O retrato na gaveta

 

                        Toda vez que abro a gaveta, o olhar dele me procura (ou serei eu que o procura?). Olhar circunspecto, semblante fechado, como convém a um homem que se preza, de pouco riso e muito siso. Dizem que jamais gargalhou, o máximo que concedia era um breve sorriso de ironia ou aprovação.

 

                        Contam, também, que não se conformava com a brevidade da vida:

 

                        — Como pode um homem viver menos do que uma tartaruga ou um elefante?

 

                        Por isso detestava ser fotografado e registrar a implacável decadência na cruel sucessão de imagens, o menino, o moço, o homem, o velho. Na última fotografia que se permitiu (para integrar a galeria de uma entidade de que foi presidente) estava entre os 45 e 50 anos. Creio ser essa a fotografia que conservo na gaveta. Já sou mais velho do que ele no retrato.

 

                        Sei, de ouvir dizer, da sua vida agitada, difícil e aventureira, de tropeiro a dono de fazenda. Desbravou terras, pegou maleita e pneumonia, criou gado, plantou e negociou café, enricou, tornou-se chefe político, coronel e rábula do Tribunal do Júri.

 

                        Foi vítima de uma emboscada. Atingido na perna, arrastou-se, protegeu-se, revidou os tiros e pôs os jagunços para correr. Depois de recuperado, voltou à cidade e dela expulsou os mandantes do crime (consta que até hoje não há ninguém da família por aquelas bandas).

 

                        Ficou com a perna ferida um pouco mais curta do que a outra, mas graças a sapatos especiais que mandava fazer sob medida, e um modo peculiar de caminhar, era quase impossível perceber que coxeava.

 

                        Quando nem se pensava em ecologia, reserva florestal, biodiversidade, manteve intacta uma vasta mata que existia na sua última e mais preciosa fazenda. Vendida esta, os novos donos logo derrubaram as árvores e venderam a madeira. O valor apurado foi superior ao preço que pagaram pelas terras.

 

                        Perdeu muito dinheiro com a crise do café, mas honrou todos os compromissos. Sobrou-lhe o suficiente para se manter dignamente, encaminhar os filhos, ver os netos crescendo.

 

                        Convivi pouco com ele, já idoso e apaziguado, quando passava alguns dias com meus pais na sua casa. Quase sempre a uma distância reverencial, via-o sair e voltar sempre à mesma hora, impecável, no seu terno de linho 120. Mas muitas vezes surpreendi pousado em mim (seu primeiro neto varão) o mesmo olhar da fotografia da gaveta.

 

                        De lembrança própria, guardo alguns gestos contidos, mas plenos de significado e carinho. Despertado pelo meu choro manhoso na madrugada, bateu à porta do quarto para saber o que se passava.

 

                        — Quer tocar piano a esta hora…”, explicou-lhe, aflita, minha mãe.

 

                        “Pois deixa o menino tocar! E foi abrir a sala sempre fechada para que o birrento martelasse o piano noite à dentro, até se cansar e adormecer.

 

                        Certo dia, encontrei na rua, admirado, um enorme prego (acho que se tratava de um dormente de estrada de ferro), que apanhei e levei de presente a ele, todo entusiasmado. Aquele prego imenso (ou dormente) permaneceu intocável na sua escrivaninha, enquanto viveu.

 

                        Já um pouco maior (com sete ou oito anos), ouvia pelo velho rádio de válvulas, que pertencia a ele e ninguém ousava mexer, a transmissão de um jogo do glorioso Santos F. C., de Pelé e Cia. Ele se aproximou, pois já era quase a hora do “Grande Jornal Falado Tupi”, que acompanhava religiosamente. Quis me levantar e sair, mas ele não permitiu. Sentou-se numa cadeira ao lado e acompanhou comigo o final da partida. Vendo-me angustiado, porque o outro time empatara o jogo, acalmou-me, dizendo que o Santos era melhor e ainda iria vencer. Dito e feito. Em poucos minutos, dois gols de Pelé e 3X1 para o Santos. Com um esboço de sorriso, levantou-se e sentenciou:

 

                         Eu não falei?

 

                        O que mais me terá falado ele? Ou pretendido me falar?

 

                        Procuro parecenças na fotografia amarelada. A fronte alta? O nariz? Talvez a boca ou o queixo. Não sei. Quando sentado, tenho mania de balançar uma perna e outra, de modo intermitente, e isso me contam que ele fazia, porque era bom para a circulação. Uma das minhas filhas, bisneta dele (que nasceu muito tempo depois da sua morte), desde pequenina bate o pé com força no chão quando contrariada. Isso me lembra que ele fazia, com frequencia.

 

                        Mas, o que importa isso? É só isso o que nos fica das pessoas? O que saberão de mim um dia, meus netos e bisnetos?

 

                        Talvez não sejamos capazes de conhecer a ninguém, nem a nós mesmos, e só nos restem esses fiapos de lembrança ou de fantasia para construirmos uma história e fazermos parte dela.

7 comentários

  1. bellgama
    06/02/09 at 7:10

    Lindo de morrer!
    Saudade de quem não conheci.
    Assim como a vovó, no seu texto, o vovô vive.
    Ti doro!
    beijos,
    Bell

  2. rockmann
    06/02/09 at 10:13

    Foi atingido por quantos tiros? Quantas pessoas na emboscada? Foi no meio do mato? Estrada? Conseguiu acertar alguns dos jagunços? Estava sozinho? Os mandantes queriam o quê?

    • Antonio Carlos
      06/02/09 at 16:55

      Meu caro Rockmann,

      É sempre uma satisfação quando você se interesse pelos meus toscos escritos.
      O seu instinto detetivesco (característico dos escorpianos) quer saber mais da emboscada sofrida pelo meu avô.
      Pois aí vão alguns adendos a respeito, que colhi aqui e acolá, entre os familiares e amigos da família, quando já era adulto.
      A emboscada foi em pleno centro da cidade, na rua principal. Dizem que pouco antes, pressentindo o que iria ocorrer, os lojistas cerraram as portas, como no velho oeste. Meu avô vinha descendo a rua quando foi alvejado por dois ou três jagunços, que o esperavam escondidos atrás de algumas árvores. Levou um balaço de carabina na coxa, que lhe arrebentou o fêmur. Conseguiu se arrastar até uma sarjeta mais alta, que lhe dava alguma proteção e revidou com seu trabuco. Ao perceberem que não o haviam matado, os jagunços trataram de fugir a cavalo. Um deles deve ter sido atingido, pois foram encontrados rastros de sangue. Logo, depois, o dono de uma farmácia próxima, entreabriu as portas e arrastou meu avô para dentro. A sua recuperação foi longa e sofrida. Foi se tratar em São Paulo e Campinas. Quando a fratura se consolidou pela primeira vez, a perna tinha ficado muito mais curta do que a outra e os médicos resolveram quebrá-la de novo, para minorar o defeito. Sem aviso prévio, três ou quatro enfermeiros parrudos agarraram a perna do meu avô, enquanto ele, sentado, lia o jornal, e tornaram a quebrá-la na bruta. Contam que de dor ele engoliu o charutinho que estava fumando… Quando finalmente voltou à cidade, sabendo quem eram os mandantes (inimigos políticos), mandou avisá-los de que tinham 48 horas para deixar a cidade. Dizem que os trens da velha Mogiana partiram lotados naqueles dois dias.
      Parece ficção, mas a história é verídica (minha última e mais confiável fonte, que é meu pai, embora fosse pequeno à época dos fatos, confirma tudo isso). Satisfeito? Um grande abraço.

  3. rockmann
    07/02/09 at 9:21

    Grande história!

  4. Rosangela
    13/04/09 at 22:07

    Deliciei-me com o post sobre o vovô. As lembranças
    que tenho são doces e sublimes tais como o doce de
    leite cortado em quadradinhos. Talvez pelo convívio próximo pude
    vivenciar o lado carinhoso e ameno do Coronel. E não é que além
    da France só você conseguiu dedilhar o piano alemão?
    Restou-nos rodopiar na banqueta e observar o elefante de bronze.
    Agradável surpresa seu blog. Sucesso querido primo. Saudade.

    • 13/04/09 at 22:51

      Querida Rosângela,

      Que bela surpresa você ter acessado meu blog. Há algum tempo estava para lhe passar o endereço, mas hesitava por não ter certeza de você se interessar. Agora que sei, espero continuar contando com sua presença e comentários.
      Um beijo saudoso do primo gêmeo.

  5. Sonia Kahawach
    14/04/09 at 16:44

    Querido, sinceramente foi a primeira vez que ouvi a história acima que contou de seu avô com os jagunços políticos da época.
    Eu sei de histórias de meu pai com jagunços em São José do Rio Preto, nos áureos tempos do café/ouro (década de 20), que quando conto pras minhas filhas e netos, ficam todos me olhando com aquele olhar de descrédito próprio de quem não viveu nem saboreou as histórias “antigas”. É engraçado como os mais velhos viveram fatos que nos são inusitados. V. fala de seu avô e eu de meu pai (quando nasci ele tinha 60 anos, imagine!). E foi valente o velhinho, pois quando se foi eu já tinha minhas duas filhas.
    Não sei se nossa geração terá histórias tão cheias de aventuras pra deixar na lembrança dos filhos e netos.
    Mas, com certeza, deixaremos nossa marca impressa em gestos, formas e palavras. E seria muito bom poder vivenciar nossas marcas deixadas na prole que aí está. Concordo com seu avô: como pode o humano viver menos que uma tartaruga ou elefante?

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