Posts from fevereiro, 2009

O retrato na gaveta

 

                        Toda vez que abro a gaveta, o olhar dele me procura (ou serei eu que o procura?). Olhar circunspecto, semblante fechado, como convém a um homem que se preza, de pouco riso e muito siso. Dizem que jamais gargalhou, o máximo que concedia era um breve sorriso de ironia ou aprovação.

 

                        Contam, também, que não se conformava com a brevidade da vida:

 

                        — Como pode um homem viver menos do que uma tartaruga ou um elefante?

 

                        Por isso detestava ser fotografado e registrar a implacável decadência na cruel sucessão de imagens, o menino, o moço, o homem, o velho. Na última fotografia que se permitiu (para integrar a galeria de uma entidade de que foi presidente) estava entre os 45 e 50 anos. Creio ser essa a fotografia que conservo na gaveta. Já sou mais velho do que ele no retrato.

 

                        Sei, de ouvir dizer, da sua vida agitada, difícil e aventureira, de tropeiro a dono de fazenda. Desbravou terras, pegou maleita e pneumonia, criou gado, plantou e negociou café, enricou, tornou-se chefe político, coronel e rábula do Tribunal do Júri.

 

                        Foi vítima de uma emboscada. Atingido na perna, arrastou-se, protegeu-se, revidou os tiros e pôs os jagunços para correr. Depois de recuperado, voltou à cidade e dela expulsou os mandantes do crime (consta que até hoje não há ninguém da família por aquelas bandas).

 

                        Ficou com a perna ferida um pouco mais curta do que a outra, mas graças a sapatos especiais que mandava fazer sob medida, e um modo peculiar de caminhar, era quase impossível perceber que coxeava.

 

                        Quando nem se pensava em ecologia, reserva florestal, biodiversidade, manteve intacta uma vasta mata que existia na sua última e mais preciosa fazenda. Vendida esta, os novos donos logo derrubaram as árvores e venderam a madeira. O valor apurado foi superior ao preço que pagaram pelas terras.

 

                        Perdeu muito dinheiro com a crise do café, mas honrou todos os compromissos. Sobrou-lhe o suficiente para se manter dignamente, encaminhar os filhos, ver os netos crescendo.

 

                        Convivi pouco com ele, já idoso e apaziguado, quando passava alguns dias com meus pais na sua casa. Quase sempre a uma distância reverencial, via-o sair e voltar sempre à mesma hora, impecável, no seu terno de linho 120. Mas muitas vezes surpreendi pousado em mim (seu primeiro neto varão) o mesmo olhar da fotografia da gaveta.

 

                        De lembrança própria, guardo alguns gestos contidos, mas plenos de significado e carinho. Despertado pelo meu choro manhoso na madrugada, bateu à porta do quarto para saber o que se passava.

 

                        — Quer tocar piano a esta hora…”, explicou-lhe, aflita, minha mãe.

 

                        “Pois deixa o menino tocar! E foi abrir a sala sempre fechada para que o birrento martelasse o piano noite à dentro, até se cansar e adormecer.

 

                        Certo dia, encontrei na rua, admirado, um enorme prego (acho que se tratava de um dormente de estrada de ferro), que apanhei e levei de presente a ele, todo entusiasmado. Aquele prego imenso (ou dormente) permaneceu intocável na sua escrivaninha, enquanto viveu.

 

                        Já um pouco maior (com sete ou oito anos), ouvia pelo velho rádio de válvulas, que pertencia a ele e ninguém ousava mexer, a transmissão de um jogo do glorioso Santos F. C., de Pelé e Cia. Ele se aproximou, pois já era quase a hora do “Grande Jornal Falado Tupi”, que acompanhava religiosamente. Quis me levantar e sair, mas ele não permitiu. Sentou-se numa cadeira ao lado e acompanhou comigo o final da partida. Vendo-me angustiado, porque o outro time empatara o jogo, acalmou-me, dizendo que o Santos era melhor e ainda iria vencer. Dito e feito. Em poucos minutos, dois gols de Pelé e 3X1 para o Santos. Com um esboço de sorriso, levantou-se e sentenciou:

 

                         Eu não falei?

 

                        O que mais me terá falado ele? Ou pretendido me falar?

 

                        Procuro parecenças na fotografia amarelada. A fronte alta? O nariz? Talvez a boca ou o queixo. Não sei. Quando sentado, tenho mania de balançar uma perna e outra, de modo intermitente, e isso me contam que ele fazia, porque era bom para a circulação. Uma das minhas filhas, bisneta dele (que nasceu muito tempo depois da sua morte), desde pequenina bate o pé com força no chão quando contrariada. Isso me lembra que ele fazia, com frequencia.

 

                        Mas, o que importa isso? É só isso o que nos fica das pessoas? O que saberão de mim um dia, meus netos e bisnetos?

 

                        Talvez não sejamos capazes de conhecer a ninguém, nem a nós mesmos, e só nos restem esses fiapos de lembrança ou de fantasia para construirmos uma história e fazermos parte dela.