Posts from fevereiro, 2009

Istambul, Minas Gerais

  

    

Para a Sonia (com pedido de perdão pelas caneladas)

  

“Eu gostaria muito de escrever assim toda a história da minha vida — como se minha vida tivesse acontecido a uma outra pessoa, como se fosse um sonho em que eu sentisse a minha voz sumir e a minha vontade sucumbir ao encantamento. Por mais que a considere linda, acho a linguagem da epopéia inconvincente, pois não consigo aceitar que os mitos que contamos acerca do começo de nossas vidas nos preparem para as segundas vidas mais autênticas e brilhantes a que precisamos dar início assim que despertamos. Porque — pelo menos para pessoas como eu — essa segunda vida é nada menos do que o livro em suas mãos. Por isso, preste muita atenção, caro leitor. Vou lhe falar com franqueza, e em troca quero pedir a sua compaixão” (Istambul: memória e cidade, Orhan Pamuk).

 

                        Istambul sempre me atraiu.

 

                        De início pela simples sonoridade da palavra, depois pelo que fui sabendo a respeito dela nas aulas de História (antiga Constantinopla, sede do Império Bizantino, cuja queda marca o fim da Idade Média etc etc) e, sobretudo, ao ler novelas policiais e assistir a filmes idem, em que a cidade era palco de mil aventuras, nas quais se envolviam espiões, assassinos, detetives, mulheres enigmáticas e fatais. Personagens, ruas, becos, casas e edifícios, o encontro do Oriente com o Ocidente, o Bósforo, com suas águas profundas e negras, singradas por navios misteriosos e suspeitos.

 

                       livro-istambul-memoria-e-cidade1 Tão logo me deparei com o livro Istambul: memória e cidade (e sua melancólica e linda capa) do escritor Orhan Pamuk, Nobel de literatura em 2006, que nasceu e passou a maior parte de sua vida lá, tratei de comprá-lo e nele mergulhei. Aliás, Orhan Pamuk se exilou nos EUA em razão das ameaças que passou a sofrer depois que teve a coragem de falar sobre o episódio maldito e proibido para os turcos, que é o massacre de armênios.

 

Costumo ler vários livros simultaneamente, saltando de um para outro, sem me confundir ou perder a atmosfera de cada um (faço o mesmo com os canais da TV, e minha mulher briga comigo, dizendo que isso é coisa de maluco). Por isso, embora já tenha terminado a leitura há algum tempo, só agora me ocorreu fazer este registro e recomendar o livro.

 

                        Tenho quase a mesma idade de Orhan Pamuk, e suas reminiscências afetivas sobre o Edifício Pamuk, cujos andares abrigava toda a sua família (rica, mas em processo de decadência), suas visitas ao apartamento da avó, com seus móveis antigos, seus tapetes, suas salas fechadas, as fotografias espalhadas por todos os cantos, os vasos e enfeites intocáveis, a solidão e a imaginação do menino Orhan, tentando compreender o mundo que o cercava, me provocaram um retorno proustiano à casa dos meus avós maternos, onde passei parte da primeira infância.

 

                        Istambul, Turquia, e Guaxupé, sul de Minas, Brasil. Lugares tão distantes, meninos tão parecidos, circunstâncias e sentimentos tão próximos!

 

                        Essa busca do tempo perdido reavivou-se hoje com outra madeleine, que foi uma troca de e-mails com uma sobrinha da minha avó materna, a quem sempre considerei como prima em primeiro grau, já que também somos quase da mesma idade. Apesar disso, convivemos pouco, pois sempre moramos em cidades diferentes e só nos encontrávamos esporadicamente.

 

                        Retomamos o contato pela internet e ela, tendo visitado este blog, deixou nele um comentário carinhoso e me enviou e-mail cheio de recordações, entre as quais uma que me faz corar de vergonha (e de que juro não me lembrar): diz ela que vivia com as canelas roxas pelos pontapés que eu lhe dava, quando éramos pequenos.

 

                        Logo eu, que me achava um gentil infante!

 

                        Muito dessa impressão (que parece agora ser falsa) de menino bem comportado e circunspecto, que também me unia ao pequeno Orhan de Istambul, decorre de uma mania da minha avó materna, Dona Gessy, que adorava me empetecar com uns terninhos de linho engomado (pobre de mim), com monogramas por ela mesma bordados com todo o capricho no bolso, e me levar consigo nas visitas às amigas.

 

                        As madames ficavam a conversar, tomar chá, comer bolinhos e jogar baralho por longas horas, enquanto eu ─ para orgulho da vovó ─ mantinha um comportamento impecável, de um verdadeiro rapazinho e cavalheiro, sem tocar em nada que pudesse ser quebrado. Mergulhava então em mim mesmo, e minha imaginação campeava livre, inventando coisas e brincadeiras íntimas, para passar o tempo e fugir da chatice.

 

                        De vez em quando, ou ao nos despedirmos para ir embora, algumas das madames me derramavam elogios, me apertavam as bochechas ou me enchiam de beijos molhados e piniquentos, que me deixavam a cara lambuzada e marcada de batom.

 

                        Talvez depois descontasse tudo isso nas canelas da pobre prima.

 

O nome do presidente

 

                        Leio no caderno local da Folha de S. Paulo que na vizinha Batatais, pequenina, mas tradicional e encantadora pela sua Igreja em que se acha o maior conjunto de obras sacras pintadas por Portinari, pela praça central, cujo jardim tem árvores e arbustos modelados em forma de bichos, astros celestes e outras delícias,  e pelo desfile de suas escolas de samba no carnaval (considerado o melhor de toda a região), a grande campeã foi a humilde Unidos do Morro, sediada num dos bairros mais carentes, que desbancou a heptacampeã e abonada Castelo.

 

                        Segundo o venturoso presidente da Unidos do Morro, “Tudo saiu como nós queríamos, apesar do sacrifício para juntar dinheiro”.

 

                        O presidente campeão é conhecido como Simão, mas o seu nome verdadeiro me remete para um universo que me fascina, o das palavras e do poder que elas encerram (assunto sobre o qual ainda pretendo escrever alguma coisa neste blog).

 

                        O nome do presidente á Felicíssimo Antonio dos Santos.

 

Apocalípticos e apopléticos

 

                        No deserto de idéias e de imaginação com que nos sufocam diariamente as redes de televisão, e que se torna ainda mais árido no carnaval, com as intermináveis transmissões dos apopléticos desfiles de escolas de samba e de trios elétricos — que podem ser muito divertidos para quem gosta e deles participa diretamente, mas são chatíssimos de assistir em casa —, não fogem da pasmaceira os canais a cabo, que deveriam aproveitar para oferecer atrações alternativas, mas se limitam a reprises das reprises.

                        Mesmo assim, zapeando em desespero na madrugada, tive a boa sorte de pegar ainda no início o extraordinário Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, que há algum tempo não revia integralmente. 

                        Já não há o que dizer de novo sobre a excelência do filme, que se tornou um clássico, baseado no livro O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, outro clássico. Trinta anos depois de lançado, o filme continua absolutamente atual (como são os clássicos) e irretocável nas suas cenas memoráveis (o bombardeio dos helicópteros ao som de Wagner; o ataque alucinante ou alucinógeno à ponte; o Capitão Willard (Martin Sheen) levantando-se de dentro d’água, e bêbado no quarto, socando o espelho; o ritual do sacrifício do boi. Consta, aliás, que estas duas últimas cenas foram reais) A exemplo de O Leopardo, de Visconti, já referido neste blog, trata-se de uma das raras transposições bem sucedidas de uma obra literária para o cinema, embora Coppola e seu parceiro John Milius tenham se valido de muito mais liberdade na elaboração do roteiro.

                        Tudo o que podia acontecer de errado durante a filmagem aconteceu, estourando o orçamento e o organograma (previsto para ser filmado em 6 semanas se estendeu por 16 meses), graças a um furacão que destruiu todos os sets, ao ataque cardíaco sofrido por Martin Sheen, à péssima forma física de Marlon Brando e suas exigências de astro rei, além de outros inúmeros contratempos (dizem que Coppola, em desespero, diversas vezes ameaçou suicidar-se, e depois do filme ficou praticamente falido). 

                        Mas o que quero ressaltar aqui é a minha imensa admiração pelo grande ator Robert Duvall. Não apenas neste, mas em todos os filmes de que participa a sua atuação é sempre perfeita, exata e contida (vide o consiglieri de O Poderoso Chefão), mesmo quando seria fácil desbordar para a histrionice, como no caso do coronel surfista Bill Kilgore.

                        A sua presença é discreta, mas deliciosa e arrebatadora, roubando todas as cenas, até mesmo quando se dá ao desfrute de um filme menor e despretensioso, como Assassination Tango (O Tango e o Assassino), que produziu e dirigiu para se divertir, movido por seu amor ao tango e a Buenos Aires, onde é freqüentador assíduo do café La Biela, na Recoleta (como também o era Jorge Luis Borges, cuja estátua impressionante, de terno, gravata e bengala, ficava sentada a uma das mesas, com uma garrafa de água e uma xícara de café. Foi retirada para reparo e não sei se já a repuseram). 

                        No extremo oposto da canastrice está para mim o ator espanhol Javier Bardem (prestigiadíssimo), que quase consegue estragar o bom filme dos irmãos Coen, Onde os fracos não têm vez (No Country for Old Men). Talvez pretendendo imprimir um estilo minimalista ou tomado pelos tiques do Actor’s Studio, ele está ridículo e intolerável como o assassino psicopata (Anton Chigurh), falando baixinho, quase sem abrir a boca (como um mímico inapto), movimentando-se lentamente (quando ferido ou cheio de saúde), com os olhos semicerrados e a cabeleira grotesca, como se com esses recursos patéticos pudesse infundir terror e força ao personagem. A mim só me fez rir de constrangimento e de espanto ao saber que ganhou o Globo de Ouro e o Oscar como melhor ator coadjuvante!

                        Num outro filme bem razoável (que vale especialmente pela reconstituição histórica), dirigido por Milos Forman, sobre a vida do pintor Goya (Sombras de Goya, em português, ou Goya’s Ghosts, no original) Javier Bardem já havia me irritado com as mesmas caras e bocas e o jeito de falar com que interpretou outro vilão, Frei Lorenzo, que depois de aprontar muitas cai em desgraça perante a terrível Inquisição espanhola, foge e abandona a Igreja, para retornar depois como um (falso) representante dos novos tempos desencadeados pela Revolução Francesa. Não foi muito diferente em outros filmes a que assisti e ele atuou. 

                        Pode ser implicância minha, mas pelo menos fica a sugestão dos filmes e a minha modesta homenagem ao inigualável Robert Duvall.

 

P.S.                 Conversando há pouco com a Carol e o Marcel (o mais novo Mestre em Ciência Política) soube que ambos gostaram muito da performance de Javier Bardem no filme dos irmãos Coen. Cada cabeça uma sentença, ou sou eu que esteja mesmo ficando velho e chato.

 

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Javier Bardem, como Anton Chigurh (à esquerda) e como Frei Lorenzo (à direita). ALGUMA DIFERENÇA???

 

 

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Robert Duvall (ele mesmo)

 

 

De incensados a incinerados

 

                        Ricardo Noblat, em seu ótimo blog http://oglobo.globo.com/pais/noblat/ , reproduz (por favor, vamos dar um descanso para o verbo “resgatar”) um vaticínio de Karl Marx que da o que pensar:

 

Você diria que o velho Marx tinha razão?

“Os donos do capital vão estimular a classe trabalhadora a comprar bens caros, casas e tecnologia, fazendo-os dever cada vez mais, até que se torne insuportável. O débito não pago levará os bancos à falência, que terão que ser nacionalizados pelo Estado” (Karl Marx, in Das Kapital, 1867)

 

                        É curioso o que se passa com os autores das chamadas obras “capitais”, que imprimiram novos rumos à humanidade. Num primeiro momento a sua palavra é tida como definitiva e irretocável, a demarcar o próprio fim da história. Com o passar do tempo, se a realidade sempre cambiante não confirma todas as idéias expostas, ou se novos conceitos entram em moda, o autor e a obra são simplesmente varridos para o lixo da história, como se nada representassem ou nenhum crédito merecessem. Em contrapartida,  alguns seguidores viscerais insistem na sua defesa intransigente, sem admitir revisão alguma.

                        Não sei se de fato aconteceu ou se faz parte do folclore acerca de Marx. Contam que no auge de seu prestígio, ao ser apresentado a um namorado ou amigo de uma filha, o rapaz com a impetuosidade e a imprudência da juventude passou a discorrer magistralmente sobre a significação dos escritos de Marx, o qual lhe teria respondido:

                        — Foi isso o que eu disse? Então preciso me ler com urgência!

                        O mesmo acontece com Freud, cujas teorias são veneradas ou apedrejadas sem limites. Também é repetido o episódio de que ao ser lembrado por uma madame sobre a simbologia fálica do charuto (parece que quanto a isso o presidente Bill Clinton teria dado uma interpretação literal), Freud, que era um fumante inveterado, redarguiu:

                        — Minha senhora, às vezes um charuto é apenas um charuto.

 

 

Vida e Bola

 

                        Quando Robinho, magrinho e de canelinhas finas, naquela inesquecível final contra o Corinthians (que me perdoem os fiéis mosqueteiros), pedalou e atordoou  o zagueiro Rogério, este torcedor até então sofrido e saudoso do grande Santos F. C. de glórias mil (que começaram com um outro negrinho de pernas finas), escrevinhou uns versos de ocasião, que ficaram na gaveta.pele4

 

 

 

 

 

                        No jogo de ontem da seleção brasileira, o drible dado no botinudo e falastrão Zambrotta  (que o diga Zidane) e nos demais defensores da Azzurra, famosa pelo seu catenaccio, me anima a publicá-los aqui.

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VIDA E BOLA

(às “pedaladas” do Robinho)

  

O pobre e ofegante zagueiro

tomou um drible desconcertante

que o deixou sem pai nem mãe.

Daí em diante, Édipo órfão,

errou às cegas pelo campo

até ser engolido pelo túnel sombrio

e se recolher desnudo e mudo

no ventre absconso do vestiário.

 

Mino Carta e os gatos pardos

 

                        O jornalista Mino Carta despediu-se do seu blog e anunciou ainda que, por ora, se cala na revista Carta Capital.

 

                        Explica que, Quarenta e cinco anos depois, vivo uma quadra de extremo desalento, em contraposição às grandes esperanças alimentadas durante a ditadura. Logo frustradas pela rejeição da emenda das eleições diretas após uma campanha a favor que honra o povo brasileiro. Fez-se, pelo contrário, a conciliação das elites, nos exatos moldes previamente desenhados pelo general Golbery do Couto e Silva. A aposta do Merlin do Planalto estava certa e vale até hoje.”

 

                        No rol das suas decepções, acrescenta o balanço pouco animador de seis anos de Lula no poder, a recente eleição de José Sarney para a presidência do Senado da República e de Michel Temer para a da Câmara Federal, reconstituindo-se “(…) o “centrão” velho de guerra, uma das obras-primas da conciliação tradicional.”. E vocifera: “Enquanto isso, o Brasil ainda divide com Serra Leoa e Nigéria a primazia mundial da má distribuição de renda, exporta commodities, 55 mil brasileiros morrem assassinados todo ano, 5% ganham de 800 reais pra cima. E 2009 promete ser bem pior que pretendiam os economistas do governo. Houve, e há, justificadíssima grita quanto às privatizações processadas no governo FHC. E que dizer do BNDES que empresta aos bilionários para armar a BrOi, a qual (é uma modesta previsão) acabará nas mãos de ouro de Carlos Slim? E que dizer da compra pelo governo de 49% das ações do Banco Votorantim à beira da falência?”.

 

                        Conclui dizendo que Vai sobrar-me tempo para escrever um livro sobre o Brasil. Talvez não ache editor, pouco importa, vou escrevê-lo de qualquer forma, quem sabe venha a ser premiado pela publicação póstuma.”

 

                        Mino Carta é um tipo polêmico, que desperta amor ou ódio (ou ambos ao mesmo tempo), mas não há como deixar de concordar com a maior parte das suas críticas, nem de reconhecer a sua importância no quadro  de indigência intelectual e de fisiologismo da mídia brasileira (obviamente com as exceções honrosas de sempre).

 

                        Já faz algum tempo que, afora as aberrações, deixei de listar como santo ou demônio os homens, que são, parafraseando Pascal, o meio entre um e outro. Custa-me, porém, suportar os mornos, os insípidos, inodoros e amorfos, os que não são contra, nem a favor, muito pelo contrário… E isso Mino Carta, indiscutivelmente, nunca foi. Não sei se conseguirá manter o silêncio obsequioso a que se propôs (a mim me parece que se o governo Lula, no qual depositava esperanças, o decepcionou,  mais correto seria, em vez de emudecer, prosseguir no juízo crítico, apontando os equívocos e os eventuais acertos), mas com o que viveu, viu e sabe, com as informações off-the-record recolhidas, poderá escrever um livro interessantíssimo sobre o Brasil. Aliás, já escreveu um romance, O Castelo de Âmbar, que é um relato alegórico de meio século da vida de um país imaginário (?), coligido das memórias de um jornalista falecido.

 

                        O que me admira é que, com a sua larga experiência e cultura, Mino Carta ainda possa se sentir desiludido e frustrado com a trajetória do Brasil.

 

                        Desde o “Grito do Ipiranga” (que não houve, pelo menos como registrado pela história oficial), somos um país de faz de conta, gerido por uma contínua ação entre amigos (“Põe a coroa sobre tua cabeça antes que algum aventureiro lance mão dela.”).

 

                        Deodoro da Fonseca pretendia derrubar o gabinete parlamentar e acabou proclamando a República, como represália dos proprietários de terra ao Imperador de barbas brancas, pela libertação dos escravos. A Revolução de 1930, fruto da crise do café de 1929, redundou no Estado Novo do ditador Vargas, que, deposto, voltou ao poder consagrado pelo voto popular.

 

                        Depois do período da ditadura militar instalada em 1964, a abertura “lenta e gradual”  levou à eleição indireta de Tancredo Neves (e à posse de José Sarney), reintroduzindo ao palco os mesmos canastrões de dantes, entre os quais Ulisses Guimarães, cognominado de “Senhor Diretas”.

 

                        A Constituinte de 1988 (que acompanhei de perto, com entusiasmo e emoção juvenis, como integrante da comitiva paulista que defendeu a inclusão do Ministério Público no texto constitucional, com as garantias e prerrogativas de que desfruta atualmente) à última hora foi açambarcada pelo “centrão”, que desfigurou completamente o projeto que fora concebido para o sistema parlamentarista, criando o monstrengo de um Presidencialismo imperial, com medidas provisórias ao bel-prazer do Chefe do Executivo.

  

                        O que se seguiu e segue, incluindo a farsa Fernando Collor, é apenas um pouco mais do mesmo de sempre.

 

                        Como este blog pretende ser literário — e tendo em conta as raízes do genovês Mino Carta — não posso deixar de mencionar aqui o romance de Lampendusa, O Leopardo (Il Gattopardo), que retrata a Sicília de 1860, durante o processo de Unificação da Itália, a decadência da aristocracia e a ascensão de uma burguesia ávida de poder.

 

                        O livro originou um filme excepcional, com o mesmo título, dirigido por Luchino Visconti, que talvez tenha sido a mais bem sucedida transposição de uma obra literária para o cinema (há quem diga, e não sem razão, que o filme seja melhor ainda do que o livro).

 

                        O príncipe Dom Fabrizio Salina, protagonista do romance (encarnado magnificamente por Burt Lancaster no filme de Visconti), ao ser convidado a integrar o Senado, como representante da Sicília, pondera ao seu interlocutor, Chevalley, representante do novo Governo:

 

“Além do mais, como o senhor não pode ter deixado de perceber, sou privado de ilusões; e que diabo faria o Senado de mim, de um legislador inexperiente a que falta a faculdade de enganar-se a si próprio, requisito esse essencial a quem queira guiar os outros? Nós, os da nossa geração, devemos retirar-nos para um cantinho e ficar a observar as cambalhotas e as cabriolas dos jovens em torno deste cadafalso pomposo. Os senhores, agora, têm é precisamente necessidade de jovens, de jovens desembaraçados, de espírito mais aberto ao “como” do que ao “porquê” das coisas e que sejam hábeis em mascarar, em temperar, quero dizer, o seu preciso interesse particular com os vagos idealismos públicos.”

 

                        E, já no fim da conversa, diante do pensamento de Chevalley de que “Este estado de coisas não vai durar; a nossa administração nova, ativa, moderna, tudo transformará”Dom Fabrizio arremata:

 

“Tudo isso não devia durar; mas vai durar e sempre; o sempre humano, bem entendido, um século, dois séculos… Depois será diferente, mas pior. Nós fomos os Leopardos, os Leões; o que hão de substituir-nos, os chacais, as hienas; e todos nós, leopardos, chacais e ovelhas, continuaremos considerando-nos o sal da terra”.

Agradeceram muito um ao outro, saudaram-se, Chevalley trepou para a carruagem da mala-posta, içada sobre quadro rodas cor de vômito. O cavalo, todo fome e chagas, iniciou a longa viagem.

Mal era dia; o pouco de luz que conseguia filtrar-se das nuvens era outra vez detido pela sujidade imemorial das janelas. Chevalley estava só: por entre batidas e solavancos molhou de saliva a ponta do indicador, limpou um pedaço de vidro do tamanho de um olho. Olhou: diante de si, sob a luz de cinza, a paisagem oscilava, sem esperanças de redenção.

 

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Livraria Cultura

      

Livraria Saraiva

O primeiro homem

 

                        O post anterior, sobre meu avô paterno, foi escrito à noite num jorro repentino, sem premeditação alguma. Tratei de publicá-lo de imediato, para me impedir de retocá-lo e transfigurá-lo.

 

                        Já deitado e esperando pelo sono arredio, recordei-me do último livro de Albert Camus, inacabado, cujo manuscrito foi encontrado em sua valise, quando do acidente automobilístico que lhe causou a morte, em 1960.

 

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                        Camus é um dos meus escritores preferidos (O Estrangeiro e A Peste fazem parte da minha lista de livros inesquecíveis e imprescindíveis), e afora as qualidades do escritor e pensador, tenho uma profunda admiração pelo homem, pela sua vida de luta, por sua coragem moral e lucidez,  por seu anseio em entender as contradições humanas e o sentido da vida.

 

                        O livro interrompido (como a vida do autor) foi publicado sob o título de O primeiro homem, dado pelo próprio Camus a um caderno de notas e planos sobre o desenvolvimento que pretendia dar à obra (parece que a idéia inicial era escrever sobre a saga dos colonos na Argélia, terra natal de Camus).

 

                        Trata-se de uma jornada retroativa de Jacques Cormery (que é claramente o alter ego de Camus), aos 40 anos de idade, desencadeada a partir de sua visita ao túmulo do pai:

 

“Cormery aproximou-se da lápide e olhou-a distraído. Sim, era mesmo seu nome. Ergueu os olhos. No céu mais pálido pequenas nuvens brancas e cinzentas passavam lentamente e caía uma luminosidade ora leve ora mais sombria. À sua volta, no vasto campo de mortos, reinava o silêncio. Somente um rumor surdo vinha da cidade por cima dos muros altos. De vez em quando, uma silhueta negra passava entre os túmulos distantes. Jacques Cormery, o olhar atento à lenta navegação das nuvens no céu, tentatava apreeender, por trás do perfume das flores molhadas, o cheiro salgado que vinha do mar longíquo e imóvel, quando o tinir de um balde contra o mármore de um dos túmulos tirou-o do seu devaneio. Foi nesse momento que leu no túmulo a data de nascimento de seu pai, que só então descobriu ignorar. Depois, leu as duas datas, 1885-1914, e fez um cálculo maquinal: 29 anos. Súbito, ocorreu-lhe uma idéia que chegou a lhe agitar o corpo. Ele tinha quarenta anos. O homem enterrado sob aquela lápide, e que tinha sido seu pai, era mais moço que ele.”

(…)

“Então, com o sangue fervendo, ela queria fugir, fugir para um país em que ninguém envelhecesse ou morresse, em que a beleza fosse imortal, a vida sempre fosse selvagem e maravilhosa, e que não existia; na volta, ela chorava em seus braços, e ele a amava desesperadamente.

E ele também, talvez mais do que ela, já que tinha nascido numa terra sem antepassados e sem memória, em que o aniquilamento daqueles que o tinham precedido tinha sido mais radical ainda e onde a velhice não encontrava nenhum dos recursos da melancolia que encontra nos países civilizados [uma palavra ilegível], ele, com uma lâmina solitária e sempre vibrante, destinada a ser quebrada de um só golpe e para sempre, pura paixão confrontada com uma morte total, sentia hoje a vida, a juventude, as pessoas lhe escaparem, sem poder salvá-las em nada, e abandonado apenas à esperança cega, que essa força obscura que durante tantos anos o tinha sustentado acima dos dias, o tinha alimentado sem medida, sempre a mesma nas duras circunstâncias, iria fornecer-lhe também, com a mesma generosidade incansável que mostrara ao lhe dar suas razões para viver, as razões para envelhecer e morrer sem revolta.”

 

 

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O retrato na gaveta

 

                        Toda vez que abro a gaveta, o olhar dele me procura (ou serei eu que o procura?). Olhar circunspecto, semblante fechado, como convém a um homem que se preza, de pouco riso e muito siso. Dizem que jamais gargalhou, o máximo que concedia era um breve sorriso de ironia ou aprovação.

 

                        Contam, também, que não se conformava com a brevidade da vida:

 

                        — Como pode um homem viver menos do que uma tartaruga ou um elefante?

 

                        Por isso detestava ser fotografado e registrar a implacável decadência na cruel sucessão de imagens, o menino, o moço, o homem, o velho. Na última fotografia que se permitiu (para integrar a galeria de uma entidade de que foi presidente) estava entre os 45 e 50 anos. Creio ser essa a fotografia que conservo na gaveta. Já sou mais velho do que ele no retrato.

 

                        Sei, de ouvir dizer, da sua vida agitada, difícil e aventureira, de tropeiro a dono de fazenda. Desbravou terras, pegou maleita e pneumonia, criou gado, plantou e negociou café, enricou, tornou-se chefe político, coronel e rábula do Tribunal do Júri.

 

                        Foi vítima de uma emboscada. Atingido na perna, arrastou-se, protegeu-se, revidou os tiros e pôs os jagunços para correr. Depois de recuperado, voltou à cidade e dela expulsou os mandantes do crime (consta que até hoje não há ninguém da família por aquelas bandas).

 

                        Ficou com a perna ferida um pouco mais curta do que a outra, mas graças a sapatos especiais que mandava fazer sob medida, e um modo peculiar de caminhar, era quase impossível perceber que coxeava.

 

                        Quando nem se pensava em ecologia, reserva florestal, biodiversidade, manteve intacta uma vasta mata que existia na sua última e mais preciosa fazenda. Vendida esta, os novos donos logo derrubaram as árvores e venderam a madeira. O valor apurado foi superior ao preço que pagaram pelas terras.

 

                        Perdeu muito dinheiro com a crise do café, mas honrou todos os compromissos. Sobrou-lhe o suficiente para se manter dignamente, encaminhar os filhos, ver os netos crescendo.

 

                        Convivi pouco com ele, já idoso e apaziguado, quando passava alguns dias com meus pais na sua casa. Quase sempre a uma distância reverencial, via-o sair e voltar sempre à mesma hora, impecável, no seu terno de linho 120. Mas muitas vezes surpreendi pousado em mim (seu primeiro neto varão) o mesmo olhar da fotografia da gaveta.

 

                        De lembrança própria, guardo alguns gestos contidos, mas plenos de significado e carinho. Despertado pelo meu choro manhoso na madrugada, bateu à porta do quarto para saber o que se passava.

 

                        — Quer tocar piano a esta hora…”, explicou-lhe, aflita, minha mãe.

 

                        “Pois deixa o menino tocar! E foi abrir a sala sempre fechada para que o birrento martelasse o piano noite à dentro, até se cansar e adormecer.

 

                        Certo dia, encontrei na rua, admirado, um enorme prego (acho que se tratava de um dormente de estrada de ferro), que apanhei e levei de presente a ele, todo entusiasmado. Aquele prego imenso (ou dormente) permaneceu intocável na sua escrivaninha, enquanto viveu.

 

                        Já um pouco maior (com sete ou oito anos), ouvia pelo velho rádio de válvulas, que pertencia a ele e ninguém ousava mexer, a transmissão de um jogo do glorioso Santos F. C., de Pelé e Cia. Ele se aproximou, pois já era quase a hora do “Grande Jornal Falado Tupi”, que acompanhava religiosamente. Quis me levantar e sair, mas ele não permitiu. Sentou-se numa cadeira ao lado e acompanhou comigo o final da partida. Vendo-me angustiado, porque o outro time empatara o jogo, acalmou-me, dizendo que o Santos era melhor e ainda iria vencer. Dito e feito. Em poucos minutos, dois gols de Pelé e 3X1 para o Santos. Com um esboço de sorriso, levantou-se e sentenciou:

 

                         Eu não falei?

 

                        O que mais me terá falado ele? Ou pretendido me falar?

 

                        Procuro parecenças na fotografia amarelada. A fronte alta? O nariz? Talvez a boca ou o queixo. Não sei. Quando sentado, tenho mania de balançar uma perna e outra, de modo intermitente, e isso me contam que ele fazia, porque era bom para a circulação. Uma das minhas filhas, bisneta dele (que nasceu muito tempo depois da sua morte), desde pequenina bate o pé com força no chão quando contrariada. Isso me lembra que ele fazia, com frequencia.

 

                        Mas, o que importa isso? É só isso o que nos fica das pessoas? O que saberão de mim um dia, meus netos e bisnetos?

 

                        Talvez não sejamos capazes de conhecer a ninguém, nem a nós mesmos, e só nos restem esses fiapos de lembrança ou de fantasia para construirmos uma história e fazermos parte dela.

A "arte" do DJ

 

                        O jornal de hoje (Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, pág. E6, matéria assinada por Thiago Ney) noticia que se acha em trâmite no Senado da República projeto de lei de autoria do senador Romeu Tuma (aquele mesmo que alavancou sua carreira policial ao longo do período de chumbo da ditadura militar, foi diretor do famigerado DOPS e hoje posa de liberal e defensor da democracia), que visa regulamentar a profissão de “DJ”.

 

                        Da inefável propositura, contaminada com o caruncho do velho e cartorial corporativismo luso-brasileiro, destacam-se as seguintes pérolas:

         condiciona o exercício da atividade de “DJ” a um registro prévio na Delegacia Regional do Trabalho;

         determina que o profissional apresente diploma de curso profissionalizante reconhecido pelo MEC ou pelo sindicato da categoria, além de um atestado de capacitação profissional fornecido pelo sindicato;

         prevê a participação de 70% de “DJs” nacionais quando um evento escalar um “DJ” estrangeiro.

 

                        O projeto tem despertado controvérsia entre os “profissionais” do setor, e a vereadora paulistana, maluquinha beleza, Soninha Francine, não perdeu a oportunidade de pontificar a respeito: “No caso dos DJs, cuja atuação é essencialmente prática, com formação nas ruas, chega a ser um tanto esdrúxula a exigência de ‘diploma’. O legislador, a pretexto de regulamentar, soterra a graça e a beleza de uma atividade artística (?) que nasce da transgressão e cresce por meio da prática um tanto anárquica.”

 

                        Calma aí, devagar com o andor, meu preclaro senador e diligente xerife, minha nobre vereadora e arguta comentarista esportiva.

 

                        Que “profissão” ou “atividade artística” é essa? Desde quando manipular vitrolas ou pickups se trata de arte?

 

                        Não quero enveredar aqui pela interminável discussão acerca do que pode ou deve ser considerado como arte, até porque muitos críticos atuais afirmam que arte é tudo aquilo que se disser que é arte (donde ser forçoso concluir que não existe razão alguma para a existência dos críticos de arte, especialmente daqueles que sustentam tal idiotice).

 

                        Mas, por favor, me expliquem os mais sábios: a destreza em colocar e tirar discos da vitrola, a tarefa de selecionar, ordenar e embaralhar músicas alheias — o que chamam de “mixar” ou “samplear” —, a ligeireza para acender e apagar luzes, projetar imagens em telões, constituem “atividade artística”? Quer dizer então que naquelas “brincas” de antanho, em que os amigos se revezavam no comando da vitrola, colocando as músicas prediletas, enquanto os casaisinhos rodopiavam pelo salão improvisado, trocando juras à meia voz, estava a gênese de uma nova arte, pós-moderna, iluminada por essa classe de prima-donas conhecidas como “DJs”?

 

                        Na minha proverbial ignorância, atividade artística é a dos compositores, músicos, instrumentistas e intérpretes dos quais o “DJ” não passa de parasita ou sanguessuga. Além de se locupletar à custa dos compositores, músicos, instrumentistas e intérpretes, essa praga daninha (pelas razões pragmáticas e econômicas que comandam a lógica capitalista) vem fechando as portas das casas noturnas, das festas, dos bailes, dos eventos em geral para aqueles verdadeiros artistas, que ficam com as migalhas dos direitos autorais, ou nem isso. Se fosse, pois, para editar uma lei de reserva de mercado, deveria ser garantida a participação de 70% de músicos, instrumentistas e intérpretes num evento em que fosse escalado um DJ!

 

                        O projeto do senador Tuma, o comentário da vereadora Soninha e os DJs se merecem e, sinceramente, espero que eles dancem.