Posts from março, 2009

Leite Derramado

 

                        Recebi nos últimos dias, via internet, de livrarias onde costumo comprar, várias ofertas do pré-lançamento do novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado.

 

                        Por razões de marketing, quase nada se sabia sobre o tema do livro. Ontem, finalmente, a Folha de S. Paulo publicou uma extensa matéria sobre o livro (caderno Ilustrada, O bruxo do Leblon, E1), com resenhas favoráveis de Roberto Schwarz e Eduardo Gianetti (E6 e E7).

 

                        Sabe-se agora que trata da saga de uma família, que tem início na corte portuguesa, atravessa os períodos do Império e da República Velha e desemboca nos dias de hoje, narrada por meio de fragmentos da memória de um velho centenário, de origem aristocrática, que agoniza num leito de hospital. Tanto Schwarz quanto Gianetti observam que Chico evoca características da narrativa machadiana, o que para mim desperta especial interesse.

 

                        Tenho o Chico Buarque compositor no mesmo plano dos maiores vultos da MPB de todos os tempos, como Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa e, mais recentemente, Tom Jobim, Vinicius, Edu Lobo, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, da maioria dos quais foi parceiro. Talvez esteja até mesmo um pouco acima de alguns desses.

 

                        As suas músicas e os seus versos, e ainda as suas intepretações, apesar de não ser um grande cantor no sentido tradicional, me arrebatam e me deixam com inveja  do seu talento poético e artístico, aquele tipo de inveja amorosa a que se referiu o Guilherme no seu comentário no post Cordon bleu, blanc, rouge (J”accuse…!). Seria impossível arrolar aqui as suas composições da minha preferência, tantas (ou todas) são elas. Melhor dizer que não há nenhuma música de Chico que me desagrada, apesar de ter certa birra por Morena de Angola, que acho um tanto chata.

 

                        Gosto também muito da figura humana do Chico peladeiro, ao que parece um grande amigo, cidadão participante das questões públicas, mas sempre discreto na vida pessoal, talvez um falso tímido, conquistador de belas mulheres, em cujo universo transita com rara sensibilidade, como, aliás, é decantado.

 

                        Por tudo isso, me é doloroso dizer que considero o Chico Buarque romancista muito abaixo do compositor, e que nenhum dos seus livros até agora me agradou plenamente (diria até que todos me decepcionaram), apesar do aplauso incondicional de alguns críticos (?) e das notórias “igrejinhas”.

 

                        Não é que o Chico seja mau escritor ou que os seus romances não valham nada. Longe está de ser um Paulo Coelho da vida. A sua imaginação fértil e o seu talento em lidar com as palavras são os mesmos do grande compositor. O que sinto — e reconheço que possa ser uma idiossincrasia — é que até agora os seus romances não têm “pegada”, são frouxos em várias passagens, enfim me deixam na boca um gosto amargo de incompletude, de realização falhada.

 

                        Isso aconteceu com o primeiro deles, Estorvo, mas contemporizei por se tratar de uma obra de estréia, de experimentação de um novo jeito de se expressar. Achei o segundo, Benjamim mais fraco (assim como o filme dele extraído, que nem a presença sempre marcante do grande Paulo José e a descoberta de Cléo Pires conseguiram salvar). Budapeste já me pareceu bem melhor, mas ainda com aquele travo a que me referi acima, uma boa ideia que se perde na construção do romance, para mim mais longo do que necessário, com situações que se repetem e perdem a força.

 

                        Deixo claro que, a meu ver, o Chico faz muito bem em se dedicar àquilo que mais lhe agrada atualmente, mesmo pondo de lado a música. É sabido que ele não gosta de fazer shows e longas turnês, prefere ficar no seu canto e no seu mundo (com a idade isso se acentua, como eu próprio venho sentindo). Se recebe antecipadamente dos editores para escrever, e com isso vai levando a vida que lhe apraz, é tudo o que se pode querer (e disso tenho mais um pouco de inveja amorosa).

 

                        De todo modo, aguardo com ansiedade a leitura de Leite Derramado, fazendo votos que não azede, que possa significar mais um salto de qualidade em relação a Budapeste e finalmente se apresente o escritor à altura do compositor.

 

                        Por enquanto, o Chico Buarque compositor é o Michel Jordan das quadras de basquete. Como romancista, continua sendo um Michel Jordan, mas jogando golfe.

 

leite-derramado

Brasileiro, Profissão Esperança (Cântico Negro)

 

                        Ao remexer nos meus discos, encontrei um CD do qual ainda nem havia tirado o invólucro. Lembrei-me de tê-lo comprado há algum tempo, em São Paulo, se não me engano na Livraria da Vila, num impulso de emoção e nostalgia. Já o tivera antes, quando do lançamento, num velho e bom LP, que acabei perdendo (provavelmente emprestei a alguém, que não me devolveu).

 

                        Trata-se da gravação ao vivo do espetáculo Brasileiro, Profissão Esperança, escrito ou organizado por Paulo Pontes, em sua segunda montagem, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, e direção de Bibi Ferreira, que fez à época (1974) um sucesso estrondoso no Canecão.

 

                        Dolores Duran e Antônio Maria são as personagens do show musical e através deles, de suas músicas e textos, somos levados a vida boêmia do Rio de Janeiro, na década dos anos 50. Ao que consta, Dolores e Maria sequer se conheceram, mas têm muito em comum, na paixão de viver, no horror à solidão, na busca incessante do amor, no gosto pela noite e pela bebida. Só poderiam morrer da mesma forma, fulminados pelo coração desmedido.

 

                        Antonio Maria foi casado com Danuza Leão, que se queixa de ter sofrido muito com o temperamento e o ciúme dele. Ela deixou Samuel Wainer, fundador, entre outros, do jornal Última Hora, para viver com Antonio Maria, então simples cronista do jornal do ex-marido.

 

                        Dolores Duran, bem morena e rechonchuda, era adorada pelos amigos e músicos da noite, apaixonava-se muito, namorava, mas sempre foi muito infeliz no amor.

 

                        Sobre ambos, posso contar dois episódios que cada um protagonizou com Vinicius de Moraes, que não são inéditos, mas que ouvi relatado com o sabor e a verve do próprio poetinha, e bem demonstram o seu jeito de ser e a sua generosidade.

 

                        Certa feita, Vinicius e Antonio Maria voltavam para casa pela orla do Rio de Janeiro, num carro conversível do segundo, quando o dia já amanhecia. Estacionaram o automóvel defronte da praia de Copacabana e ficaram a ver ao longe um grupo de velhinhos, já então adeptos do estilo de vida saudável, que resfolegavam e balançavam as carnes flácidas na ginástica à beira mar.

 

                        Antonio Maria encara o companheiro e o conclama:

 

                        — Poesia (era assim que tratava Vinicius)!

 

                        — Fala meu Maria (era assim que Vinicius tratava o “Menino Grande”)

 

                        — Vamos fazer aqui e agora um pacto definitivo: jamais faremos qualquer esforço físico desnecessário durante toda a vida!

 

                        Cumpriram religiosamente o prometido.

 

                        Em relação à Dolores Duran, a linda música que veio a se chamar Por Causa de Você, e se tornou um clássico, fora composta por Antonio Carlos Jobim para Vinicius colocar a letra. Ao ouvir a melodia executado pelo mestre Tom e com ela se encantar, Dolores apanhou um guardanapo e de enfiada escreveu a letra, que caiu como uma luva. Alguns dias depois, Vinicius reencontrou-se com Jobim, trazendo a letra já pronta anotada num papelucho guardado no bolso. Soube então pelo constrangido parceiro da letra feita, atropeladamente, por Dolores. Quis ouvi-la e ao final, rasgou a sua própria letra, sem mostrá-la ao Tom e disse:

 

                        — Fica com a da menina.

 

                        Reouvir agora o disco e reviver o espetáculo foi uma verdadeira delícia. Como sempre o trabalho de Paulo Pontes é meticuloso e exato, mesclando as músicas e os textos de cada qual, de modo a estabelecer um diálogo entre eles que vai num crescendo arrebatador.

 

                        Não obstante, lá pelas tantas, de um modo aparentemente desconexo, introduz numa fala de Paulo Gracindo o poema Cântico Negro, do poeta português José Régio. Mas quando Gracindo começa a dizê-lo, entendemos o porquê. O espetáculo até então se desenrola com destaque para as canções interpretadas magnificamente por Clara Nunes, apenas pontuadas por algumas intervenções sempre bem colocadas, mas breves, de Gracindo. É chegada então a hora do grande mestre fulgurar com a força do poema.

 

                        Já anotei que tenho restrições à maioria dos atores ou atrizes que se põem a declamar poemas, buscando encarnar uma personagem que não existe. A personagem é o próprio poema a ser dito (também não gosto dos termos “declamar” ou “recitar”, que me remetem às menininhas faceiras da “Batatinha quando nasce…”) no seu ritmo e na sua emoção próprios. Paulo Gracindo faz isso com destreza ímpar.

 

                        O poema Cântico Negro foi um dos primeiros que me levaram a um paroxismo de emoção, quando ainda ginasiano, em São Joaquim da Barra, ouvi-o ser dito por outro grande e inesquecível ator, Sérgio Cardoso. Tenho, ainda, uma gravação que adoro do poema, na voz do português João Vilaret, com a pronúncia típica lusitana. De tanto ouvir esses mestres, ouso afirmar, sem falsa modéstia, que digo o poema com alguma competência, melhor do que muita gente.

 

                        Pretendendo trascrevê-lo aqui, lembrei-me de que constava de um antigo livro sobre literatura portuguesa, de autoria de Massaud Moisés, de que me utilizava na escola e que guardo com carinho. Fui apanhá-lo na estante e outra emoção me apanhou. Havia me esquecido que o livro me fora presenteado pelo meu avô materno, figura encantadora, inteligente  e autodidata, sobre quem ainda preciso escrever neste blog. Eis a dedicatória que ele me fez, mantidas a grafia e a formatação originais:

 

Ao meu querido neto,

of. esta magnífica obra

para que n’um futuro

não muito distante, adquira

uma bôa cultura, tão bôa, quanto a deste

admirável autor.

Com as bênçãos do

vovô

Tufy

15/5/967

 

 

 

 

Cântico Negro

 

 

José Régio

 

 

 

Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui!”

 Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

 

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

 

 

jose-regio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Régio  (pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira)

A epopeia plebeia II

 

                        No comentário que deixou no post sobre os aspectos épicos do futebol, a Carol (que é uma das mulheres que mais entendem e sabem “ver” o futebol, dando banho em muito marmanjo) cobra de mim que prossiga no tema, fazendo um paralelo entre os jogadores e as figuras mitológicas. Chega ela a propor algumas comparações interessantes, como a sina de Ronaldo e Sísifo.

 

                        Vários amigos que leram o mesmo post também me estimularam a voltar ao assunto, o que bem revela, não a qualidade deste escriba ou da “teoria” exposta, mas o interesse que o futebol suscita e como ele faz parte do nosso imaginário.

 

                        Confesso que não pretendia retomar aquelas cogitações, as quais, como já ressaltei, não passam de entretenimento de mesa de bar, sem maiores pretensões. Aliás, este blog tem me servido especialmente para divertir, registrando e compartilhando ideias ou sentimentos que me ocorrem e que antes se perdiam numa conversa solta, ficavam guardados comigo ou até mesmo eram esquecidos por mim.

 

                        Já ouvi de alguns teóricos e escritores pretensiosos que escrever é fácil ou é impossível. Não  concordo em absoluto com isso, que considero mera boutade. Escrever é um processo contínuo de aprendizado,  menos penoso para alguns, mas que sempre exige esforço e dedicação. Autores extraordinários e consagrados, como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos, confessadamente escreviam com tormento, corrigindo e emendando seus textos de modo quase obcecado. Jorge Luis Borges dizia que muitas vezes publicava para se libertar do que havia escrito, e não ficar a retocar ou modificar continuamente. A propósito,  como uma das epígrafes deste blog tomei emprestado os versos de João Cabral em que ele alerta:  “Escrever jamais é sabido;/O que se escreve tem caminhos;/ Escrever é sempre estrear-se/ e já não serve o velho ancinho”.

 

                        Para mim, escrever aqui tem sido acima de tudo divertido e prazeroso. Como parece que o mesmo se da com alguns que me leem, arrisco-me a atender aos pedidos.

 

                        Antes, porém, uma ressalva. A Mitologia Greco-Romana sempre me fascinou, mas sobre ela  tenho conhecimentos triviais, estando muito longe de ser um especialista. Assim, é com o esse precário saber, sem me aprofundar em pesquisas, já que não tenciono escrever um artigo acadêmico nem erudito, que me lanço à tarefa.

 

                        Comecemos pelo maior de todos (que me perdoem os hermanos argentinos): Pelé. Além da sua classe inigualável e maestria, foi um atleta exemplar, cumpridor de suas obrigações profissionais e das regras estabelecidas (aliás, muitos o criticam por isso). Mesmo na vida pessoal (apesar de um ou outro tropeço, que faz parte da condição humana) mantém uma conduta digna e honrada, sempre revelando grande consideração e carinho pelos pais, “Seu” Dondinho (que, segundo afirma, teria sido melhor jogador do que ele, não fosse alijado do futebol por uma contusão incurável à época) e “Dona” Celeste. Penso nele então como Enéas, príncipe e herói troiano que depois de combater leal e corajosamente os gregos, ao se dar conta da inevitabilidade da derrota, fugiu levando às costas o velho pai, a quem, tendo falecido, desceu aos infernos para procurar. Participou ainda de muitas outras batalhas, até matar o seu rival Turno, rei dos rútulos, fundando, em seguida, a cidade de Lavinium. Após quatro anos de reinado tranquilo, teve de sustentar sangrento combate com os mesmos rútulos, no qual desapareceu, dizendo-se que a sua mãe o arrebatou para o céu (“Dona” Celeste).

 

                        Maradona, o deus argentino, tem algo de Ulisses ou Odisseu, rei de Ítaca, retratado como ardiloso e grande estrategista, armador de intrigas e conspirações, tendo sido o autor ou um dos autores do logro do famoso Cavalo de Tróia (la mano de Dios…). Vencida a guerra, perdeu-se no caminho de volta para casa (o descaminho das drogas trilhado por Maradona). Sofreu inúmeros dissabores, mas sobreviveu graças à sua sagacidade, até finalmente retornar ao seu reino em Ítaca. Nesse ponto um pequeno descompasso, mas que, mesmo na diferença, os aproxima. Consta que ao voltar para Ítaca, disfarçado de mendigo, Ulisses a princípio não foi reconhecido. Maradona, ao contrário,  jamais deixou de ser reconhecido, até mesmo de modo exagerado, na Argentina, onde é idolatrado a ponto de haver sido fundada e se achar em plena atividade a Igreja Maradoniana, que já contaria com 120 mil membros e de cujos dez mandamentos constam as seguintes pérolas: “Declararás amor incondicional a Diego e à beleza do futebol”; “Espalharás os milagres de Diego por todo o universo”; “Usarás Diego como teu segundo nome”; “Chamarás de Diego teu primeiro filho” (Revista Playboy, fevereiro de 2009, Segura na mão de Diego e vai…, matéria de Jonathan Franklin, com fotos de Morten Andersen e Martin Schiappacasse, pág. 70/72) . Entre as várias camisetas que pululam nas ruas e lojas de Buenos Aires com dísticos sobre Maradona, duas das mais populares são aquelas que estampam: “O céu pode esperar”; “O Papa é alemão, mas Deus é argentino” (Ué, mas Deus não era brasileiro?).

 

                        Para não me alongar em demasia, resumo alguns outros paralelos.

 

                        Ronaldo, o Fenômeno, excepcional jogador,  e seus joelhos frágeis lembram o bravo e temível Aquiles com seu calcanhar vulnerável.

 

                        Zico, extremamente talentoso, mas de compleição mirrada, foi um dos primeiros jogadores a cumprir um duro programa especialmente elaborado para lhe fortalecer o físico, o que pode ser comparado a Hércules e seus doze trabalhos.

 

                        Romário, craque indiscutível em campo, porém sempre irreverente, alegre e malicioso, um autêntico hedonista, seria Dionísio ou Baco, deus do vinho, das festas e do prazer, ou então um dos Sátiros que compunham o séquito de Dionísio.

 

                        Garrincha, o mais trágico de todos, cuja vida, do sucesso ao infortúnio, remete a Édipo.

 

                        A nossa Marta, três vezes eleita a maior jogadora do mundo, seria a poderosa guerreira Ártemis ou Diana.

 

                        No Olimpo (a Fifa), Zeus, o rei e governante de todos os deuses, é hoje encarnado por Joseph Blatter, mas já o foi pelo compatriota João Havelange. Ricardo Teixeira, presidente da CBF, e seu caráter ambíguo, assemelha-se a Poseidon ou Netuno, considerado um deus traiçoeiro, pois os gregos não confiavam nos caprichos do mar.

 

                        Por fim, os que verdadeiramente amamos o futebol (e não aqueles bandos de delinquentes que se intitulam torcidas organizadas), somos punidos, como Prometeu, por roubar o fogo sagrado (que é o próprio futebol) dos deuses, e condenados a ter o fígado devorado a cada torneio, campeonato ou copa do mundo em que nossos times ou nossas seleções competem, ou talvez ainda, como Sísifo, a recomeçar a cada ano o trabalho interminável de empurrar morro acima a bola esperançosa dessas nossas equipes queridas, para vê-la rolar abaixo no final de cada temporada, mesmo quando nos sagramos campeões, mas temos de começar tudo de novo para o desafio seguinte.

 

                        Haverá muitas outras e melhores associações. Aos que me lerem, deixo aqui a proposição de fazê-las em seus comentários e enriquecer esta brincadeira.

Conta corrente

 

 

conta-corrente

 

Houve um tempo

em que eu era imortal

como os heróis dos gibis,

nada me atingia, e no final

todo mundo estava vivo e feliz.

 

Hoje, quando me olho no espelho

deparo um forasteiro que me pareço

vagamente familiar,

com menos dente e cabelo,

cheio de morto e cicatriz.

A bolsa e quase a vida

 

                        Minha filha Bell, quando consegue uma pequena folga dos compromissos profissionais, que são muitos, foge de São Paulo e regressa ao ninho, para matar a saudade, receber e nos dar carinho.

 

                        Neste fim de semana, chegou sexta-feira à noite com a sua alegria de sempre, para retornar no domingo depois do almoço, como costuma fazer.

 

                        Na própria sexta-feira, saiu com alguns amigos e foram a um barzinho, situado no nosso bairro mesmo, antes pacato e familiar.

 

                        Ao sair do barzinho para pegar o carro, acompanhada de um dos amigos, foram abordados e assaltados por dois energúmenos, que ameaçando e insultando, a princípio queriam tudo: levar o carro e eles, documentos, cartões, cheques e, sobretudo, dinheiro. Graças ao sangue-frio do rapaz (que por ser ator de teatro talvez tenha conseguido se controlar), acabaram se contentando em levar apenas o dinheiro, pouco mais de R$ 100,00 (o que é quase nada, e demonstra que provavelmente não passassem de drogados em desespero e por isso mesmo capazes de tudo).

 

                        O susto, a emoção, o medo e o sentimento de impotência deixaram Bell arrasada e lhe estragaram o brevíssimo descanso. Não foi diferente conosco, pais, irmãs e até mesmo com o velho poste amigo (que já postou suas impressões neste blog), que a tudo assistiu do seu posto na esquina, sem nada poder fazer.

 

                        Disse-me Bell que pretende escrever sobre a triste experiência no seu blog Projeto Grifos (e ela está escrevendo a cada dia melhor).

 

                        Não vou eu aqui lhe roubar também a crônica ou o desabafo. Apenas expresso a minha revolta e recomendo que a leiam.

A epopeia plebeia

 

 

“Brasil está vazio na tarde de domingo, né?

olha o sambão, aqui é o país do futebol

Brasil está vazio na tarde de domingo, né?

olha o sambão, aqui é o país do futebol.

 

No fundo desse país

ao longo das avenidas

nos campos de terra e grama

Brasil só é futebol

nesses noventa minutos

de emoção e alegria

esqueço a casa e o trabalho

a vida fica lá fora

dinheiro fica lá fora

a cama fica lá fora

família fica lá fora

a vida fica lá fora

e tudo fica lá fora.“

 

(Aqui é o País do Futebol, Milton Nascimento e Fernando Brant)

 

 

 

 

 

                        O retorno de Ronaldo aos campos de futebol, ainda mais envergando o manto glorioso do Corinthians, foi transformado num grande espetáculo pela mídia marqueteira, sempre ávida em projetar acontecimentos de algum interesse ou apelo popular a uma dimensão “histórica”, “monumental”, “imperdível”, para assim poder explorá-los ao máximo, fomentando o público e via de consequência incrementando a receita e os patrocínios comerciais. Trata-se, nada mais nada menos, do que pôr em prática o círculo virtuoso, ou vicioso, do capitalismo: estimula-se o consumo para que o consumo açule o lucro.

 

                        Quantas “lutas do século” e “jogos do século” já foram propagados e ainda o serão?

 

                        A despeito disso, como todo amante do futebol (hoje, sou muito mais isso do que “torcedor”), confesso que me comovi com o esforço e a luta de Ronaldo , já consagrado e milionário, para se recuperar de mais uma lesão gravíssima e regressar aos gramados. Mesmo não sendo corintiano, vibrei com aquele gol no finalzinho do jogo contra o Palmeiras.

 

                        Embora dois gols e alguns minutos em campo ainda sejam insuficientes para se proclamar  a “volta do Fenômeno”, o “renascimento das cinzas” ou “o voo da fênix”, bem como para justificar as inefáveis mesas redondas, em que pretensos críticos e especialistas pontificam ou “repercutem” durante horas sobre o momentoso assunto, é consabido que o esporte encerra significados míticos e cumpre um papel fundamental na elaboração do humano.

 

                        É bastante conhecida e muito interessante a analogia entre as partidas dos esportes coletivos, disputadas por times ou equipes, com uma guerra ou batalha simbólica, em que dois exércitos, com suas bandeiras, suas cores, seus hinos e soldados, se enfrentam sob a expectativa e o estímulo de sua “nação” de torcedores, que se rejubilam nas vitórias e se prostram nas derrotas. Pena que muitos levem a sério tal encenação, odeiem realmente os adversários e se comportem como bárbaros e selvagens nos estádios.

 

                        Em conversas de botequim, sempre descompromissadas e galhofeiras, venho alinhavando uma tosca teoria sobre o futebol e seu mundo próprio configurarem uma epopeia contemporânea, com muitos de seus elementos tradicionais, deuses, semideuses, heróis, vilões, eventos extraordinários, trágicos ou recompensadores.

 

                        Já se disse há muito que as antigas epopeias seriam incompatíveis com a vida moderna, o que talvez explique ou empreste sustentação a esta ideia do futebol como uma nova epopeia ou a transmigração desta para os nossos tempos.

 

                        Tal como a poesia (Ilíada, Odisseia, Eneida, Os Lusíadas etc.), o antigo teatro grego tomava da épica para compor suas tragédias, consideradas como o mais nobre dos gêneros literários, e cujos maiores vultos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, teriam escrito mais de trezentas peças, a maioria delas perdidas para sempre. Felizmente nos restaram algumas célebres e magníficas, como Prometeu Acorrentado, Édipo Rei e Medeia, para citar apenas uma obra de cada qual daqueles autores, respectivamente.

 

                        As tragédias, fundamentadas na mitologia helênica (uma das concepções mais admiráveis já produzidas pela humanidade na busca de explicar os mistérios da existência), são a expressão desesperada do homem, que luta contra todas as adversidades e quase nunca consegue evitar a desgraça. Assim também no futebol, em que as conquistas de campeonatos, as grandes vitórias são excepcionais. Haverá apenas um time vencedor, e todos os outros, e seus torcedores, amargarão inapelavelmente a desdita da derrota.

 

                        No teatro grego, as tragédias eram constituídas em cinco atos (os “tempos” da partida de futebol ou as “rodadas” ou “fases” dos campeonatos ou torneios) e, além dos atores (os jogadores), intervinham o coro (os narradores, comentaristas e repórteres, as comissões técnicas) e a plateia (as torcidas). Ao longo da representação, os atores provocavam sentimentos e reações no coro e na plateia, a qual respondia, concordando ou discordando, cantando com o coro.

 

                        Nesse processo de projeção/identificação entre mitos e a realidade, em que se envolvem homens (os jogadores comuns), deuses (cartolas, árbitros e seus assistentes ou “bandeirinhas’, capazes de interferir de modo discricionário no desenrolar da partida ou do campeonato), semideuses (os craques consagrados) e heróis (aqueles jogadores que mesmo não sendo grandes craques decidem um jogo ou campeonato), a plateia (os torcedores) é conduzida — pela paixão, pelos temores e pelas aflições — à purgação de suas emoções e à catarse final.

 

                        Cabe lembrar, ainda, que a tragédia, assim como a comédia grega, nasceu das festas dionisíacas (consagradas a Dionísio, deus do vinho) que propunham a embriaguez, estado que permite o distanciamento do real e a entrada numa outra dimensão.

 

                        Não será também o futebol uma festa dionisíaca e inebriante, que nos empolga a todos (notadamente o povo brasileiro), nos redime e nos dá força para superar as vicissitudes da vida e marchar adiante?

 

                        José, para onde?

A nova ortografia

 

                        A famigerada reforma ortográfica já corre solta como um cavalo bravio desde o início deste ano, mas só hoje, finalmente, a ABL (Academia Brasileira de Letras) lhe põe o laço com a nova versão do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), que registra a forma oficial de escrever as palavras. O novo VOLP fora prometido para o início de fevereiro, atrasou, mas na verdade era imprescindível que estivesse pronto e à disposição de todos desde o primeiro dia em que o acordo entrou em vigor no Brasil.

 

                        Tudo isso reflete muito bem como as coisas acontecem por aqui. Apressadinhos e vanguardeiros (talvez não seja lá um grande feito estar na vanguarda do atraso), quisemos sair na frente de todos os demais países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), dos quais apenas Brasil, Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe já ratificaram o acordo, firmado em 1990, faltando ainda a adesão de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste. E nenhum outro país sequer tem data ou prazo estabelecido para pôr em prática o acordo.

 

                        A reforma me parece uma bobagem ou nonada, para lembrar do termo arcaico vivificado por Guimarães Rosa. Haveremos de sobreviver a ela, como sobrevivemos às anteriores, e pouco a pouco nos acostumaremos com as modificações, que a princípio se afiguram rebarbativas.

 

                        Eu, por exemplo, embora não sejam do meu tempo, teria muito mais confiança em comprar remédios em uma “pharmacia”, e mais respeito e temor por um “phantasma”, sem dizer que “hontem”, com seu “h” precedente, me provoca uma imediata nostalgia do dia que passou. O trema já estava irremediavelmente desprestigiado, e a sua eliminação oficial foi uma das poucas medidas práticas da reforma, mas convenhamos que “lingüiça” parece muitos mais apetitosa, com o “g” representativo da sua forma contorcionista seguido do “ü” com trema, como que polvilhado de grânulos de sal ou de uma boa pimenta do reino ou calabresa, moída na hora.

 

                        Minha filha caçula Júlia, quando ainda pequenina, demonstrava vocação para filóloga, embora hoje, na flor dos seus dezenove anos, esteja a caminho da se tornar psicóloga, enveredando pelos escaninhos da mente humana, muito mais complexos e penosos do que o mundo das palavras, que é vasto mas se abre prazerosamente para todos os que se aventuram a explorá-lo.

 

                        Logo que começou a falar com maior fluência — e o fez precocemente —, Júlia se impressionava com certas palavras, queria modificar algumas e até criava outras. Deveria ter anotado todas as suas cogitações filológicas, que muito me divertiam e agradavam. Talvez percebendo isso, frequentemente ela vinha até mim com alguma novidade ou questão para conversarmos a respeito.

 

                        O primeiro de seus inconformismos ocorreu quando a nossa casa estava sendo pintada e ela acompanhava, fascinada, o entra e sai do pintor, com suas latas de tintas, a mistura dos pigmentos para obter a cor escolhida. Perguntou-me então por que ele era chamado de “pintor”. Não satisfeita com a resposta óbvia de que se tratava de alguém que “pintava” a casa, havendo ainda o artista que “pintava” quadros, como o avô paterno dela, contestou dizendo que eles “tintavam” a casa ou os quadros e por isso deveriam ser denominados “tintores”.

 

                        De outra feita, vendo as figuras de um livro infantil em que crianças pretendiam abrir um buraco para sair na China ou no Japão, veio me mostrar um desenho do “buraco” dizendo-me que na verdade era um grande “furo” e por isso deveria chamar-se “furaco”.

 

                        A última de que lembro agora (mas houve várias outras) foi numa ocasião em que, passando alguns dias numa casa de campo, saí com ela à noite pelas imediações e ela viu pela primeira vez um vaga-lume (que com a reforma ortográfica, segundo parece, passará a ser escrito sem o hífen, “vagalume”). Depois de indagar e saber que “lume”, no caso, significava luz, brilho, clarão, não se conformou: o bichinho deveria chamar-se então “apaga-lume”. Para provocá-la, disse-lhe que o inseto não só apagava como acendia, mas ela não se deu por vencida, e redarguiu que então poderia chamar-se “acende-apaga-lume” ou “pisca-lume”. Prudentemente, preferi me calar e  omitir  que ele é conhecido ainda como caga-lume, caga-fogo, cudelume e pirilampo.

 

                        A pequena Júlia, posta diante da nova ortografia, talvez me saísse com esta:

 

                        ─ Não se trata de nova ortografia, mas sim de uma “outragrafia”.

Cordon bleu, blanc, rouge (J'accuse…!)

  

“Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor…

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?” (Para viver um grande amor, Vinicius de Moraes)

 

                        Poeta, meu poeta camarada (a quem, na minha juventude, tive o raro privilégio de conhecer e ouvi-lo de perto em papos inesquecíveis, bebericando, é claro, um bom whisky — um dia eu conto), sua receita para viver um grande amor é sábia, mas comigo, desanda. Sou inepto na cozinha. Só o que sei é ferver água e, por conseguinte, coar um bom café, forte e amargo (se o pó for de qualidade).

 

                        Estaria fadado, pois, a jamais viver um grande amor, não fosse a minha mulher e meu grande amor, Maria Delucena, que além do nome incomum, tem um talento inusitado e intuitivo para a arte culinária.

 

                        Não conheço ninguém mais com capacidade tamanha de criar delícias inesperadas, improvisando com o que houver na geladeira e na despensa. Não lhe peçam receitas tradicionais ou sofisticadas, que ela até saberá fazer, mas sem se empolgar. Do que ela gosta mesmo é de criar, inventar, engendrar um prato único.

 

                        E o prato é único literalmente. Saboreie, lamba os beiços, porque ele nunca será repetido. Inútil lhe implorar que anote como fez, porque, quando pronto, ela já não se lembrará. Nem tem paciência para isso, se pode criar um outro.

 

                        Neste fim de sábado, acabo de me deleitar com uma iguaria dessas, que, com toda a certeza,  jamais abocarei novamente. Nem eu, nem ninguém.

 

                        Ameacei denunciá-la no meu blog. Ela sorriu e não acreditou.

 

                        Eis aqui.

A postos

 

                        Postado na esquina, fico a observar os que passam e o que se passa.

 

                        A movimentação aparentemente desconexa tem na verdade um sincronismo próprio, compondo para os iniciados um balé de pessoas e máquinas, com solos de rica coreografia executados por artistas anônimos, transeuntes, ciclistas, motoristas, animados pela sinfonia de vozes, motores e buzinas.

 

                        Muitos dos que vão e vêm por aqui me são familiares a ponto de acompanhar-lhes a vida. A velhinha que leva o seu crochê interminável todas as manhãs para a pracinha próxima, aventurando-se intrépida no cruzamento movimentado. Daquele rapagão ali me lembro ainda menino, sempre com os joelhos esfolados e uma bola debaixo do braço, com que enlaça agora a cintura da namorada. Aquela jovem senhora, um tanto gordinha, que vai com uma criança no colo e outras duas dependuradas no vestido e no braço livre, foi a moça mais linda e requisitada do bairro.

 

                        Antigamente havia até um guarda-civil que procurava disciplinar o trânsito de forma bem-humorada, fazendo brincadeiras com motoristas e pedestres, alguns dos quais, não raras vezes, apanhava pelo braço ou pela mão e fazia retornar à calçada de onde tinham avançado em momento inoportuno. Já não há guardas-civis, nem bem-humorados. Hoje, a polícia atônita se dedica a caçar a tiros os suspeitos, que são todos.

 

                        À noite os moradores não mais ousam tomar a fresca e conversar, sentados em cadeiras nas calçadas, agora tomadas pelos lúgubres sacos plásticos de lixo. Poucos se arriscam a sair de casa depois de escurecer.

 

                        Continuo, porém, imperturbável no meu posto, e escoro o bêbado retardatário, restituindo-lhe o equilíbrio provisório.

 

                        O cachorrinho branco e peludo da casa de grades pretas, uma das poucas que resistem no quarteirão, solto pelo dono para o costumeiro passeio noturno, aspira a aragem, perscruta com vivacidade o ambiente, avança rápido na minha direção, rodeia-me, cheira-me e levantando a patinha traseira despeja jatos curtos de urina na minha base de concreto.

 

 

Para o Snow

 

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Diário de uma semana ruim

 

                        O titulo deste post foi retirado do excelente livro Diário de um ano ruim, de J. M. Coetzee, escritor sul africano, premiado duas vezes com o Booker Prize, e com o Nobel de literatura em 2003.

 

                        É certo que premiações, por mais badaladas que sejam, nem sempre se prestam como indicativo de um bom escritor ou de uma obra significativa (às vezes, muito pelo contrário), mas no caso trata-se realmente de um grande escritor contemporâneo.

 

                        Diário de um ano ruim se passa em dois planos simultâneos. No primeiro plano, um velho escritor, contratado por um editor alemão, escreve um livro com suas “opiniões fortes” sobre diversos temas atuais. “Opiniões fortes”, no caso, são reflexões e abordagens contestatórias e amargas a respeito de variados assuntos. Como o escritor padece de dificuldades motoras decorrentes de uma enfermidade que avança, contrata uma jovem vizinha do seu prédio para transcrever as fitas em que grava os seus artigos, e entre os dois se estabelece um relacionamento ambíguo, cheio de sutilezas.

 

                        O segundo plano é justamente o dos pensamentos íntimos ou da subjetividade de ambos, e também do companheiro ou namorado com quem a moça vive, e a certa altura se intromete no relacionamento dela com o escritor, pretendendo tirar proveito escuso.

 

                        Como muito bem observado na orelha do livro, “Diário de um ano ruim entrelaça de modo desconcertante os artigos destinados ao editor alemão e os relatos em primeira pessoa de Anya e do próprio escritor. Assim, libelos indignados e originais sobre temas da atualidade, como terrorismo, globalização, conflitos étnicos, manipulação genética e desastres ambientais dividem — literalmente — as páginas deste romance com os pensamentos mais secretos do velho autor e da jovem digitadora, uns iluminando e refratando os outros.”

 

                        Aliás, seria muito interessante falar um dia a respeito da fina arte de redigir as “orelhas” dos livros, que num curto espaço tanto podem despertar o interesse pela leitura do livro, como causar efeito contrário. Algumas “orelhas” são até mesmo melhores do que o próprio livro, mascarando suas deficiências e fisgando o leitor incauto. Há ótimos ensaios a esse respeito.

 

                        Feita a recomendação do livro, resta explicar a razão do título deste post.

 

                        Será preciso?

 

                        Quanta coisa ruim aconteceu na última semana, desde o retorno do clã Sarney ao comando do pobre e infeliz estado do Maranhão, até as peripécias e diabruras do Delegado Protógenes, o Eliot Ness (ou Inspetor Clouseau?) tupiniquim, que com seu desvario e sanha justiceira vai conseguir transformar em vítimas aqueles que mereceriam ser postos atrás das grades. Se bem que sempre é preciso uma dose de cautela em relação às matérias da revista Veja.

 

                        Mas o pior de tudo foi o papel ridículo e constrangedor do arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, o Torquemada sertanejo, que excomungou por atacado médicos, enfermeiras, a mãe e a desventurada menina de apenas nove anos e com trinta quilos de peso, violentada e grávida de gêmeos, mas poupou o padrasto estuprador!

 

                        Seria esse um caso emblemático para a Igreja manifestar publicamente o seu repúdio ao aborto e reafirmar seu dogmatismo? A propósito, há na edição de hoje da Folha de S. Paulo um artigo muito bom de Marcelo Coelho (Estupra, mas não aborta, caderno Ilustrada, E8) em que ele afirma, com inteira razão, que “A atitude desse arcebispo é tão estreita e sem caridade, que fica até vulgar criticá-la como merece.”

 

                        Segundo sua Eminência Reverendíssima, “Católico que é católico aceita a lei da igreja. Quem não aceita é católico mais ou menos, e isso não existe.”

 

                        Por isso mesmo, e para não ceder à hipocrisia, embora nascido e criado em uma família de tradição católica (como a maioria dos brasileiros), de ter sido batizado, crismado e me casado na Igreja, e também haver batizado e crismado minhas três filhas, que chegaram a estudar no Colégio Marista, já há algum tempo não me classifico como católico.

 

 

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