Projeto Portinari/Museu Casa de Portinari
Cândido Portinari, um dos nossos maiores pintores (se não o maior), foi menino pobre, de família de imigrantes italianos, que vieram trabalhar na lavoura do café na nossa região e se radicaram na pequenina Brodowski, aqui pertinho, onde o menino Candinho jogava futebol, empinava papagaios, rodava pião, ouvia a banda de que o pai era maestro e tocador de tuba, corria e brincava pelas ruas de terra vermelha com a molecada (cenas que mais tarde reproduziria em seus quadros admiráveis).
De vez em quando, porém, o menino se recolhia e rabiscava seus primeiros desenhos (um leão, o retrato de Carlos Gomes) e sonhava tornar-se artista. Sua habilidade logo ficou conhecida e até mesmo o levou, ainda criança, a ser recrutado por pintores peregrinos que decoraram a antiga igreja de Brodowski (da qual nada mais resta), e o encarregaram de dar o arremate nas “estrelinhas” que fulguravam na cúpula do templo.
Com apenas quinze anos, sem um tostão no bolso, Candinho tomou o trem para o Rio de Janeiro, a fim de estudar na Escola Nacional de Belas Artes. E quanto de extraordinário esse episódio rocambolesco encerra, desde a compreensão e o sacrifício da família simples e interiorana ao deixar o menino seguir em busca do seu destino, até a coragem e convicção do rapazinho de que precisava seguir sua vocação e desenvolver seu talento.
Depois de muita luta e sacrifício, conseguiu um prêmio que o levou a Paris, onde pintou muito pouco, mas lhe desabrochou a consciência definitiva do pintor que queria ser, e de fato foi: do seu povo e da sua terra. Da sua aldeia alçou voo para o mundo e para o universal, do que é exemplo uma de suas últimas e mais portentosas obras, os Painéis Guerra e Paz que pintou para o hall de entrada do edifício-sede da ONU, em Nova York, onde até hoje se encontram, para orgulho de todos os brasileiros.
Essa grandiosa obra, concluída em 1956, custou-lhe ou ao menos lhe abreviou a vida, pois já então estava gravemente intoxicado pelas tintas e proibido pelos médicos de pintar. Preferiu contrariar as recomendações médicas a contrariar a sua arte.
Nada disso é novidade, consta de livros, biografias, ensaios e estudos sobre Portinari, mas repito aqui em singela homenagem ao filho único do grande artista, João Cândido Portinari, e praticamente reproduzindo parte da palestra por ele proferida semana passada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do campus de Ribeirão Preto da USP.
Todos que conheceram Cândido Portinari referem-se a ele como um homem amoroso, de alma pura, com profundo sentimento de brasilidade e imenso amor pelos humildes e desvalidos, com os quais assumiu o seu compromisso de artista, como bem retratam a sua vida e a sua obra. Era um verdadeiro “santo leigo”. E se os santos, ainda que leigos, têm filhos, estes só podem ser anjos, ainda que leigos. Pois João Cândido, com quem tive a grande ventura de travar conhecimento há cerca de dois anos, por intermédio de José Márcio de Castro Alves ─ e ouso dizer que nos tornamos bons amigos ─ é exatamente isso, uma figura angelical, tanto no aspecto físico, quanto no espírito de abnegação e na delicadeza que irradia.
O que talvez muitos ainda não saibam seja o significado e a importância do Projeto Portinari que João Cândido passou a desenvolver há cerca de 30 anos, visando recuperar a memória e catalogar a obra de Portinari, que estava sendo esquecida e se perdendo, como quase tudo neste país, tachado, com toda a razão, de sem memória.
Desde 1979, o Projeto Portinari pesquisou, compilou e fotografou mais de 5.400 pinturas, desenhos e gravuras atribuídos ao pintor, bem como mais de 30 mil documentos sobre sua obra e vida, colhendo ainda 130 horas de gravação com depoimentos de pessoas e personalidades que conviveram com Portinari e contribuem para aprofundar a compreensão do homem, do artista e do seu tempo.
Em 2004, foi lançado o Catálogo Raisonné Candido Portinari, que se trata, segundo convenção internacional, da mais completa fonte de referência sobre a obra de um artista, e o primeiro do gênero sobre um pintor latino americano.
Além disso, o Projeto Portinari, aperfeiçoando e desenvolvendo técnicas de digitalização, conseguiu criar um verdadeiro museu virtual de réplicas digitais das obras do artista, com características excepcionais de fidelidade, colocadas à disposição de todos. Essa mesma tecnologia tem permitido o desenvolvimento de projetos paralelos de cunho educacional, cuja metodologia didática utilizada permite a estudantes de primeiro e segundo graus, dos mais longínquos rincões do Brasil, um contato direto com a obra de Portinari, de extrema valia para sua formação cultural.
A exemplo do homem, não é bom que os anjos estejam sós. E João Cândido conta com uma equipe de alguns outros anjos que o têm acompanhado na sua missão quase divina. Entre eles, permito-me destacar a figura extraordinária, cativante e incansável da professora e artista plástica Suely Avellar, que participa do Núcleo de Arte-Educação e Inclusão Social do Projeto Portinari, a quem também tive a imensa satisfação de conhecer e me tornar amigo (e que esteve em Ribeirão Preto na última semana, acompanhando João Cândido).
Com tudo isso, que é apenas uma parte daquilo que o Projeto Portinari representa e tem feito, vem ele enfrentando sérias dificuldades para se manter e dar seguimento a muitos outros planos de largo alcance social. Ainda este ano, à míngua de patrocínio suficiente, esteve em vias de encerrar ou reduzir drasticamente suas atividades a partir do mês de maio, o que seria não apenas uma perda inestimável, mas uma verdadeira vergonha nacional (entre outras tantas, notadamente na área da cultura).
Felizmente parece que à última hora o problema foi provisoriamente contornado, conseguindo-se recursos para mais um ano de funcionamento.
Um ano mais!
E depois, o que será?
Com a palavra o governo, as empresas estatais, os banqueiros, empresários e todos os demais que têm o dever cívico e moral de contribuir para a preservação e o incremento da cultura brasileira.