papel de Guimarães Rosa, não menos importante, foi de transgressão ou progressão vivificadora da nossa literatura, deflagrada a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. Na esteira do que disse acima Machado de Assis, Guimarães Rosa (que chegou a ser considerado um “escritor regionalista”) partiu do seu (nosso) quintal para ser universal. “Grande Sertão: Veredas” é um clássico da mesma linha de “Ilíada” e “Odisseia” ou de “Os Lusíadas”.
Afinal, Machado ou Rosa?
Ambos, sem versus ou adverso.