O post anterior, sobre meu avô paterno, foi escrito à noite num jorro repentino, sem premeditação alguma. Tratei de publicá-lo de imediato, para me impedir de retocá-lo e transfigurá-lo.
Já deitado e esperando pelo sono arredio, recordei-me do último livro de Albert Camus, inacabado, cujo manuscrito foi encontrado em sua valise, quando do acidente automobilístico que lhe causou a morte, em 1960.
Camus é um dos meus escritores preferidos (O Estrangeiro e A Peste fazem parte da minha lista de livros inesquecíveis e imprescindíveis), e afora as qualidades do escritor e pensador, tenho uma profunda admiração pelo homem, pela sua vida de luta, por sua coragem moral e lucidez, por seu anseio em entender as contradições humanas e o sentido da vida.
O livro interrompido (como a vida do autor) foi publicado sob o título de O primeiro homem, dado pelo próprio Camus a um caderno de notas e planos sobre o desenvolvimento que pretendia dar à obra (parece que a idéia inicial era escrever sobre a saga dos colonos na Argélia, terra natal de Camus).
Trata-se de uma jornada retroativa de Jacques Cormery (que é claramente o alter ego de Camus), aos 40 anos de idade, desencadeada a partir de sua visita ao túmulo do pai:
“Cormery aproximou-se da lápide e olhou-a distraído. Sim, era mesmo seu nome. Ergueu os olhos. No céu mais pálido pequenas nuvens brancas e cinzentas passavam lentamente e caía uma luminosidade ora leve ora mais sombria. À sua volta, no vasto campo de mortos, reinava o silêncio. Somente um rumor surdo vinha da cidade por cima dos muros altos. De vez em quando, uma silhueta negra passava entre os túmulos distantes. Jacques Cormery, o olhar atento à lenta navegação das nuvens no céu, tentatava apreeender, por trás do perfume das flores molhadas, o cheiro salgado que vinha do mar longíquo e imóvel, quando o tinir de um balde contra o mármore de um dos túmulos tirou-o do seu devaneio. Foi nesse momento que leu no túmulo a data de nascimento de seu pai, que só então descobriu ignorar. Depois, leu as duas datas, 1885-1914, e fez um cálculo maquinal: 29 anos. Súbito, ocorreu-lhe uma idéia que chegou a lhe agitar o corpo. Ele tinha quarenta anos. O homem enterrado sob aquela lápide, e que tinha sido seu pai, era mais moço que ele.”
(…)
“Então, com o sangue fervendo, ela queria fugir, fugir para um país em que ninguém envelhecesse ou morresse, em que a beleza fosse imortal, a vida sempre fosse selvagem e maravilhosa, e que não existia; na volta, ela chorava em seus braços, e ele a amava desesperadamente.
E ele também, talvez mais do que ela, já que tinha nascido numa terra sem antepassados e sem memória, em que o aniquilamento daqueles que o tinham precedido tinha sido mais radical ainda e onde a velhice não encontrava nenhum dos recursos da melancolia que encontra nos países civilizados [uma palavra ilegível], ele, com uma lâmina solitária e sempre vibrante, destinada a ser quebrada de um só golpe e para sempre, pura paixão confrontada com uma morte total, sentia hoje a vida, a juventude, as pessoas lhe escaparem, sem poder salvá-las em nada, e abandonado apenas à esperança cega, que essa força obscura que durante tantos anos o tinha sustentado acima dos dias, o tinha alimentado sem medida, sempre a mesma nas duras circunstâncias, iria fornecer-lhe também, com a mesma generosidade incansável que mostrara ao lhe dar suas razões para viver, as razões para envelhecer e morrer sem revolta.”