Posts from abril, 2009

O último porco

 

                        O grande e sempre atual  Machado de Assis, em uma de suas crônicas publicadas em A Semana, nos idos de 1893, discorrendo com a ironia e o sabor característicos sobre uma parede de açougueiros (greve), louvava o vegetarismo ou vegetarianismo, e lá pelas tantas sentenciava:

 

“Morre-se de porco. Quem já morreu de alface?”

 

                        Agora, com a ameaça mundial (mais uma!) da gripe suína, parece que o velho bruxo tinha mais razão do que se pensava.

 

                        Se bem que com os pesticidas de hoje, talvez já estejamos também a morrer de alface.

 

 

 

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O último porto

 

“Toda a infelicidade do homem decorre de uma só coisa: ser incapaz de ficar sossegado no seu quarto.”

(Pascal, Pensées)

 

 

 

Andas por todas as ruas e cidades

veredas e estradas que levam a nada.

Pegas o bonde lotado sem saber o itinerário

nem onde e quando saltarás do estribo.

 

Corres pela plataforma vazia para não perder

o trem e seguir além da última estação.

Se a pressa é muita, tomas o avião, pagando em prestação.

 

Lança-te ao mar para alcançar o barco que vai ao largo,

subir clandestino à bordo, e depois de posto a ferros,

talvez te tornar grumete, marujo e imediato do capitão.

 

Ao fim e ao cabo, chegas morto e só ao último porto.

 

 

marinha

 

Carlos Drummond de Andrade e a máquina do mundo

 

“A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

 

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.”

 

(Carlos Drummond de Andrade, A Máquina do Mundo)

 

 

 

 

                        Gilberto de Mello Kujawski, a quem já me referi diversas vezes neste blog, publicou no seu site um breve comentário intitulado Drummond entre a mineiridade e a mineirice, que me perturbou. Aliás, nada melhor do que ser “perturbado” por algo que lemos, que remexe com nossas ideias, nossos conceitos ou preconceitos.

 

                        Gilberto, doce pessoa e querido amigo de todas as horas, quando escreve não tem medo de dizer o que pensa, de provocar “estranhamentos”, de nadar contra a corrente, de abordar aspectos sutis e inexplorados, de fugir da mesmice. Tais são as qualidades do verdadeiro intelectual — como o é Gilberto — que não se acomoda e, se preciso, incomoda.

 

                        Com a liberdade que nossa amizade permite, reproduzo parte do referido artigo:

 

“A “máquina do mundo” foi descrita inicialmente na literatura portuguesa por Camões (“Os Lusíadas”, canto X):

 

“Vês aqui a grande máquina do mundo,

etérea e elemental, que fabricada

assi foi do saber alto e profundo…”

 

Carlos Drummond de Andrade retoma esta imagem englobante num poema incluído no livro “Claro enigma” (1951), mas, ao contrário de Camões e outros poetas, não se deixa seduzir por ela.

Entende-se por que razão. A máquina do mundo pareceu ao poeta uma imagem excessiva, grandiosa demais, metafísica demais, desafiando sua renitente desconfiança mineira.

A máquina do mundo envolve a totalidade do universo, onde tudo se interliga e interage, e onde a parte só se explica pelo todo, remetendo-nos à “natureza mítica das coisas”.

Chamado para adentrar este “reino augusto”, o poeta, palmilhando uma estrada de Minas, reluta em responder, e, por fim, desdenha da invocação, e a máquina do mundo foi repelida.

Segundo Renato Kujawski Leite de Moraes, psicólogo junguiano, esta recusa custaria caro a Drummond. A partir do livro “Claro enigma”, aos olhos de Renato, sua poesia perde nível e sua qualidade não é a mesma.

Em carta para Lygia Fagundes Telles, expõe detalhadamente sua suspeita. Com licença do missivista reproduzimos aqui sua análise, que pode significar um passo significativo em nossa crítica literária.”

 

                        Deixo aqui de transcrever a carta, por não desfrutar da intimidade do missivista, mas quem se interessar poderá ler no site do próprio Gilberto Kujawski , que finaliza: “Será que naquele poeta maior, a mineiridade foi vencida pela mineirice? A verificar”.

 

                        Essa provocação final, que deixa a questão em aberto, e a instigante análise do psicólogo junguiano (que pelo tom da carta enviada a Lygia Fagundes Telles parece ser próximo tanto dela quanto de Drummond, o que confere mais força ao que diz), concluindo que depois do livro Claro Enigma, e em especial do poema A Máquina do Mundo (ou da postura de vida que o poema implica), a obra do grande poeta declinou e perdeu qualidade, causaram-me incômodo pela enorme admiração que sinto por Carlos Drummond de Andrade e pelo que penso representar ele na poesia brasileira.

 

                        Tanto Gilberto quanto Renato não pretendem negar a importância e a grandeza de Drummond, antes deixam claro isso, mas se propõem ou nos propõem a enfrentar ou decifrar um enigma — que nada tem de claro — sobre o marco e a razão da suposta perda de qualidade da poesia drummoniana, que como observa o segundo, com confessada relutância, passa a ter “(…) uma nota prosaica, banal, que se faz ouvir com maior intensidade quanto mais distante o poema está de 1951, do rompimento com a máquina”.

 

                        Sem veleidades de crítico literário, não passo de um leitor assíduo, mas desordenado, movido muito mais pelo prazer da leitura do que pela aplicação e pelo estudo metódico.

 

                        Como tais e poucos atributos, e me esforçando ao máximo em pôr de lado minha paixão pelo poeta, empreendi uma breve releitura da obra de Drummond.

 

                        Desde logo uma curiosidade, que pode ter reflexo na análise de Renato Kujawski Leite de Moraes. Verifico (Poesia Completa, Editora Nova Aguilar, 2002) que o poema A Máquina do Mundo foi inicialmente publicado por Luís Martins, em 1949, num exemplar único (!), para depois ser incluído no livro Claro Enigma, de 1951. Portanto o poema antecede o livro em pelo menos dois anos (e poderá ter sido escrito antes disso ainda), tempo suficiente para que, diante da recusa da máquina pelo poeta, os demais poemas de Claro Enigma já começassem a se impregnar daquela nota prosaica ou da perda de intensidade anotadas pelo psicólogo. E, com todo o respeito à opinião ou ao sentimento deste, depois de Claro Enigma Drummond publicou diversos livros, se não superiores, pelo menos à altura daquele, e até mesmo mais inovadores ou arrojados em termos de elaboração poética, como é o caso de Lição de Coisas (1962), Boitempo (1968), As Impurezas do Branco (1973), para ficar apenas nestes.

 

                        A Máquina do Mundo, poema inquietante e objeto de reflexão e análise de diversos críticos (apontado por muitos como o melhor poema brasileiro de todos os tempos),  a bem de ver é um enigma que não se resolve ou não se revela. A sua revelação, recusada pelo poeta, importaria o ingresso ao “reino augusto” que “(…) envolve a totalidade do universo, onde tudo se interliga e interage, e onde a parte só se explica pelo todo, remetendo-nos à ‘natureza mítica das coisas’”, como bem anota Gilberto no artigo já mencionado.

 

                        Vale dizer, o poeta recusa o conhecimento excelso, místico, pleno, em que o mundo todo se oferece, superando os limites do humano.

 

                        Essa atitude de Drummond não é nova, nem se afigura pela primeira vez em A Máquina do Mundo. Muito pelo contrário, repete-se frequentemente na sua produção anterior e continuará presente depois.

 

                        No poema Cidade Prevista, de A Rosa do Povo, dizia ele: “Guardei-me para a epopeia / que jamais escreverei”. No mesmo livro se achava “poeta do finito e da matéria / cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas / boca tão seca, mas ardor tão casto” (Consideração do Poema). O tempo é a sua matéria, “o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente” (Mãos dadas, do livro O Sentimento do Mundo).

 

                        Para Drummond, no mundo de hoje não mais haveria lugar para a epopeia clássica, e a sua poesia, sob a aparência do coloquial e até do prosaico, é uma épica moderna, contemporânea, em que o mundo está sempre presente, desde o célebre Poema de Sete Faces, com que abre seu primeiro livro, Alguma Poesia, publicado em 1930: “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.”

 

                        E no crepuscular Farwell (1996), há tempo ainda para uma derradeira e amarga reflexão sobre a glória mundana — sic transit gloria mundi — no poema Duração: Eu te celebro em vão / como à festa colorida mas truncada / projeto de natureza interrompido / ao azar de peripécias e viagens / do Amazonas ao asfalto / da feira de animais. / Eu te registro, simplesmente, / no caderno de frustrações deste mundo / pois para isto vieste: / para a inutilidade de nascer.”

 

                        Segundo Massaud Moisés, citado por Annibal Augusto Gama em ensaio inédito (Mundo, capital Itabira), “Livre, pois, da sujeição de regras, a poesia dum Fernando Pessoa é tão épica quanto à de Camões, a de Carlos Drummond de Andrade quanto à de Homero ou Virgílio; identifica-os não a forma externa, o emprego do decassílabo, a presença do maravilhoso, etc, mas a comum intenção de abranger a multiplicidade dinâmica do real físico e espiritual numa só obra, numa só unidade. Avizinha-se, ainda, a circunstância de convocarem o pensamento para o interior do poema, de modo a fundi-lo com a emoção de raiz: a emoção se detém e se transfigura graças ao pensamento que a indaga e desdobra, e o individual adquire foros de universalidade. Ao contrário do poeta lírico, que não ultrapassa os limites da emoção ou do sentimento, portanto, da sua individualidade.” (Dicionário de Termos Literários).

 

                        No mesmo ensaio, em que se reporta ainda a uma arguta comunicação que lhe foi feita pelo mesmo Gilberto Kujawski sobre a poesia épica, na qual surgiu, muito antes da filosofia, a consciência do universo como uma totalidade integrada, Annibal Augusto Gama pondera:

 

“As estradas de Minas podem conduzir ao mistério, à profundidade do horizonte distante, mas sempre convém voltar ao imanente, ao que está à nosso volta, com a sua cara de todos os dias. Drummond, ao contrário de Rosa, não gostava de perder-se em transcendências. A estrada, enquanto ‘estrada’ é o caminho para o desconhecido, mas enquanto ‘de Minas’ nos remete de novo à segurança do que está e sempre esteve aí. Minas seria a imanência? Sim e não. Sim em Drummond, não em Rosa. Drummond pensava ser um homem sem metafísica. Seria? Creio que melhor seria classificá-lo como um metafísico reprimido. ‘A Máquina do Mundo’ é um poema típico não de um anti-metafísico, mas sim, de um metafísico reprimido, ‘malgré lui-même’.”

 

                        Talvez, permito-me observar, não propriamente um metafísico reprimido, mas um metafísico dissimulado, como o fingidor de Pessoa.

 

                        E ousaria dizer mais. A poesia, que é uma filosofia assistemática, e a filosofia mesma só existem e se mantêm a partir da perplexidade humana perante o mundo e a vida. Se todas as respostas fossem dadas, todo o conhecimento revelado, não mais haveria lugar para a poesia, nem para a filosofia.

 

                        Assim, ao se recusar a entrar na máquina do mundo e mergulhar por completo na compreensão de tudo, na visão abrangente do universo, Drummond preferiu seguir na condição humana e na dúvida metafísica, para que não se apagasse a chama da poesia, que é o seu mundo e a sua transcendência.

 

 

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Resmungões

 

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                        Ferreira Gullar, um dos nossos maiores poetas, e que além do mais é um grande tipo humano, com uma trajetória de vida exemplar pela coragem e coerência, reuniu algumas das suas crônicas publicadas na Folha de S. Paulo num lindo livro editado pela Imprensa Oficial/SP, com excelentes ilustrações de Antonio Henrique Amaral.

 

                        Deu ao volume o título de Resmungos, que é o mesmo da primeira crônica publicada no jornal, em cujo fecho assinala:

 

“Como o leitor já deve ter percebido, toda esta lengalenga é para sugerir-lhe que não espere demasiado deste cronista bissexto. Farei o possível para não ser chato nem gaiato demais. Dificilmente evitarei algumas críticas ácidas, pois muitas das coisas que leio nos jornais e vejo na televisão me deixam irritado a resmungar com meus botões. Aqui terei a oportunidade de fazê-lo em público. Por isso, em muitas ocasiões, o leitor não encontrará aqui crônicas propriamente e, sim, resmungos.”

 

                        Embora muitas léguas distante do talento e da verve de Ferreira Gullar, a ressalva acima cabe com perfeição para o que tenho publicado neste blog. Verifico e reconheço que em especial nos últimos escritos me tornei um resmungão, mas curiosamente tiveram eles grande receptividade entre os meus poucos e insistentes leitores, o que talvez signifique que muita gente ainda não perdeu a capacidade de se indignar e de pôr a boca no trombone.

 

                        No post Do cerco aos fumantes a outros cercos, arrolei ao acaso uma série de medidas que me parecem demagógicas e de condutas atrabiliárias e inconsequentes por parte do Estado, entre as quais a de se locupletar com os tributos cobrados de cigarros e bebidas, sem oferecer na rede pública condições e meios de tratamento para os viciados, fumantes, alcoólicos ou drogados, e também para os portadores de transtornos mentais.

 

                        Na sua crônica da semana passada, Ferreira Gullar criticou acerbamente a lei que instituiu a chamada reforma psiquiátrica no Brasil, determinando, entre outras coisas, que a internação dos portadores de transtornos mentais somente se faça em casos extremos e pelo período estritamente necessário. Com tais restrições, segundo ele, e à falta da prevista implantação em âmbito nacional  dos Centros de Atenção Psicossocial,  que viriam substituir os  hospitais psiquiáticos desativados, os pacientes pobres e seus familiares foram deixados ao desamparo, já que não dispõem de recursos para internação em clínicas ou hospitais particulares, e a rede pública não lhes oferece vagas suficientes, com o quê os enfermos acabam abandonados pelas ruas. Tem ele conhecimento de causa, uma vez que sofre o problema na própria carne, com dois casos em família.

 

                        A sua crítica recebeu alguns apoios e muitas respostas contrárias e iracundas, a maioria delas valendo-se do recurso rasteiro dos que não sabem manter a controvérsia no campo das ideias, preferindo desqualificar ou agredir o antagonista.

 

                        Mencionei ainda a incapacidade ou abulia do Estado no combate ao contrabando e roubo de armas, em garantir a segurança pública, bem como em recuperar a qualidade do ensino básico, cujo desmonte devemos à ditadura militar deflagrada em 1964 (que alguns têm a desfaçatez de qualificar como ditabranda), mas prossegue agora na República que se pretende nova,  pomposamente denominada  de Estado Democrático de Direito pela Constituição cidadã (?) de 1988.

 

                        Pois bem, vejamos algumas notícias colhidas na edição de hoje da mesma Folha de S. Paulo.

 

                        Buracos e más condições das estradas da zona rural de São Carlos (um dos mais prósperos municípios paulistas) obrigam estudantes a viajar até duas horas de ônibus para chegar à escola, sendo frequentes os atrasos e a perda das primeiras aulas (Caderno Ribeirão, C3).

 

                        A coordenadora pedagógica de uma escola da periferia de Franca (outra cidade tradicional do estado de São Paulo), por ser considerada exigente, foi ameaçada por três alunos — duas meninas de 12 e 13 anos, e um rapazola de 14 anos — por meio de mensagens de celular e por uma carta acompanhada de duas balas de revólver (mesmo caderno e página). O jornal reproduz ainda parte do bilhete enviado à professora, do qual, em apenas seis linhas truncadas destacam-se as seguintes grafias:

 

“Vc (acima do “c” há um acento circunflexo que até o computador se recusou a inserir) ñ é a pactona (?); “vamos ver se vc (também com acento circunflexo sobre o “c”) tem peito de asso”; “vamo ve de qual é (…)”.

 

                        Não bastasse a conduta de delinquentes, assim redigem jovens que, pela idade, deveriam estar no último ano do velho ginásio, agora ensino básico.

 

                        Em pleno dia, por volta das 16 horas, quatro alunas e uma professora do Instituto de Nutrição da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) foram assaltadas por um homem que, armado, invadiu a sala de aula, levando celulares e dinheiro (mesmo caderno, C7).

 

                        Para encerrar e não encompridar demais: a Assembleia Legislativa de São Paulo, que na semana anterior aprovou a lei duramente restritiva aos fumantes, descumpre às escâncaras duas leis já existentes e em plena vigência, que disciplinam o fumo nas repartições públicas. No próprio prédio da Assembleia  é permitido fumar  e até  há cartazes espalhados  que autorizam o fumo em locais proibidos por aquelas leis (mesmo caderno, C5).

 

                        Temos ou não motivos de sobra para resmungar (ao menos enquanto isso nos for permitido)?

 

 

 

 

Última flor do Lácio, inculta e bela (pobre dela!)

 

 

Para o Rockmann

(que se diverte com o amigo hipocondríaco)

 

 

 

                        Ontem, fiz uma nova radiografia para acompanhar a evolução da minha fratura de punho.

 

                        É claro que abri o envelope com o resultado antes de ir à consulta com o médico que me operou e vem tratando da famosa fratura (pelo menos neste blog).

 

                        Transcrevo, textualmente, o precioso relatório do médico radiologista:

 

PUNHO ESQUERDO AP/P/OBL

 

Fratura do terço distal do rádio, fixada com material de haste, em consolidada, sem desvios do fragmentos.

 

                        Deixemos de lado o “do fragmentos”, admitindo que a falta do “s” tenha sido mero erro de digitação.

 

                        Mas, raios o partam, o que significa, em bom português, “em consolidada”?

 

                        “Em”, preposição, exprime ideia de tempo em que algo sucede, de ação ou destino, ao passo que “consolidada” é particípio passado do verbo “consolidar”, ou seja, expressa algo que já se consumou ou se concluiu.

 

                        Há, pois, flagrante contradição nos termos. A fratura já se acha definitivamente consolidada? Ou ainda está se consolidando?

 

                        No primeiro caso bastaria escrever “consolidada” e no segundo, “ainda não consolidada totalmente”, “em processo de consolidação”, ou algo do gênero.

 

                        Em que língua afinal os médicos escrevem e se comunicam, entre si e com seus pacientes?

 

                        Talvez pela necessidade de estudarem e lerem livros ou artigos em inglês, estejam criando um novo idioma, mezzo aliche, mezzo mozzarella, ou, melhor dizendo, meio English, half Português.

 

                        Durante o meu périplo pelos consultórios, cansei de ouvir que “fiz” uma fratura “severa” (ambas as expressões chupadas do inglês).

 

                        Em primeiro lugar, não “fiz” uma fratura, eu sofri uma fratura ou fraturei o punho. A minha hipocondria, felizmente, ainda não chegou ao ponto de “fazer” enfermidades ou lesões. Posso temê-las, imaginá-las, achar que as tenho, buscar informações sobre elas, mas não cheguei à capacidade criadora de “fazê-las”.

 

                        E a minha fratura, para meu infortúnio, parece ter sido “grave” ou “complicada” como se deve dizer em nossa língua, já que “severo” em português significa “rígido”, “rigoroso”, “austero”, e “grave”, mas no sentido de “circunspecto”, “sério” “inflexível” etc.

 

                        Não sou em absoluto contrário à evolução da língua, à introdução de novos termos que a enriqueçam e vivifiquem (como é o caso de algumas gírias ou expressões populares, de termos da informática e de palavras estrangeiras para as quais não temos equivalente perfeito). Caso contrário, como o latim, o português também se tornaria uma língua morta, ou enclausurada em si mesma, de costas para o mundo globalizado.

 

                        O que me irrita é o português maltratado, vilipendiado, ignorado nas suas regras comezinhas, porque isso também mata a língua, e muito mais rapidamente, como, aliás, vem acontecendo.

 

                        Há de se registrar, por dever de justiça, que não são apenas os médicos, entre aqueles de formação superior e, portanto, com obrigação de conhecer minimamente a língua pátria, que desconhecem, desprezam ou ignoram o português. Os profissionais do Direito e também os jornalistas (para citar apenas dois ofícios que têm como instrumento básico o manejo da língua) perpetram barbaridades, escrevendo e falando de forma rebarbativa.

 

                        Comentei hoje na consulta com meu ortopedista sobre o enigma do “em consolidada”. Ele que é um bom homem, além de bom médico, talvez para não constranger o colega disse-me que se trata de um termo técnico.

 

                        Não resisti a lhe responder:

 

                        — Doutor, não se trata de termo técnico, mas sim da falta de termo e de técnica.

 

 

PS           Para os curiosos (e amigos gozadores) de plantão: segundo o ortopedista a fratura já está 95% consolidada, a recuperação vai muito bem, dentro do esperado, posso dispensar o uso da tala (ou orteo, como chamam) e reforçar a fisioterapia (quer dizer, aumentar o grau de sofrimento).

 

 

 

De cerco em cerco

 

 

                        De cerco em cerco, de cerceio em cerceio, de demagogia em demagogia, talvez seja dado o momento de recordar o poema escrito em homenagem a Maiakóvski (do qual alguns trechos muitos pensam que sejam dele mesmo).

 

 

 

No caminho, com Maiakóvski

 

 

 

Eduardo Alves de Souza

 

 

 

Assim como a criança

humildemente afaga

a imagem do herói,

assim me aproximo de ti, Maiakóvski.

Não importa o que me possa acontecer

por andar ombro a ombro

com um poeta soviético.

Lendo teus versos,

aprendi a ter coragem.

Tu sabes,

conheces melhor do que eu

a velha história.

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem:

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm

a ninguém é dado

repousar a cabeça

alheia ao terror.

Os humildes baixam a cerviz;

e nós, que não temos pacto algum

com os senhores do mundo,

por temor nos calamos.

No silêncio de meu quarto

a ousadia me afogueia as faces

e eu fantasio um levante;

mas manhã,

diante do juiz,

talvez meus lábios

calem a verdade

como um foco de germes

capaz de me destruir.

Olho ao redor

e o que vejo

e acabo por repetir

são mentiras.

Mal sabe a criança dizer mãe

e a propaganda lhe destrói a consciência.

A mim, quase me arrastam

pela gola do paletó

à porta do templo

e me pedem que aguarde

até que a Democracia

se digne aparecer no balcão.

Mas eu sei,

porque não estou amedrontado

a ponto de cegar, que ela tem uma espada

a lhe espetar as costelas

e o riso que nos mostra

é uma tênue cortina

lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo

e não os vemos ao nosso lado,

no plantio.

Mas ao tempo da colheita

lá estão

e acabam por nos roubar

até o último grão de trigo.

Dizem-nos que de nós emana o poder

mas sempre o temos contra nós.

Dizem-nos que é preciso

defender nossos lares

mas se nos rebelamos contra a opressão

é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,

por temor aceito a condição

de falso democrata

e rotulo meus gestos

com a palavra liberdade,

procurando, num sorriso,

esconder minha dor

diante de meus superiores.

Mas dentro de mim,

com a potência de um milhão de vozes,

o coração grita MENTIRA!

 

 

 

Do cerco aos fumantes a outros cercos

 

                        Nunca fumei na minha vida e tenho todos os motivos para detestar o cigarro.

 

                        Vi meu avô materno, a quem era muito ligado, ser consumido por um enfisema até que morresse aos 65 anos, com a inteligência límpida e brilhante de sempre, mas com os pulmões devastados pela doença, arfando desesperadamente e com crises de falta de ar até para se vestir ou tomar banho, para o quê necessitava de ajuda. Nos últimos tempos, nem mesmo andar conseguia, sendo empurrado numa cadeira de rodas, de um lado para o outro.

 

                        Há cerca de dois anos, a dor se repetiu com a perda da minha mãe, após longos meses de sofrimento com um câncer de bexiga característico de fumantes. Além disso, já estava ela padecendo de enfisema, como o pai.

 

                        Se jamais fumei por vontade própria, sou um fumante passivo inveterado, dado o convívio próximo, desde a infância, com familiares tabagistas (meu pai também fuma desbragadamente, e minha mulher, um pouco menos). Assim, segundo as pesquisas, tenho o risco 30% maior de desenvolver câncer de pulmão e 24% maior de sofrer infarto. Mas agora corro ainda o risco de ter câncer bucal, já que segundo estudos divulgados no jornal de hoje, os enxaguatórios que contêm álcool (os quais costumo usar) aumentam de cinco a nove vezes o perigo de tumor oral (por que então não proíbem a venda?), sendo o álcool o segundo fator de risco para a doença, depois do tabagismo!

 

                        É claro que tudo isso me preocupa, mas me preocupa muito mais as crescentes investidas do Estado, sob aplausos quase gerais, contra as liberdades do indivíduo, a pretexto de zelar pelo interesse coletivo.

 

                        O mesmo Estado que se locupleta desavergonhada e hipocritamente da altíssima tributação incidente sobre os cigarros e as bebidas e não oferece em contrapartida meios e tratamentos na rede pública para aqueles que querem deixar o vício.

 

                        O mesmo Estado que não fiscaliza o contrabando de armas de todos os tipos e calibres, não cumpre o seu dever básico de manter a segurança pública, não apreende as armas dos bandidos e, pior ainda, não consegue sequer impedir que os marginas roubem armas e artefatos das próprias forças oficiais, nem mesmo que os chefes de facções criminosas continuem a comandá-las de dentro dos presídios, mas pune o cidadão de bem,  impedindo ou dificultando ao máximo que possa ter uma arma para se defender, em casos extremos.

 

                         O mesmo Estado que criminaliza o jogo do bicho e os bingos, mas explora indecentemente todos os tipos de loteria.

 

                        O mesmo Estado que cria quotas no ensino superior, mas nada faz de efetivo para recuperar a qualidade das escolas públicas do ensino básico e assim proporcionar de fato igualdade de condições a todos, indiscriminadamente.

 

                        Vejo nisso tudo, e em muitas outras atitudes dos Estados que se pretendem democráticos e sociais, o maior de todos os perigos: o de medidas demagógicas, de apelo popular, que depois culminam no exercício do poder absoluto e arbitrário, seja de direita, seja de esquerda.

 

                        Já se veem estímulos às crianças para que se contraponham aos pais que fumam ou que bebem, que demoram no banho e gastam muita água e energia, que não reciclam o lixo, que não preservam o meio ambiente, que deixam a torneira aberta enquanto escovam os dentes ou dão a descarga sempre que vão ao banheiro, que não tomam vacina contra gripe e pneumonia.

 

                        O próximo passo será lhes dar medalhas por denunciar os pais relapsos ao Estado, como faziam os regimes fascista, nazista e comunista.

 

                        O grande romance A Peste, de Camus, é uma alegoria que permite várias interpretações. Uma das mais conhecidas é de que a peste que se abate sobre a cidade de Oran representaria os regimes autoritários, a respeito dos quais o parágrafo final nos deixa uma soturna advertência:

 

“Com efeito, ao ouvir os gritos de alegria que subiam da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. E sabia também que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

 

 

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Livraria Cultura

Livraria Saraiva

 

 

 

 

 

 

Máquinas Perfeitas

 

                        Clínica de Fisioterapia Especializada.

 

                        Pouco mais de dez horas da manhã.

 

                        A recepcionista, linda e loura, chega à porta da sala de espera e anuncia:

 

                        — Turma das dez: membros superiores, podem subir; membros inferiores, para o salão debaixo.

 

                        Vê-se que há uma lógica incontestável no direcionamento dos pacientes, acima ou abaixo.

 

                        Os convocados, como um rebanho obediente ao seu pastor, ou como criancinhas do primário, dirigem-se em fila e compenetrados para as salas respectivas, de onde irão do paraíso ao inferno (com maior tempo de permanência neste último), sob o comando de doces fisioterapeutas, todas mulheres, jovens e sorridentes.

 

                        Tirante três ou quatro moços, vitimados em acidentes de trânsito ou do trabalho, nos dois salões se formam verdadeiros conclaves da Academia Brasileira da Terceira Idade (e também da Quarta e até da Quinta), que trocam impressões e informações sobre suas dores.

 

                        Hoje os nomes são técnicos e precisos, diagnosticados por aparelhos de última geração (hérnias de disco, cervical ou lombar, distrofia muscular, artrite, artrose, osteoporose, fibromialgia), mas os males são aqueles mesmos de sempre, os achaques da velhice, que antigamente se chamavam lumbago, espinhela caída, dor nas costas ou nas cadeiras, reumatismo, fraqueza dos nervos ou dos ossos, e doíam tanto quanto.

 

                        No salão de cima, depois de uma sessão de alongamentos, massagens, ultrassom, infravermelho, os dois sessentões, com bolsas de gelo presas nos ombros, que os deixam parecidos com a vestimenta dos jogadores de futebol americano, conversam animadamente.

 

                        — E aí, Agenor, melhorou da bursite?

 

                        — A do ombro esquerdo melhorou bem, mas agora me atacou também o direito… E o seu braço, Pereira?

 

                        — Também um pouco melhor, mas ainda não consigo tocar pandeiro. E um dedo da mão direta deu de armar em gatilho!

 

                        — Nem me diga! Já desisti do violão. A artrite das mãos me mata… Até para jogar baralho está difícil. E o seu colesterol?

 

                        — Com a medicação baixou. E a pressão também está controlada. Só que mijo o dia inteiro.

 

                        A conversa segue por aí, até que depois de uma breve pausa, pontifica Pereira:

 

                        — Mas não existe máquina mais perfeita do que o homem!

 

                        — Ah, isso não existe mesmo. Podem criar o que quiser, mas máquina alguma será capaz de superar o homem, apóia Agenor.

 

                        — Só se for outra máquina criada pelo patrão lá de cima.

 

                        Ao lado dos dois, o cinquentão, que se sente quase um jovenzinho naquela linha de reparo de máquinas perfeitas, acha graça dos comentários, mas não se arrisca a rir.

 

                        Quando ele ri, dói.

 

 

 

A toda vela

 

                        Naquele tempo as pessoas morriam em casa, ao lado dos familiares. E também na própria casa o corpo era velado pelos parentes e amigos até a hora do enterro.

 

                        Passava da meia noite, e no quarto da frente da antiga casa o avô agonizava, depois de dias de sofrimento, entremeando breves momentos de lucidez com longos períodos de dormência, sob efeito das drogas, respirando com a ajuda do negro balão de oxigênio.

 

                        A avó, os filhos e filhas, noras e genros, vagueavam pelos cômodos, conversando baixinho, choramingando, aguardando o desfecho inevitável.

 

                        Os netos mais novos, alvoroçados com tudo o que se passava, a presença do médico e do padre, o entra e sai de conhecidos e vizinhos, e pelo fato de não terem sido obrigados a dormir na hora de costume, foram levados para a cozinha, aos cuidados da velha empregada, que os distraía contando histórias, enquanto coava bules e mais bules de café e fritava bolinhos de chuva.

 

                        Influenciada pela ocasião, ou porque não soubesse mesmo outras, as histórias que se sucediam eram horripilantes, sobre bruxas, fantasmas, maldições e outros eventos sinistros.

 

                        A certa altura, talvez na tentativa de preparar as crianças para a morte iminente do patriarca, explicou-lhes que no céu havia um cômodo no qual era acesa uma vela para cada pessoa que nascia. Essa vela vai se derretendo pouco a pouco, até que finalmente o pavio se apaga, e com ele a vida. As velas das crianças estavam novinhas, com a chama firme e forte, enquanto a do avô já era só um toquinho, com o pavio tremulando, prestes a se extinguir.

 

                        A curiosidade do menino quis saber como é então que havia criança que morria ainda pequenina, até mesmo ao nascer.

 

                        — É porque um vento apagou a vela antes da hora, respondeu-lhe a fabuladora.

 

                        A vela do avô se apagou naquela madrugada, e o menino carregou para o resto da vida a imagem das velas ardentes perfilhadas no céu, a se consumirem. Sempre que acendia uma vela, numa igreja ou por qualquer outra razão, jamais conseguiu se afastar dela, antes de certificar que a chama se firmava e não se apagava ao imprevisto do vento.

 

                        Navegando a toda vela para a idade do avô, pensa no que ainda resta da sua vela.

 

 

O Projeto Portinari

 

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Projeto Portinari/Museu Casa de Portinari

 

                        Cândido Portinari, um dos nossos maiores pintores (se não o maior), foi menino pobre, de família de imigrantes italianos, que vieram trabalhar na lavoura do café na nossa região e se radicaram na pequenina Brodowski, aqui pertinho, onde o menino Candinho jogava futebol, empinava papagaios, rodava pião, ouvia a banda de que o pai era maestro e tocador de tuba, corria e brincava pelas ruas de terra vermelha com a molecada (cenas que mais tarde reproduziria em seus quadros admiráveis).

 

                        De vez em quando, porém, o menino se recolhia e rabiscava seus primeiros desenhos (um leão, o retrato de Carlos Gomes) e sonhava tornar-se artista. Sua habilidade logo ficou conhecida e até mesmo o levou, ainda criança, a ser recrutado por pintores peregrinos que decoraram a antiga igreja de Brodowski (da qual nada mais resta), e o encarregaram de dar o arremate nas “estrelinhas” que fulguravam na cúpula do templo.

 

                        Com apenas quinze anos, sem um tostão no bolso, Candinho tomou o trem para o Rio de Janeiro, a fim de estudar na Escola Nacional de Belas Artes. E quanto de extraordinário esse episódio rocambolesco encerra, desde a compreensão e o sacrifício da família simples e interiorana ao deixar o menino seguir em busca do seu destino, até a coragem e convicção do rapazinho de que precisava seguir sua vocação e desenvolver seu talento.

 

                        Depois de muita luta e sacrifício, conseguiu um prêmio que o levou a Paris, onde pintou muito pouco, mas lhe desabrochou a consciência definitiva do pintor que queria ser, e de fato foi: do seu povo e da sua terra. Da sua aldeia alçou voo para o mundo e para o universal, do que é exemplo uma de suas últimas e mais portentosas obras, os Painéis Guerra e Paz que pintou para o hall de entrada do edifício-sede da ONU, em Nova York, onde até hoje se encontram, para orgulho de todos os brasileiros.

 

                        Essa grandiosa obra, concluída em 1956, custou-lhe ou ao menos lhe abreviou a vida, pois já então estava gravemente intoxicado pelas tintas e proibido pelos médicos de pintar. Preferiu contrariar as recomendações médicas a contrariar a sua arte.

 

                        Nada disso é novidade, consta de livros, biografias, ensaios e estudos sobre Portinari, mas repito aqui em singela homenagem ao filho único do grande artista, João Cândido Portinari, e praticamente reproduzindo parte da palestra por ele proferida semana passada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do campus de Ribeirão Preto da USP.

 

                        Todos que conheceram Cândido Portinari referem-se a ele como um homem amoroso, de alma pura, com profundo sentimento de brasilidade e imenso amor pelos humildes e desvalidos, com os quais assumiu o seu compromisso de artista, como bem retratam a sua vida e a sua obra. Era um verdadeiro “santo leigo”. E se os santos, ainda que leigos, têm filhos, estes só podem ser anjos, ainda que leigos. Pois João Cândido, com quem tive a grande ventura de  travar conhecimento há cerca de dois anos, por intermédio de José Márcio de Castro Alves e ouso dizer que nos tornamos bons amigos é exatamente isso, uma figura angelical, tanto no aspecto físico, quanto no espírito de abnegação e na delicadeza que irradia.

 

                        O que talvez muitos ainda não saibam seja o significado e a importância do Projeto Portinari que João Cândido passou a desenvolver há cerca de 30 anos, visando recuperar a memória e catalogar a obra de Portinari, que estava sendo esquecida e se perdendo, como quase tudo neste país, tachado, com toda a razão, de sem memória.

 

                        Desde 1979, o Projeto Portinari pesquisou, compilou e fotografou mais de 5.400 pinturas, desenhos e gravuras atribuídos ao pintor, bem como mais de 30 mil documentos sobre sua obra e vida, colhendo ainda 130 horas de gravação com depoimentos de pessoas e personalidades que conviveram com Portinari e contribuem para aprofundar a compreensão do homem, do artista e do seu tempo.

 

                        Em 2004, foi lançado o Catálogo Raisonné Candido Portinari, que se trata, segundo convenção internacional, da mais completa fonte de referência sobre a obra de um artista, e o primeiro do gênero sobre um pintor latino americano.

 

                        Além disso, o Projeto Portinari, aperfeiçoando e desenvolvendo técnicas de digitalização, conseguiu criar um verdadeiro museu virtual de réplicas digitais das obras do artista, com características excepcionais de fidelidade, colocadas à disposição de todos. Essa mesma tecnologia tem permitido o desenvolvimento de projetos paralelos de cunho educacional, cuja metodologia didática utilizada permite a estudantes de primeiro e segundo graus, dos mais longínquos rincões do Brasil, um contato direto com a obra de Portinari, de extrema valia para sua formação cultural.

 

                        A exemplo do homem, não é bom que os anjos estejam sós. E João Cândido conta com uma equipe de alguns outros anjos que o têm acompanhado na sua missão quase divina. Entre eles, permito-me destacar a figura extraordinária, cativante e incansável da professora e artista plástica Suely Avellar, que participa do Núcleo de Arte-Educação e Inclusão Social do Projeto Portinari, a quem também tive a imensa satisfação de conhecer e me tornar amigo (e que esteve em Ribeirão Preto na última semana, acompanhando João Cândido).

 

                        Com tudo isso, que é apenas uma parte daquilo que o Projeto Portinari representa e tem feito, vem ele enfrentando sérias dificuldades para se manter e dar seguimento a muitos outros planos de largo alcance social. Ainda este ano, à míngua de patrocínio suficiente, esteve em vias de encerrar ou reduzir drasticamente suas atividades a partir do mês de maio, o que seria não apenas uma perda inestimável, mas uma verdadeira vergonha nacional (entre outras tantas, notadamente na área da cultura).

 

                        Felizmente parece que à última hora o problema foi provisoriamente contornado, conseguindo-se recursos para mais um ano de funcionamento.

 

                        Um ano mais!

 

                        E depois, o que será?

 

                        Com a palavra o governo, as empresas estatais, os banqueiros, empresários e todos os demais que têm o dever cívico e moral de contribuir para a preservação e o incremento da cultura brasileira.