A nova ortografia

 

                        A famigerada reforma ortográfica já corre solta como um cavalo bravio desde o início deste ano, mas só hoje, finalmente, a ABL (Academia Brasileira de Letras) lhe põe o laço com a nova versão do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), que registra a forma oficial de escrever as palavras. O novo VOLP fora prometido para o início de fevereiro, atrasou, mas na verdade era imprescindível que estivesse pronto e à disposição de todos desde o primeiro dia em que o acordo entrou em vigor no Brasil.

 

                        Tudo isso reflete muito bem como as coisas acontecem por aqui. Apressadinhos e vanguardeiros (talvez não seja lá um grande feito estar na vanguarda do atraso), quisemos sair na frente de todos os demais países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), dos quais apenas Brasil, Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe já ratificaram o acordo, firmado em 1990, faltando ainda a adesão de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste. E nenhum outro país sequer tem data ou prazo estabelecido para pôr em prática o acordo.

 

                        A reforma me parece uma bobagem ou nonada, para lembrar do termo arcaico vivificado por Guimarães Rosa. Haveremos de sobreviver a ela, como sobrevivemos às anteriores, e pouco a pouco nos acostumaremos com as modificações, que a princípio se afiguram rebarbativas.

 

                        Eu, por exemplo, embora não sejam do meu tempo, teria muito mais confiança em comprar remédios em uma “pharmacia”, e mais respeito e temor por um “phantasma”, sem dizer que “hontem”, com seu “h” precedente, me provoca uma imediata nostalgia do dia que passou. O trema já estava irremediavelmente desprestigiado, e a sua eliminação oficial foi uma das poucas medidas práticas da reforma, mas convenhamos que “lingüiça” parece muitos mais apetitosa, com o “g” representativo da sua forma contorcionista seguido do “ü” com trema, como que polvilhado de grânulos de sal ou de uma boa pimenta do reino ou calabresa, moída na hora.

 

                        Minha filha caçula Júlia, quando ainda pequenina, demonstrava vocação para filóloga, embora hoje, na flor dos seus dezenove anos, esteja a caminho da se tornar psicóloga, enveredando pelos escaninhos da mente humana, muito mais complexos e penosos do que o mundo das palavras, que é vasto mas se abre prazerosamente para todos os que se aventuram a explorá-lo.

 

                        Logo que começou a falar com maior fluência — e o fez precocemente —, Júlia se impressionava com certas palavras, queria modificar algumas e até criava outras. Deveria ter anotado todas as suas cogitações filológicas, que muito me divertiam e agradavam. Talvez percebendo isso, frequentemente ela vinha até mim com alguma novidade ou questão para conversarmos a respeito.

 

                        O primeiro de seus inconformismos ocorreu quando a nossa casa estava sendo pintada e ela acompanhava, fascinada, o entra e sai do pintor, com suas latas de tintas, a mistura dos pigmentos para obter a cor escolhida. Perguntou-me então por que ele era chamado de “pintor”. Não satisfeita com a resposta óbvia de que se tratava de alguém que “pintava” a casa, havendo ainda o artista que “pintava” quadros, como o avô paterno dela, contestou dizendo que eles “tintavam” a casa ou os quadros e por isso deveriam ser denominados “tintores”.

 

                        De outra feita, vendo as figuras de um livro infantil em que crianças pretendiam abrir um buraco para sair na China ou no Japão, veio me mostrar um desenho do “buraco” dizendo-me que na verdade era um grande “furo” e por isso deveria chamar-se “furaco”.

 

                        A última de que lembro agora (mas houve várias outras) foi numa ocasião em que, passando alguns dias numa casa de campo, saí com ela à noite pelas imediações e ela viu pela primeira vez um vaga-lume (que com a reforma ortográfica, segundo parece, passará a ser escrito sem o hífen, “vagalume”). Depois de indagar e saber que “lume”, no caso, significava luz, brilho, clarão, não se conformou: o bichinho deveria chamar-se então “apaga-lume”. Para provocá-la, disse-lhe que o inseto não só apagava como acendia, mas ela não se deu por vencida, e redarguiu que então poderia chamar-se “acende-apaga-lume” ou “pisca-lume”. Prudentemente, preferi me calar e  omitir  que ele é conhecido ainda como caga-lume, caga-fogo, cudelume e pirilampo.

 

                        A pequena Júlia, posta diante da nova ortografia, talvez me saísse com esta:

 

                        ─ Não se trata de nova ortografia, mas sim de uma “outragrafia”.

3 comentários

  1. Júlia Gama
    19/03/09 at 20:36

    Papi,

    Fiquei muito feliz com a postagem em minha homenagem. Eu me lembro pouca coisa ou quase nada da minha infância e tudo fica mais bonito quando você me conta ou escreve coisas lindas como essa. Estou com muita saudade de você.
    Te amo a cada dia mais.
    Beijos

  2. bellgama
    20/03/09 at 10:12

    A Júlia é a mais fofa de todas as fofas…

  3. Sonia Kahawach
    14/04/09 at 15:53

    Pelo que tenho visto aqui neste blog, pois tem muitos e muitos anos que não tenho o privilégio de conviver com a família aí de Ribeirão, pra se falar em fofuras fica difícil indicar qual a mais fofa entre as três filhas que lhe aplaudem com tanto carinho.
    Parabéns!

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