Postado na esquina, fico a observar os que passam e o que se passa.
A movimentação aparentemente desconexa tem na verdade um sincronismo próprio, compondo para os iniciados um balé de pessoas e máquinas, com solos de rica coreografia executados por artistas anônimos, transeuntes, ciclistas, motoristas, animados pela sinfonia de vozes, motores e buzinas.
Muitos dos que vão e vêm por aqui me são familiares a ponto de acompanhar-lhes a vida. A velhinha que leva o seu crochê interminável todas as manhãs para a pracinha próxima, aventurando-se intrépida no cruzamento movimentado. Daquele rapagão ali me lembro ainda menino, sempre com os joelhos esfolados e uma bola debaixo do braço, com que enlaça agora a cintura da namorada. Aquela jovem senhora, um tanto gordinha, que vai com uma criança no colo e outras duas dependuradas no vestido e no braço livre, foi a moça mais linda e requisitada do bairro.
Antigamente havia até um guarda-civil que procurava disciplinar o trânsito de forma bem-humorada, fazendo brincadeiras com motoristas e pedestres, alguns dos quais, não raras vezes, apanhava pelo braço ou pela mão e fazia retornar à calçada de onde tinham avançado em momento inoportuno. Já não há guardas-civis, nem bem-humorados. Hoje, a polícia atônita se dedica a caçar a tiros os suspeitos, que são todos.
À noite os moradores não mais ousam tomar a fresca e conversar, sentados em cadeiras nas calçadas, agora tomadas pelos lúgubres sacos plásticos de lixo. Poucos se arriscam a sair de casa depois de escurecer.
Continuo, porém, imperturbável no meu posto, e escoro o bêbado retardatário, restituindo-lhe o equilíbrio provisório.
O cachorrinho branco e peludo da casa de grades pretas, uma das poucas que resistem no quarteirão, solto pelo dono para o costumeiro passeio noturno, aspira a aragem, perscruta com vivacidade o ambiente, avança rápido na minha direção, rodeia-me, cheira-me e levantando a patinha traseira despeja jatos curtos de urina na minha base de concreto.
Para o Snow
Sem pa-la-vras. Aliás, uma única: saudade.
Leio sua crônica como se fora um poste. Muito boa!
Eu nem me coloco como tal. Adoro, há muitos anos ir aos shoppings (deSP, daqui de Piracicaba e outros pelos quais já passei), sentar-me nos bancos dos corredores e ficar olhando os que passam.
Não é nada de fofoca ou de tentar algo que não seja sossegado.
Acho muito engraçado imaginar como são as pessoas em suas vidas normais. Como vivem. Como são suas casas. Como se comportam dentro delas. Enfim, fico tecendo as pessoas pelo que deixam se aparentar nos shoppings da vida.
Algo assim meio doido. Mas muito interessante quando a gente se deixa escorrer pelas vidas de gente que nem conhece.
Dá pra rir e pra chorar.
Umas mocinhas tentando ser dondocas, com bunda mole, peito à mostra, com certeza cheias de estrias (tentativas pra emagrecer) e até, muito chatamente com outras marcas que as mulheres mais antigas custavam a ter (celulite).
Ainda bem que não se achegam a quem fica olhando e fazem xixi em suas bases.
Assim fosse e eu já teria sido “premiada” muitas vezes.
Quando cheguei aqui, achava que estava chegando no Paraiso sonhado. Aposentada, em uma casinha branca com terraço na frente, gente sentada no portão conversando a noite.
E era assim. De repente tudo mudou. Nem tem gente no portão.
As frentes das casas viraram muros com cercas elétricas, com plaquinhas avisando sobre segurança eletrônica 24h.
Credo, nem sei. Se gostaria de ser o cachorrinho que é o único que dá uma saidinha após o anoitecer, ou o poste que fica lá exposto a tudo mas pode ainda ficar lá.
Com guarda ou sem guarda.
TB SAUDADE do SNOW.. e essa foto dele com o jabuti é demais..linda crônica, novamente como objeto inanimado, na mesma linha do manequim, que eu nunca esqueci. Beijo, Carol