Posts from março, 2009

Brasileiro, Profissão Esperança (Cântico Negro)

 

                        Ao remexer nos meus discos, encontrei um CD do qual ainda nem havia tirado o invólucro. Lembrei-me de tê-lo comprado há algum tempo, em São Paulo, se não me engano na Livraria da Vila, num impulso de emoção e nostalgia. Já o tivera antes, quando do lançamento, num velho e bom LP, que acabei perdendo (provavelmente emprestei a alguém, que não me devolveu).

 

                        Trata-se da gravação ao vivo do espetáculo Brasileiro, Profissão Esperança, escrito ou organizado por Paulo Pontes, em sua segunda montagem, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, e direção de Bibi Ferreira, que fez à época (1974) um sucesso estrondoso no Canecão.

 

                        Dolores Duran e Antônio Maria são as personagens do show musical e através deles, de suas músicas e textos, somos levados a vida boêmia do Rio de Janeiro, na década dos anos 50. Ao que consta, Dolores e Maria sequer se conheceram, mas têm muito em comum, na paixão de viver, no horror à solidão, na busca incessante do amor, no gosto pela noite e pela bebida. Só poderiam morrer da mesma forma, fulminados pelo coração desmedido.

 

                        Antonio Maria foi casado com Danuza Leão, que se queixa de ter sofrido muito com o temperamento e o ciúme dele. Ela deixou Samuel Wainer, fundador, entre outros, do jornal Última Hora, para viver com Antonio Maria, então simples cronista do jornal do ex-marido.

 

                        Dolores Duran, bem morena e rechonchuda, era adorada pelos amigos e músicos da noite, apaixonava-se muito, namorava, mas sempre foi muito infeliz no amor.

 

                        Sobre ambos, posso contar dois episódios que cada um protagonizou com Vinicius de Moraes, que não são inéditos, mas que ouvi relatado com o sabor e a verve do próprio poetinha, e bem demonstram o seu jeito de ser e a sua generosidade.

 

                        Certa feita, Vinicius e Antonio Maria voltavam para casa pela orla do Rio de Janeiro, num carro conversível do segundo, quando o dia já amanhecia. Estacionaram o automóvel defronte da praia de Copacabana e ficaram a ver ao longe um grupo de velhinhos, já então adeptos do estilo de vida saudável, que resfolegavam e balançavam as carnes flácidas na ginástica à beira mar.

 

                        Antonio Maria encara o companheiro e o conclama:

 

                        — Poesia (era assim que tratava Vinicius)!

 

                        — Fala meu Maria (era assim que Vinicius tratava o “Menino Grande”)

 

                        — Vamos fazer aqui e agora um pacto definitivo: jamais faremos qualquer esforço físico desnecessário durante toda a vida!

 

                        Cumpriram religiosamente o prometido.

 

                        Em relação à Dolores Duran, a linda música que veio a se chamar Por Causa de Você, e se tornou um clássico, fora composta por Antonio Carlos Jobim para Vinicius colocar a letra. Ao ouvir a melodia executado pelo mestre Tom e com ela se encantar, Dolores apanhou um guardanapo e de enfiada escreveu a letra, que caiu como uma luva. Alguns dias depois, Vinicius reencontrou-se com Jobim, trazendo a letra já pronta anotada num papelucho guardado no bolso. Soube então pelo constrangido parceiro da letra feita, atropeladamente, por Dolores. Quis ouvi-la e ao final, rasgou a sua própria letra, sem mostrá-la ao Tom e disse:

 

                        — Fica com a da menina.

 

                        Reouvir agora o disco e reviver o espetáculo foi uma verdadeira delícia. Como sempre o trabalho de Paulo Pontes é meticuloso e exato, mesclando as músicas e os textos de cada qual, de modo a estabelecer um diálogo entre eles que vai num crescendo arrebatador.

 

                        Não obstante, lá pelas tantas, de um modo aparentemente desconexo, introduz numa fala de Paulo Gracindo o poema Cântico Negro, do poeta português José Régio. Mas quando Gracindo começa a dizê-lo, entendemos o porquê. O espetáculo até então se desenrola com destaque para as canções interpretadas magnificamente por Clara Nunes, apenas pontuadas por algumas intervenções sempre bem colocadas, mas breves, de Gracindo. É chegada então a hora do grande mestre fulgurar com a força do poema.

 

                        Já anotei que tenho restrições à maioria dos atores ou atrizes que se põem a declamar poemas, buscando encarnar uma personagem que não existe. A personagem é o próprio poema a ser dito (também não gosto dos termos “declamar” ou “recitar”, que me remetem às menininhas faceiras da “Batatinha quando nasce…”) no seu ritmo e na sua emoção próprios. Paulo Gracindo faz isso com destreza ímpar.

 

                        O poema Cântico Negro foi um dos primeiros que me levaram a um paroxismo de emoção, quando ainda ginasiano, em São Joaquim da Barra, ouvi-o ser dito por outro grande e inesquecível ator, Sérgio Cardoso. Tenho, ainda, uma gravação que adoro do poema, na voz do português João Vilaret, com a pronúncia típica lusitana. De tanto ouvir esses mestres, ouso afirmar, sem falsa modéstia, que digo o poema com alguma competência, melhor do que muita gente.

 

                        Pretendendo trascrevê-lo aqui, lembrei-me de que constava de um antigo livro sobre literatura portuguesa, de autoria de Massaud Moisés, de que me utilizava na escola e que guardo com carinho. Fui apanhá-lo na estante e outra emoção me apanhou. Havia me esquecido que o livro me fora presenteado pelo meu avô materno, figura encantadora, inteligente  e autodidata, sobre quem ainda preciso escrever neste blog. Eis a dedicatória que ele me fez, mantidas a grafia e a formatação originais:

 

Ao meu querido neto,

of. esta magnífica obra

para que n’um futuro

não muito distante, adquira

uma bôa cultura, tão bôa, quanto a deste

admirável autor.

Com as bênçãos do

vovô

Tufy

15/5/967

 

 

 

 

Cântico Negro

 

 

José Régio

 

 

 

Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: “vem por aqui!”

 Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: “vem por aqui!”?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?…

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

 

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!

 

 

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José Régio  (pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira)