Apocalípticos e apopléticos

 

                        No deserto de idéias e de imaginação com que nos sufocam diariamente as redes de televisão, e que se torna ainda mais árido no carnaval, com as intermináveis transmissões dos apopléticos desfiles de escolas de samba e de trios elétricos — que podem ser muito divertidos para quem gosta e deles participa diretamente, mas são chatíssimos de assistir em casa —, não fogem da pasmaceira os canais a cabo, que deveriam aproveitar para oferecer atrações alternativas, mas se limitam a reprises das reprises.

                        Mesmo assim, zapeando em desespero na madrugada, tive a boa sorte de pegar ainda no início o extraordinário Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, que há algum tempo não revia integralmente. 

                        Já não há o que dizer de novo sobre a excelência do filme, que se tornou um clássico, baseado no livro O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, outro clássico. Trinta anos depois de lançado, o filme continua absolutamente atual (como são os clássicos) e irretocável nas suas cenas memoráveis (o bombardeio dos helicópteros ao som de Wagner; o ataque alucinante ou alucinógeno à ponte; o Capitão Willard (Martin Sheen) levantando-se de dentro d’água, e bêbado no quarto, socando o espelho; o ritual do sacrifício do boi. Consta, aliás, que estas duas últimas cenas foram reais) A exemplo de O Leopardo, de Visconti, já referido neste blog, trata-se de uma das raras transposições bem sucedidas de uma obra literária para o cinema, embora Coppola e seu parceiro John Milius tenham se valido de muito mais liberdade na elaboração do roteiro.

                        Tudo o que podia acontecer de errado durante a filmagem aconteceu, estourando o orçamento e o organograma (previsto para ser filmado em 6 semanas se estendeu por 16 meses), graças a um furacão que destruiu todos os sets, ao ataque cardíaco sofrido por Martin Sheen, à péssima forma física de Marlon Brando e suas exigências de astro rei, além de outros inúmeros contratempos (dizem que Coppola, em desespero, diversas vezes ameaçou suicidar-se, e depois do filme ficou praticamente falido). 

                        Mas o que quero ressaltar aqui é a minha imensa admiração pelo grande ator Robert Duvall. Não apenas neste, mas em todos os filmes de que participa a sua atuação é sempre perfeita, exata e contida (vide o consiglieri de O Poderoso Chefão), mesmo quando seria fácil desbordar para a histrionice, como no caso do coronel surfista Bill Kilgore.

                        A sua presença é discreta, mas deliciosa e arrebatadora, roubando todas as cenas, até mesmo quando se dá ao desfrute de um filme menor e despretensioso, como Assassination Tango (O Tango e o Assassino), que produziu e dirigiu para se divertir, movido por seu amor ao tango e a Buenos Aires, onde é freqüentador assíduo do café La Biela, na Recoleta (como também o era Jorge Luis Borges, cuja estátua impressionante, de terno, gravata e bengala, ficava sentada a uma das mesas, com uma garrafa de água e uma xícara de café. Foi retirada para reparo e não sei se já a repuseram). 

                        No extremo oposto da canastrice está para mim o ator espanhol Javier Bardem (prestigiadíssimo), que quase consegue estragar o bom filme dos irmãos Coen, Onde os fracos não têm vez (No Country for Old Men). Talvez pretendendo imprimir um estilo minimalista ou tomado pelos tiques do Actor’s Studio, ele está ridículo e intolerável como o assassino psicopata (Anton Chigurh), falando baixinho, quase sem abrir a boca (como um mímico inapto), movimentando-se lentamente (quando ferido ou cheio de saúde), com os olhos semicerrados e a cabeleira grotesca, como se com esses recursos patéticos pudesse infundir terror e força ao personagem. A mim só me fez rir de constrangimento e de espanto ao saber que ganhou o Globo de Ouro e o Oscar como melhor ator coadjuvante!

                        Num outro filme bem razoável (que vale especialmente pela reconstituição histórica), dirigido por Milos Forman, sobre a vida do pintor Goya (Sombras de Goya, em português, ou Goya’s Ghosts, no original) Javier Bardem já havia me irritado com as mesmas caras e bocas e o jeito de falar com que interpretou outro vilão, Frei Lorenzo, que depois de aprontar muitas cai em desgraça perante a terrível Inquisição espanhola, foge e abandona a Igreja, para retornar depois como um (falso) representante dos novos tempos desencadeados pela Revolução Francesa. Não foi muito diferente em outros filmes a que assisti e ele atuou. 

                        Pode ser implicância minha, mas pelo menos fica a sugestão dos filmes e a minha modesta homenagem ao inigualável Robert Duvall.

 

P.S.                 Conversando há pouco com a Carol e o Marcel (o mais novo Mestre em Ciência Política) soube que ambos gostaram muito da performance de Javier Bardem no filme dos irmãos Coen. Cada cabeça uma sentença, ou sou eu que esteja mesmo ficando velho e chato.

 

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Javier Bardem, como Anton Chigurh (à esquerda) e como Frei Lorenzo (à direita). ALGUMA DIFERENÇA???

 

 

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Robert Duvall (ele mesmo)

 

 

2 comentários

  1. rockmann
    23/02/09 at 11:43

    Existe um documentário sobre o inferno que se abateu sobre as filmagens de
    ‘Apocalipse Now”. Que eu saiba o Coppola não tentou o suicídio, mas ficou sem um dólar no bolso e com dívidas pesadas, sanadas com o sucesso do filme.
    As cenas do Robert Duvall querendo surfar nas águas vietnamitas e os helicópteros chegando ao vilarejo, sob Cavalgada das Valquírias, a imperialista marcha de Wagner são espetaculares.
    Quanto a Javier Bardem e seu Anton Chigurh, devo contrariá-lo. Para mim, está no rol dos maiores assassinos da história do cinema, ao lado de Hannibal Lecter, Marion Cobretti, o Coringa de Heath Ledger, Jason Vorhees. Acho que o Bardem está espetacular no personagem criado pelos Coen, com seu cabelo, os trejeitos, o humor peculiar, as poucas palavras. É o caos do Coringa no velho oeste. Aliás, ele, o Josh Brolin e o Tommy Lee estão excelentes no segundo melhor filme já feito pelos Coen – boa parte do filme está no “Gosto de Sangue”, de 1984, grande filme. O livro do Cormac, que deu origem ao “Onde os fracos não têm vez”, é muito bom, muito bom mesmo, um autor desconhecido por aqui, mas não muito distante de Philip Roth.

    • Antonio Carlos
      23/02/09 at 15:01

      Querido Rockmann,

      Estava sentindo sua falta.
      Sei que você gosta muito do filme dos irmãos Coen (que realmente é muito bom) e talvez inconscientemente (agora me dou conta), tenha tentado provocá-lo. Cometi um grave equívoco no post (já corrigido), pois o Javier Bardem ganhou também o Oscar de melhor ator coadjuvante, a que concorria no ano passado, e não neste (a Carol é que me passou um pito). Quanto ao personagem Anton Chigurh, concordo plenamente com você. Está à altura dos grandes assassinos e vilões da filmografia, entre os quais aqueles mencionados por você. Por isso mesmo merecia um ator melhor. Tanto assim que para a Carol o personagem parece ser um tanto “boçal” ou débil mental (por culpa da interpretação do Javier Bardem), quando na verdade (para mim) se trata de uma “máquina de matar”, de um profissional frio e eficiente, absolutamente seguro do que faz e sem nenhuma dúvida moral (como todo psicopata), a exemplo do Hannibal Lecter. Aliás, veja só a diferença entre Javier Balden e Anthony Hopkins… Não li o livro do Cormac mas vou tentar fazê-lo para verificar se não sou eu quem estou entendendo mal o personagem.
      Um grande abraço a você e à Tuka, e skindô, skindô, viva o carnaval!

      P.S. Acho que pelo menos você gostou da foto do Robert Duvall com o gato no ombro (se é que já não a conhecia)!

      Antonio Carlos

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