“A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.”
(Carlos Drummond de Andrade, A Máquina do Mundo)
Gilberto de Mello Kujawski, a quem já me referi diversas vezes neste blog, publicou no seu site um breve comentário intitulado Drummond entre a mineiridade e a mineirice, que me perturbou. Aliás, nada melhor do que ser “perturbado” por algo que lemos, que remexe com nossas ideias, nossos conceitos ou preconceitos.
Gilberto, doce pessoa e querido amigo de todas as horas, quando escreve não tem medo de dizer o que pensa, de provocar “estranhamentos”, de nadar contra a corrente, de abordar aspectos sutis e inexplorados, de fugir da mesmice. Tais são as qualidades do verdadeiro intelectual — como o é Gilberto — que não se acomoda e, se preciso, incomoda.
Com a liberdade que nossa amizade permite, reproduzo parte do referido artigo:
“A “máquina do mundo” foi descrita inicialmente na literatura portuguesa por Camões (“Os Lusíadas”, canto X):
“Vês aqui a grande máquina do mundo,
etérea e elemental, que fabricada
assi foi do saber alto e profundo…”
Carlos Drummond de Andrade retoma esta imagem englobante num poema incluído no livro “Claro enigma” (1951), mas, ao contrário de Camões e outros poetas, não se deixa seduzir por ela.
Entende-se por que razão. A máquina do mundo pareceu ao poeta uma imagem excessiva, grandiosa demais, metafísica demais, desafiando sua renitente desconfiança mineira.
A máquina do mundo envolve a totalidade do universo, onde tudo se interliga e interage, e onde a parte só se explica pelo todo, remetendo-nos à “natureza mítica das coisas”.
Chamado para adentrar este “reino augusto”, o poeta, palmilhando uma estrada de Minas, reluta em responder, e, por fim, desdenha da invocação, e a máquina do mundo foi repelida.
Segundo Renato Kujawski Leite de Moraes, psicólogo junguiano, esta recusa custaria caro a Drummond. A partir do livro “Claro enigma”, aos olhos de Renato, sua poesia perde nível e sua qualidade não é a mesma.
Em carta para Lygia Fagundes Telles, expõe detalhadamente sua suspeita. Com licença do missivista reproduzimos aqui sua análise, que pode significar um passo significativo em nossa crítica literária.”
Deixo aqui de transcrever a carta, por não desfrutar da intimidade do missivista, mas quem se interessar poderá ler no site do próprio Gilberto Kujawski , que finaliza: “Será que naquele poeta maior, a mineiridade foi vencida pela mineirice? A verificar”.
Essa provocação final, que deixa a questão em aberto, e a instigante análise do psicólogo junguiano (que pelo tom da carta enviada a Lygia Fagundes Telles parece ser próximo tanto dela quanto de Drummond, o que confere mais força ao que diz), concluindo que depois do livro Claro Enigma, e em especial do poema A Máquina do Mundo (ou da postura de vida que o poema implica), a obra do grande poeta declinou e perdeu qualidade, causaram-me incômodo pela enorme admiração que sinto por Carlos Drummond de Andrade e pelo que penso representar ele na poesia brasileira.
Tanto Gilberto quanto Renato não pretendem negar a importância e a grandeza de Drummond, antes deixam claro isso, mas se propõem ou nos propõem a enfrentar ou decifrar um enigma — que nada tem de claro — sobre o marco e a razão da suposta perda de qualidade da poesia drummoniana, que como observa o segundo, com confessada relutância, passa a ter “(…) uma nota prosaica, banal, que se faz ouvir com maior intensidade quanto mais distante o poema está de 1951, do rompimento com a máquina”.
Sem veleidades de crítico literário, não passo de um leitor assíduo, mas desordenado, movido muito mais pelo prazer da leitura do que pela aplicação e pelo estudo metódico.
Como tais e poucos atributos, e me esforçando ao máximo em pôr de lado minha paixão pelo poeta, empreendi uma breve releitura da obra de Drummond.
Desde logo uma curiosidade, que pode ter reflexo na análise de Renato Kujawski Leite de Moraes. Verifico (Poesia Completa, Editora Nova Aguilar, 2002) que o poema A Máquina do Mundo foi inicialmente publicado por Luís Martins, em 1949, num exemplar único (!), para depois ser incluído no livro Claro Enigma, de 1951. Portanto o poema antecede o livro em pelo menos dois anos (e poderá ter sido escrito antes disso ainda), tempo suficiente para que, diante da recusa da máquina pelo poeta, os demais poemas de Claro Enigma já começassem a se impregnar daquela nota prosaica ou da perda de intensidade anotadas pelo psicólogo. E, com todo o respeito à opinião ou ao sentimento deste, depois de Claro Enigma Drummond publicou diversos livros, se não superiores, pelo menos à altura daquele, e até mesmo mais inovadores ou arrojados em termos de elaboração poética, como é o caso de Lição de Coisas (1962), Boitempo (1968), As Impurezas do Branco (1973), para ficar apenas nestes.
A Máquina do Mundo, poema inquietante e objeto de reflexão e análise de diversos críticos (apontado por muitos como o melhor poema brasileiro de todos os tempos), a bem de ver é um enigma que não se resolve ou não se revela. A sua revelação, recusada pelo poeta, importaria o ingresso ao “reino augusto” que “(…) envolve a totalidade do universo, onde tudo se interliga e interage, e onde a parte só se explica pelo todo, remetendo-nos à ‘natureza mítica das coisas’”, como bem anota Gilberto no artigo já mencionado.
Vale dizer, o poeta recusa o conhecimento excelso, místico, pleno, em que o mundo todo se oferece, superando os limites do humano.
Essa atitude de Drummond não é nova, nem se afigura pela primeira vez em A Máquina do Mundo. Muito pelo contrário, repete-se frequentemente na sua produção anterior e continuará presente depois.
No poema Cidade Prevista, de A Rosa do Povo, dizia ele: “Guardei-me para a epopeia / que jamais escreverei”. No mesmo livro se achava “poeta do finito e da matéria / cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas / boca tão seca, mas ardor tão casto” (Consideração do Poema). O tempo é a sua matéria, “o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente” (Mãos dadas, do livro O Sentimento do Mundo).
Para Drummond, no mundo de hoje não mais haveria lugar para a epopeia clássica, e a sua poesia, sob a aparência do coloquial e até do prosaico, é uma épica moderna, contemporânea, em que o mundo está sempre presente, desde o célebre Poema de Sete Faces, com que abre seu primeiro livro, Alguma Poesia, publicado em 1930: “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração.”
E no crepuscular Farwell (1996), há tempo ainda para uma derradeira e amarga reflexão sobre a glória mundana — sic transit gloria mundi — no poema Duração: Eu te celebro em vão / como à festa colorida mas truncada / projeto de natureza interrompido / ao azar de peripécias e viagens / do Amazonas ao asfalto / da feira de animais. / Eu te registro, simplesmente, / no caderno de frustrações deste mundo / pois para isto vieste: / para a inutilidade de nascer.”
Segundo Massaud Moisés, citado por Annibal Augusto Gama em ensaio inédito (Mundo, capital Itabira), “Livre, pois, da sujeição de regras, a poesia dum Fernando Pessoa é tão épica quanto à de Camões, a de Carlos Drummond de Andrade quanto à de Homero ou Virgílio; identifica-os não a forma externa, o emprego do decassílabo, a presença do maravilhoso, etc, mas a comum intenção de abranger a multiplicidade dinâmica do real físico e espiritual numa só obra, numa só unidade. Avizinha-se, ainda, a circunstância de convocarem o pensamento para o interior do poema, de modo a fundi-lo com a emoção de raiz: a emoção se detém e se transfigura graças ao pensamento que a indaga e desdobra, e o individual adquire foros de universalidade. Ao contrário do poeta lírico, que não ultrapassa os limites da emoção ou do sentimento, portanto, da sua individualidade.” (Dicionário de Termos Literários).
No mesmo ensaio, em que se reporta ainda a uma arguta comunicação que lhe foi feita pelo mesmo Gilberto Kujawski sobre a poesia épica, na qual surgiu, muito antes da filosofia, a consciência do universo como uma totalidade integrada, Annibal Augusto Gama pondera:
“As estradas de Minas podem conduzir ao mistério, à profundidade do horizonte distante, mas sempre convém voltar ao imanente, ao que está à nosso volta, com a sua cara de todos os dias. Drummond, ao contrário de Rosa, não gostava de perder-se em transcendências. A estrada, enquanto ‘estrada’ é o caminho para o desconhecido, mas enquanto ‘de Minas’ nos remete de novo à segurança do que está e sempre esteve aí. Minas seria a imanência? Sim e não. Sim em Drummond, não em Rosa. Drummond pensava ser um homem sem metafísica. Seria? Creio que melhor seria classificá-lo como um metafísico reprimido. ‘A Máquina do Mundo’ é um poema típico não de um anti-metafísico, mas sim, de um metafísico reprimido, ‘malgré lui-même’.”
Talvez, permito-me observar, não propriamente um metafísico reprimido, mas um metafísico dissimulado, como o fingidor de Pessoa.
E ousaria dizer mais. A poesia, que é uma filosofia assistemática, e a filosofia mesma só existem e se mantêm a partir da perplexidade humana perante o mundo e a vida. Se todas as respostas fossem dadas, todo o conhecimento revelado, não mais haveria lugar para a poesia, nem para a filosofia.
Assim, ao se recusar a entrar na máquina do mundo e mergulhar por completo na compreensão de tudo, na visão abrangente do universo, Drummond preferiu seguir na condição humana e na dúvida metafísica, para que não se apagasse a chama da poesia, que é o seu mundo e a sua transcendência.
