Para a Sonia (com pedido de perdão pelas caneladas)
“Eu gostaria muito de escrever assim toda a história da minha vida — como se minha vida tivesse acontecido a uma outra pessoa, como se fosse um sonho em que eu sentisse a minha voz sumir e a minha vontade sucumbir ao encantamento. Por mais que a considere linda, acho a linguagem da epopéia inconvincente, pois não consigo aceitar que os mitos que contamos acerca do começo de nossas vidas nos preparem para as segundas vidas mais autênticas e brilhantes a que precisamos dar início assim que despertamos. Porque — pelo menos para pessoas como eu — essa segunda vida é nada menos do que o livro em suas mãos. Por isso, preste muita atenção, caro leitor. Vou lhe falar com franqueza, e em troca quero pedir a sua compaixão” (Istambul: memória e cidade, Orhan Pamuk).
Istambul sempre me atraiu.
De início pela simples sonoridade da palavra, depois pelo que fui sabendo a respeito dela nas aulas de História (antiga Constantinopla, sede do Império Bizantino, cuja queda marca o fim da Idade Média etc etc) e, sobretudo, ao ler novelas policiais e assistir a filmes idem, em que a cidade era palco de mil aventuras, nas quais se envolviam espiões, assassinos, detetives, mulheres enigmáticas e fatais. Personagens, ruas, becos, casas e edifícios, o encontro do Oriente com o Ocidente, o Bósforo, com suas águas profundas e negras, singradas por navios misteriosos e suspeitos.
Tão logo me deparei com o livro Istambul: memória e cidade (e sua melancólica e linda capa) do escritor Orhan Pamuk, Nobel de literatura em 2006, que nasceu e passou a maior parte de sua vida lá, tratei de comprá-lo e nele mergulhei. Aliás, Orhan Pamuk se exilou nos EUA em razão das ameaças que passou a sofrer depois que teve a coragem de falar sobre o episódio maldito e proibido para os turcos, que é o massacre de armênios.
Costumo ler vários livros simultaneamente, saltando de um para outro, sem me confundir ou perder a atmosfera de cada um (faço o mesmo com os canais da TV, e minha mulher briga comigo, dizendo que isso é coisa de maluco). Por isso, embora já tenha terminado a leitura há algum tempo, só agora me ocorreu fazer este registro e recomendar o livro.
Tenho quase a mesma idade de Orhan Pamuk, e suas reminiscências afetivas sobre o Edifício Pamuk, cujos andares abrigava toda a sua família (rica, mas em processo de decadência), suas visitas ao apartamento da avó, com seus móveis antigos, seus tapetes, suas salas fechadas, as fotografias espalhadas por todos os cantos, os vasos e enfeites intocáveis, a solidão e a imaginação do menino Orhan, tentando compreender o mundo que o cercava, me provocaram um retorno proustiano à casa dos meus avós maternos, onde passei parte da primeira infância.
Istambul, Turquia, e Guaxupé, sul de Minas, Brasil. Lugares tão distantes, meninos tão parecidos, circunstâncias e sentimentos tão próximos!
Essa busca do tempo perdido reavivou-se hoje com outra madeleine, que foi uma troca de e-mails com uma sobrinha da minha avó materna, a quem sempre considerei como prima em primeiro grau, já que também somos quase da mesma idade. Apesar disso, convivemos pouco, pois sempre moramos em cidades diferentes e só nos encontrávamos esporadicamente.
Retomamos o contato pela internet e ela, tendo visitado este blog, deixou nele um comentário carinhoso e me enviou e-mail cheio de recordações, entre as quais uma que me faz corar de vergonha (e de que juro não me lembrar): diz ela que vivia com as canelas roxas pelos pontapés que eu lhe dava, quando éramos pequenos.
Logo eu, que me achava um gentil infante!
Muito dessa impressão (que parece agora ser falsa) de menino bem comportado e circunspecto, que também me unia ao pequeno Orhan de Istambul, decorre de uma mania da minha avó materna, Dona Gessy, que adorava me empetecar com uns terninhos de linho engomado (pobre de mim), com monogramas por ela mesma bordados com todo o capricho no bolso, e me levar consigo nas visitas às amigas.
As madames ficavam a conversar, tomar chá, comer bolinhos e jogar baralho por longas horas, enquanto eu ─ para orgulho da vovó ─ mantinha um comportamento impecável, de um verdadeiro rapazinho e cavalheiro, sem tocar em nada que pudesse ser quebrado. Mergulhava então em mim mesmo, e minha imaginação campeava livre, inventando coisas e brincadeiras íntimas, para passar o tempo e fugir da chatice.
De vez em quando, ou ao nos despedirmos para ir embora, algumas das madames me derramavam elogios, me apertavam as bochechas ou me enchiam de beijos molhados e piniquentos, que me deixavam a cara lambuzada e marcada de batom.
Talvez depois descontasse tudo isso nas canelas da pobre prima.