Posts from março, 2009

Leite Derramado

 

                        Recebi nos últimos dias, via internet, de livrarias onde costumo comprar, várias ofertas do pré-lançamento do novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado.

 

                        Por razões de marketing, quase nada se sabia sobre o tema do livro. Ontem, finalmente, a Folha de S. Paulo publicou uma extensa matéria sobre o livro (caderno Ilustrada, O bruxo do Leblon, E1), com resenhas favoráveis de Roberto Schwarz e Eduardo Gianetti (E6 e E7).

 

                        Sabe-se agora que trata da saga de uma família, que tem início na corte portuguesa, atravessa os períodos do Império e da República Velha e desemboca nos dias de hoje, narrada por meio de fragmentos da memória de um velho centenário, de origem aristocrática, que agoniza num leito de hospital. Tanto Schwarz quanto Gianetti observam que Chico evoca características da narrativa machadiana, o que para mim desperta especial interesse.

 

                        Tenho o Chico Buarque compositor no mesmo plano dos maiores vultos da MPB de todos os tempos, como Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa e, mais recentemente, Tom Jobim, Vinicius, Edu Lobo, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, da maioria dos quais foi parceiro. Talvez esteja até mesmo um pouco acima de alguns desses.

 

                        As suas músicas e os seus versos, e ainda as suas intepretações, apesar de não ser um grande cantor no sentido tradicional, me arrebatam e me deixam com inveja  do seu talento poético e artístico, aquele tipo de inveja amorosa a que se referiu o Guilherme no seu comentário no post Cordon bleu, blanc, rouge (J”accuse…!). Seria impossível arrolar aqui as suas composições da minha preferência, tantas (ou todas) são elas. Melhor dizer que não há nenhuma música de Chico que me desagrada, apesar de ter certa birra por Morena de Angola, que acho um tanto chata.

 

                        Gosto também muito da figura humana do Chico peladeiro, ao que parece um grande amigo, cidadão participante das questões públicas, mas sempre discreto na vida pessoal, talvez um falso tímido, conquistador de belas mulheres, em cujo universo transita com rara sensibilidade, como, aliás, é decantado.

 

                        Por tudo isso, me é doloroso dizer que considero o Chico Buarque romancista muito abaixo do compositor, e que nenhum dos seus livros até agora me agradou plenamente (diria até que todos me decepcionaram), apesar do aplauso incondicional de alguns críticos (?) e das notórias “igrejinhas”.

 

                        Não é que o Chico seja mau escritor ou que os seus romances não valham nada. Longe está de ser um Paulo Coelho da vida. A sua imaginação fértil e o seu talento em lidar com as palavras são os mesmos do grande compositor. O que sinto — e reconheço que possa ser uma idiossincrasia — é que até agora os seus romances não têm “pegada”, são frouxos em várias passagens, enfim me deixam na boca um gosto amargo de incompletude, de realização falhada.

 

                        Isso aconteceu com o primeiro deles, Estorvo, mas contemporizei por se tratar de uma obra de estréia, de experimentação de um novo jeito de se expressar. Achei o segundo, Benjamim mais fraco (assim como o filme dele extraído, que nem a presença sempre marcante do grande Paulo José e a descoberta de Cléo Pires conseguiram salvar). Budapeste já me pareceu bem melhor, mas ainda com aquele travo a que me referi acima, uma boa ideia que se perde na construção do romance, para mim mais longo do que necessário, com situações que se repetem e perdem a força.

 

                        Deixo claro que, a meu ver, o Chico faz muito bem em se dedicar àquilo que mais lhe agrada atualmente, mesmo pondo de lado a música. É sabido que ele não gosta de fazer shows e longas turnês, prefere ficar no seu canto e no seu mundo (com a idade isso se acentua, como eu próprio venho sentindo). Se recebe antecipadamente dos editores para escrever, e com isso vai levando a vida que lhe apraz, é tudo o que se pode querer (e disso tenho mais um pouco de inveja amorosa).

 

                        De todo modo, aguardo com ansiedade a leitura de Leite Derramado, fazendo votos que não azede, que possa significar mais um salto de qualidade em relação a Budapeste e finalmente se apresente o escritor à altura do compositor.

 

                        Por enquanto, o Chico Buarque compositor é o Michel Jordan das quadras de basquete. Como romancista, continua sendo um Michel Jordan, mas jogando golfe.

 

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