No comentário que deixou no post sobre os aspectos épicos do futebol, a Carol (que é uma das mulheres que mais entendem e sabem “ver” o futebol, dando banho em muito marmanjo) cobra de mim que prossiga no tema, fazendo um paralelo entre os jogadores e as figuras mitológicas. Chega ela a propor algumas comparações interessantes, como a sina de Ronaldo e Sísifo.
Vários amigos que leram o mesmo post também me estimularam a voltar ao assunto, o que bem revela, não a qualidade deste escriba ou da “teoria” exposta, mas o interesse que o futebol suscita e como ele faz parte do nosso imaginário.
Confesso que não pretendia retomar aquelas cogitações, as quais, como já ressaltei, não passam de entretenimento de mesa de bar, sem maiores pretensões. Aliás, este blog tem me servido especialmente para divertir, registrando e compartilhando ideias ou sentimentos que me ocorrem e que antes se perdiam numa conversa solta, ficavam guardados comigo ou até mesmo eram esquecidos por mim.
Já ouvi de alguns teóricos e escritores pretensiosos que escrever é fácil ou é impossível. Não concordo em absoluto com isso, que considero mera boutade. Escrever é um processo contínuo de aprendizado, menos penoso para alguns, mas que sempre exige esforço e dedicação. Autores extraordinários e consagrados, como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos, confessadamente escreviam com tormento, corrigindo e emendando seus textos de modo quase obcecado. Jorge Luis Borges dizia que muitas vezes publicava para se libertar do que havia escrito, e não ficar a retocar ou modificar continuamente. A propósito, como uma das epígrafes deste blog tomei emprestado os versos de João Cabral em que ele alerta: “Escrever jamais é sabido;/O que se escreve tem caminhos;/ Escrever é sempre estrear-se/ e já não serve o velho ancinho”.
Para mim, escrever aqui tem sido acima de tudo divertido e prazeroso. Como parece que o mesmo se da com alguns que me leem, arrisco-me a atender aos pedidos.
Antes, porém, uma ressalva. A Mitologia Greco-Romana sempre me fascinou, mas sobre ela tenho conhecimentos triviais, estando muito longe de ser um especialista. Assim, é com o esse precário saber, sem me aprofundar em pesquisas, já que não tenciono escrever um artigo acadêmico nem erudito, que me lanço à tarefa.
Comecemos pelo maior de todos (que me perdoem os hermanos argentinos): Pelé. Além da sua classe inigualável e maestria, foi um atleta exemplar, cumpridor de suas obrigações profissionais e das regras estabelecidas (aliás, muitos o criticam por isso). Mesmo na vida pessoal (apesar de um ou outro tropeço, que faz parte da condição humana) mantém uma conduta digna e honrada, sempre revelando grande consideração e carinho pelos pais, “Seu” Dondinho (que, segundo afirma, teria sido melhor jogador do que ele, não fosse alijado do futebol por uma contusão incurável à época) e “Dona” Celeste. Penso nele então como Enéas, príncipe e herói troiano que depois de combater leal e corajosamente os gregos, ao se dar conta da inevitabilidade da derrota, fugiu levando às costas o velho pai, a quem, tendo falecido, desceu aos infernos para procurar. Participou ainda de muitas outras batalhas, até matar o seu rival Turno, rei dos rútulos, fundando, em seguida, a cidade de Lavinium. Após quatro anos de reinado tranquilo, teve de sustentar sangrento combate com os mesmos rútulos, no qual desapareceu, dizendo-se que a sua mãe o arrebatou para o céu (“Dona” Celeste).
Maradona, o deus argentino, tem algo de Ulisses ou Odisseu, rei de Ítaca, retratado como ardiloso e grande estrategista, armador de intrigas e conspirações, tendo sido o autor ou um dos autores do logro do famoso Cavalo de Tróia (la mano de Dios…). Vencida a guerra, perdeu-se no caminho de volta para casa (o descaminho das drogas trilhado por Maradona). Sofreu inúmeros dissabores, mas sobreviveu graças à sua sagacidade, até finalmente retornar ao seu reino em Ítaca. Nesse ponto um pequeno descompasso, mas que, mesmo na diferença, os aproxima. Consta que ao voltar para Ítaca, disfarçado de mendigo, Ulisses a princípio não foi reconhecido. Maradona, ao contrário, jamais deixou de ser reconhecido, até mesmo de modo exagerado, na Argentina, onde é idolatrado a ponto de haver sido fundada e se achar em plena atividade a Igreja Maradoniana, que já contaria com 120 mil membros e de cujos dez mandamentos constam as seguintes pérolas: “Declararás amor incondicional a Diego e à beleza do futebol”; “Espalharás os milagres de Diego por todo o universo”; “Usarás Diego como teu segundo nome”; “Chamarás de Diego teu primeiro filho” (Revista Playboy, fevereiro de 2009, Segura na mão de Diego e vai…, matéria de Jonathan Franklin, com fotos de Morten Andersen e Martin Schiappacasse, pág. 70/72) . Entre as várias camisetas que pululam nas ruas e lojas de Buenos Aires com dísticos sobre Maradona, duas das mais populares são aquelas que estampam: “O céu pode esperar”; “O Papa é alemão, mas Deus é argentino” (Ué, mas Deus não era brasileiro?).
Para não me alongar em demasia, resumo alguns outros paralelos.
Ronaldo, o Fenômeno, excepcional jogador, e seus joelhos frágeis lembram o bravo e temível Aquiles com seu calcanhar vulnerável.
Zico, extremamente talentoso, mas de compleição mirrada, foi um dos primeiros jogadores a cumprir um duro programa especialmente elaborado para lhe fortalecer o físico, o que pode ser comparado a Hércules e seus doze trabalhos.
Romário, craque indiscutível em campo, porém sempre irreverente, alegre e malicioso, um autêntico hedonista, seria Dionísio ou Baco, deus do vinho, das festas e do prazer, ou então um dos Sátiros que compunham o séquito de Dionísio.
Garrincha, o mais trágico de todos, cuja vida, do sucesso ao infortúnio, remete a Édipo.
A nossa Marta, três vezes eleita a maior jogadora do mundo, seria a poderosa guerreira Ártemis ou Diana.
No Olimpo (a Fifa), Zeus, o rei e governante de todos os deuses, é hoje encarnado por Joseph Blatter, mas já o foi pelo compatriota João Havelange. Ricardo Teixeira, presidente da CBF, e seu caráter ambíguo, assemelha-se a Poseidon ou Netuno, considerado um deus traiçoeiro, pois os gregos não confiavam nos caprichos do mar.
Por fim, os que verdadeiramente amamos o futebol (e não aqueles bandos de delinquentes que se intitulam torcidas organizadas), somos punidos, como Prometeu, por roubar o fogo sagrado (que é o próprio futebol) dos deuses, e condenados a ter o fígado devorado a cada torneio, campeonato ou copa do mundo em que nossos times ou nossas seleções competem, ou talvez ainda, como Sísifo, a recomeçar a cada ano o trabalho interminável de empurrar morro acima a bola esperançosa dessas nossas equipes queridas, para vê-la rolar abaixo no final de cada temporada, mesmo quando nos sagramos campeões, mas temos de começar tudo de novo para o desafio seguinte.
Haverá muitas outras e melhores associações. Aos que me lerem, deixo aqui a proposição de fazê-las em seus comentários e enriquecer esta brincadeira.
Adorei a aula…o assunto rende mesmo. E as comparações estão em cima do lance. beijo, Carol
Na verdade, pensei em Ronaldo como Fênix, “eternamente” ressurgindo das cinzas… Afinal, quantas vezes ele já esteve “acabado”, moral e/ou fisicamente, e voltou? Não me canso de admirá-lo pela perseverança e audácia. Mas a comparação com Aquiles também foi perfeita! Ambos com seus pontos fracos. Pra mim, Ronaldo é um herói a parte, da “mitologia nacional” (a saga dos brasileiros que “não desistem nunca”…) Por isto gosto tanto de vê-lo jogar, ressurgindo, renascendo a cada gol.
Só não gostei da comparação Ulisses/Maradona. Porque Ulisses sempre foi o meu herói favorito; não o vejo como o espertalhão que muitos apregoam, inclusive sendo retratado dessa maneira no filme Tróia. Pra mim, “Penélope” nos sonhos de infância, Ulisses apenas queria voltar pra casa… as dificuldades que superou no longo caminho de volta retratam a força da sua vontade em regressar, mais que testando, depurando, a sua fibra.
Agora, Romário/Baco foi perfeito! E o “hercúleo” Zico, também!
Mas, voltando ao início, que me perdoem as demais estrelas, mas Ronaldo merece um Olimpo só pra ele nos céus do Brasil…
Caríssima Lilian,
Obrigado uma vez mais por aceitar o desafio e acrescer com seus comentários sempre inteligentes a minha inacabada analogia. Não sabia que você era tão fã assim do Ronalducho. Mas ele realmente tem sido um exemplo de força de vontade. Acontece, porém, que a fênix é uma ave fabulosa da tradição egípcia e não da mitologia grega.
Também gosto muito de Ulisses, mas ele era sim matreiro e ardiloso. Os sofrimentos que enfrentou na volta para casa o redimiram. Aliás, na guerra de Tróia (deflagrada pela paixão arrebatadora entre Páris e Helena), os troianos se portaram com muito mais dignidade e altivez do que os gregos e seus aliados. Por isso mesmo, perderam a guerra…
Um abraço e continuo contando com sua participação.
Prezado Professor:
Por essas e por outras, é que gostei tanto daqui…
Ainda tenho muiiiiiito o que aprender com o senhor. Além da ótima qualidade dos textos! Permita-me transcrever uma citação de que gosto bastante:
“Um livro é a prova de que os homens são capazes de fazer magia.” Carl Sagan