“Brasil está vazio na tarde de domingo, né?
olha o sambão, aqui é o país do futebol
Brasil está vazio na tarde de domingo, né?
olha o sambão, aqui é o país do futebol.
No fundo desse país
ao longo das avenidas
nos campos de terra e grama
Brasil só é futebol
nesses noventa minutos
de emoção e alegria
esqueço a casa e o trabalho
a vida fica lá fora
dinheiro fica lá fora
a cama fica lá fora
família fica lá fora
a vida fica lá fora
e tudo fica lá fora.“
(Aqui é o País do Futebol, Milton Nascimento e Fernando Brant)
O retorno de Ronaldo aos campos de futebol, ainda mais envergando o manto glorioso do Corinthians, foi transformado num grande espetáculo pela mídia marqueteira, sempre ávida em projetar acontecimentos de algum interesse ou apelo popular a uma dimensão “histórica”, “monumental”, “imperdível”, para assim poder explorá-los ao máximo, fomentando o público e via de consequência incrementando a receita e os patrocínios comerciais. Trata-se, nada mais nada menos, do que pôr em prática o círculo virtuoso, ou vicioso, do capitalismo: estimula-se o consumo para que o consumo açule o lucro.
Quantas “lutas do século” e “jogos do século” já foram propagados e ainda o serão?
A despeito disso, como todo amante do futebol (hoje, sou muito mais isso do que “torcedor”), confesso que me comovi com o esforço e a luta de Ronaldo , já consagrado e milionário, para se recuperar de mais uma lesão gravíssima e regressar aos gramados. Mesmo não sendo corintiano, vibrei com aquele gol no finalzinho do jogo contra o Palmeiras.
Embora dois gols e alguns minutos em campo ainda sejam insuficientes para se proclamar a “volta do Fenômeno”, o “renascimento das cinzas” ou “o voo da fênix”, bem como para justificar as inefáveis mesas redondas, em que pretensos críticos e especialistas pontificam ou “repercutem” durante horas sobre o momentoso assunto, é consabido que o esporte encerra significados míticos e cumpre um papel fundamental na elaboração do humano.
É bastante conhecida e muito interessante a analogia entre as partidas dos esportes coletivos, disputadas por times ou equipes, com uma guerra ou batalha simbólica, em que dois exércitos, com suas bandeiras, suas cores, seus hinos e soldados, se enfrentam sob a expectativa e o estímulo de sua “nação” de torcedores, que se rejubilam nas vitórias e se prostram nas derrotas. Pena que muitos levem a sério tal encenação, odeiem realmente os adversários e se comportem como bárbaros e selvagens nos estádios.
Em conversas de botequim, sempre descompromissadas e galhofeiras, venho alinhavando uma tosca teoria sobre o futebol e seu mundo próprio configurarem uma epopeia contemporânea, com muitos de seus elementos tradicionais, deuses, semideuses, heróis, vilões, eventos extraordinários, trágicos ou recompensadores.
Já se disse há muito que as antigas epopeias seriam incompatíveis com a vida moderna, o que talvez explique ou empreste sustentação a esta ideia do futebol como uma nova epopeia ou a transmigração desta para os nossos tempos.
Tal como a poesia (Ilíada, Odisseia, Eneida, Os Lusíadas etc.), o antigo teatro grego tomava da épica para compor suas tragédias, consideradas como o mais nobre dos gêneros literários, e cujos maiores vultos, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, teriam escrito mais de trezentas peças, a maioria delas perdidas para sempre. Felizmente nos restaram algumas célebres e magníficas, como Prometeu Acorrentado, Édipo Rei e Medeia, para citar apenas uma obra de cada qual daqueles autores, respectivamente.
As tragédias, fundamentadas na mitologia helênica (uma das concepções mais admiráveis já produzidas pela humanidade na busca de explicar os mistérios da existência), são a expressão desesperada do homem, que luta contra todas as adversidades e quase nunca consegue evitar a desgraça. Assim também no futebol, em que as conquistas de campeonatos, as grandes vitórias são excepcionais. Haverá apenas um time vencedor, e todos os outros, e seus torcedores, amargarão inapelavelmente a desdita da derrota.
No teatro grego, as tragédias eram constituídas em cinco atos (os “tempos” da partida de futebol ou as “rodadas” ou “fases” dos campeonatos ou torneios) e, além dos atores (os jogadores), intervinham o coro (os narradores, comentaristas e repórteres, as comissões técnicas) e a plateia (as torcidas). Ao longo da representação, os atores provocavam sentimentos e reações no coro e na plateia, a qual respondia, concordando ou discordando, cantando com o coro.
Nesse processo de projeção/identificação entre mitos e a realidade, em que se envolvem homens (os jogadores comuns), deuses (cartolas, árbitros e seus assistentes ou “bandeirinhas’, capazes de interferir de modo discricionário no desenrolar da partida ou do campeonato), semideuses (os craques consagrados) e heróis (aqueles jogadores que mesmo não sendo grandes craques decidem um jogo ou campeonato), a plateia (os torcedores) é conduzida — pela paixão, pelos temores e pelas aflições — à purgação de suas emoções e à catarse final.
Cabe lembrar, ainda, que a tragédia, assim como a comédia grega, nasceu das festas dionisíacas (consagradas a Dionísio, deus do vinho) que propunham a embriaguez, estado que permite o distanciamento do real e a entrada numa outra dimensão.
Não será também o futebol uma festa dionisíaca e inebriante, que nos empolga a todos (notadamente o povo brasileiro), nos redime e nos dá força para superar as vicissitudes da vida e marchar adiante?
José, para onde?
Com o nível do futebol brasileiro atual, o Ronaldo, mesmo jogando 30 minutos por partida, fará o time da marginal sem número chegar entre os três primeiros colocados do Brasileiro desse ano. Com o nível do futebol latino, se continuar no Tatuapé em 2010, o time sem estádio pode chegar a uma inédita final de Libertadores. Talvez a crise possa trazer alguma mudança, mas a teoria de que os ótimos jogam na Europa, os mais ou menos na Ucrânia e Turquia e os fracos aqui, na Argentina e México deve continuar ao longo dos próximos anos.
Realmente, o mundo do futebol pode representar hoje o que as batalhas eram na antiguidade (conquistas de poder, de terra, de gente…)
E a volta do Fenômeno traz um momento importante nessa representação, devidamente instigada pela mídia.
Eu, sãopaulina, assistindo jogos do “Timão”, pra ver o Ronaldo… pode? Mas não se trata de uma batalha comum: a luta travada pelo Fenômeno desperta em nós a confiança de que, insistindo, conquistamos os louros. Imagino que cada brasileiro possa ver nele inspiração para enfrentar bravamente o cotidiano.
No caso dele, ocorre o restabelecimento do mito… mas tinha que ser no Corinthians???
Muito bom. Mas agora estou esperando vc dar sequencia na metáfora. Com a comparação já enunciada pra nós, seus ouvintes e leitores curiosos. Ronaldo seria Sisífo? Romário, Baco? (ou Edmundo)…Prometeu, agora cumpra. Beijo, Carol