Posts from fevereiro, 2009

Mino Carta e os gatos pardos

 

                        O jornalista Mino Carta despediu-se do seu blog e anunciou ainda que, por ora, se cala na revista Carta Capital.

 

                        Explica que, Quarenta e cinco anos depois, vivo uma quadra de extremo desalento, em contraposição às grandes esperanças alimentadas durante a ditadura. Logo frustradas pela rejeição da emenda das eleições diretas após uma campanha a favor que honra o povo brasileiro. Fez-se, pelo contrário, a conciliação das elites, nos exatos moldes previamente desenhados pelo general Golbery do Couto e Silva. A aposta do Merlin do Planalto estava certa e vale até hoje.”

 

                        No rol das suas decepções, acrescenta o balanço pouco animador de seis anos de Lula no poder, a recente eleição de José Sarney para a presidência do Senado da República e de Michel Temer para a da Câmara Federal, reconstituindo-se “(…) o “centrão” velho de guerra, uma das obras-primas da conciliação tradicional.”. E vocifera: “Enquanto isso, o Brasil ainda divide com Serra Leoa e Nigéria a primazia mundial da má distribuição de renda, exporta commodities, 55 mil brasileiros morrem assassinados todo ano, 5% ganham de 800 reais pra cima. E 2009 promete ser bem pior que pretendiam os economistas do governo. Houve, e há, justificadíssima grita quanto às privatizações processadas no governo FHC. E que dizer do BNDES que empresta aos bilionários para armar a BrOi, a qual (é uma modesta previsão) acabará nas mãos de ouro de Carlos Slim? E que dizer da compra pelo governo de 49% das ações do Banco Votorantim à beira da falência?”.

 

                        Conclui dizendo que Vai sobrar-me tempo para escrever um livro sobre o Brasil. Talvez não ache editor, pouco importa, vou escrevê-lo de qualquer forma, quem sabe venha a ser premiado pela publicação póstuma.”

 

                        Mino Carta é um tipo polêmico, que desperta amor ou ódio (ou ambos ao mesmo tempo), mas não há como deixar de concordar com a maior parte das suas críticas, nem de reconhecer a sua importância no quadro  de indigência intelectual e de fisiologismo da mídia brasileira (obviamente com as exceções honrosas de sempre).

 

                        Já faz algum tempo que, afora as aberrações, deixei de listar como santo ou demônio os homens, que são, parafraseando Pascal, o meio entre um e outro. Custa-me, porém, suportar os mornos, os insípidos, inodoros e amorfos, os que não são contra, nem a favor, muito pelo contrário… E isso Mino Carta, indiscutivelmente, nunca foi. Não sei se conseguirá manter o silêncio obsequioso a que se propôs (a mim me parece que se o governo Lula, no qual depositava esperanças, o decepcionou,  mais correto seria, em vez de emudecer, prosseguir no juízo crítico, apontando os equívocos e os eventuais acertos), mas com o que viveu, viu e sabe, com as informações off-the-record recolhidas, poderá escrever um livro interessantíssimo sobre o Brasil. Aliás, já escreveu um romance, O Castelo de Âmbar, que é um relato alegórico de meio século da vida de um país imaginário (?), coligido das memórias de um jornalista falecido.

 

                        O que me admira é que, com a sua larga experiência e cultura, Mino Carta ainda possa se sentir desiludido e frustrado com a trajetória do Brasil.

 

                        Desde o “Grito do Ipiranga” (que não houve, pelo menos como registrado pela história oficial), somos um país de faz de conta, gerido por uma contínua ação entre amigos (“Põe a coroa sobre tua cabeça antes que algum aventureiro lance mão dela.”).

 

                        Deodoro da Fonseca pretendia derrubar o gabinete parlamentar e acabou proclamando a República, como represália dos proprietários de terra ao Imperador de barbas brancas, pela libertação dos escravos. A Revolução de 1930, fruto da crise do café de 1929, redundou no Estado Novo do ditador Vargas, que, deposto, voltou ao poder consagrado pelo voto popular.

 

                        Depois do período da ditadura militar instalada em 1964, a abertura “lenta e gradual”  levou à eleição indireta de Tancredo Neves (e à posse de José Sarney), reintroduzindo ao palco os mesmos canastrões de dantes, entre os quais Ulisses Guimarães, cognominado de “Senhor Diretas”.

 

                        A Constituinte de 1988 (que acompanhei de perto, com entusiasmo e emoção juvenis, como integrante da comitiva paulista que defendeu a inclusão do Ministério Público no texto constitucional, com as garantias e prerrogativas de que desfruta atualmente) à última hora foi açambarcada pelo “centrão”, que desfigurou completamente o projeto que fora concebido para o sistema parlamentarista, criando o monstrengo de um Presidencialismo imperial, com medidas provisórias ao bel-prazer do Chefe do Executivo.

  

                        O que se seguiu e segue, incluindo a farsa Fernando Collor, é apenas um pouco mais do mesmo de sempre.

 

                        Como este blog pretende ser literário — e tendo em conta as raízes do genovês Mino Carta — não posso deixar de mencionar aqui o romance de Lampendusa, O Leopardo (Il Gattopardo), que retrata a Sicília de 1860, durante o processo de Unificação da Itália, a decadência da aristocracia e a ascensão de uma burguesia ávida de poder.

 

                        O livro originou um filme excepcional, com o mesmo título, dirigido por Luchino Visconti, que talvez tenha sido a mais bem sucedida transposição de uma obra literária para o cinema (há quem diga, e não sem razão, que o filme seja melhor ainda do que o livro).

 

                        O príncipe Dom Fabrizio Salina, protagonista do romance (encarnado magnificamente por Burt Lancaster no filme de Visconti), ao ser convidado a integrar o Senado, como representante da Sicília, pondera ao seu interlocutor, Chevalley, representante do novo Governo:

 

“Além do mais, como o senhor não pode ter deixado de perceber, sou privado de ilusões; e que diabo faria o Senado de mim, de um legislador inexperiente a que falta a faculdade de enganar-se a si próprio, requisito esse essencial a quem queira guiar os outros? Nós, os da nossa geração, devemos retirar-nos para um cantinho e ficar a observar as cambalhotas e as cabriolas dos jovens em torno deste cadafalso pomposo. Os senhores, agora, têm é precisamente necessidade de jovens, de jovens desembaraçados, de espírito mais aberto ao “como” do que ao “porquê” das coisas e que sejam hábeis em mascarar, em temperar, quero dizer, o seu preciso interesse particular com os vagos idealismos públicos.”

 

                        E, já no fim da conversa, diante do pensamento de Chevalley de que “Este estado de coisas não vai durar; a nossa administração nova, ativa, moderna, tudo transformará”Dom Fabrizio arremata:

 

“Tudo isso não devia durar; mas vai durar e sempre; o sempre humano, bem entendido, um século, dois séculos… Depois será diferente, mas pior. Nós fomos os Leopardos, os Leões; o que hão de substituir-nos, os chacais, as hienas; e todos nós, leopardos, chacais e ovelhas, continuaremos considerando-nos o sal da terra”.

Agradeceram muito um ao outro, saudaram-se, Chevalley trepou para a carruagem da mala-posta, içada sobre quadro rodas cor de vômito. O cavalo, todo fome e chagas, iniciou a longa viagem.

Mal era dia; o pouco de luz que conseguia filtrar-se das nuvens era outra vez detido pela sujidade imemorial das janelas. Chevalley estava só: por entre batidas e solavancos molhou de saliva a ponta do indicador, limpou um pedaço de vidro do tamanho de um olho. Olhou: diante de si, sob a luz de cinza, a paisagem oscilava, sem esperanças de redenção.

 

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