Nunca fumei na minha vida e tenho todos os motivos para detestar o cigarro.
Vi meu avô materno, a quem era muito ligado, ser consumido por um enfisema até que morresse aos 65 anos, com a inteligência límpida e brilhante de sempre, mas com os pulmões devastados pela doença, arfando desesperadamente e com crises de falta de ar até para se vestir ou tomar banho, para o quê necessitava de ajuda. Nos últimos tempos, nem mesmo andar conseguia, sendo empurrado numa cadeira de rodas, de um lado para o outro.
Há cerca de dois anos, a dor se repetiu com a perda da minha mãe, após longos meses de sofrimento com um câncer de bexiga característico de fumantes. Além disso, já estava ela padecendo de enfisema, como o pai.
Se jamais fumei por vontade própria, sou um fumante passivo inveterado, dado o convívio próximo, desde a infância, com familiares tabagistas (meu pai também fuma desbragadamente, e minha mulher, um pouco menos). Assim, segundo as pesquisas, tenho o risco 30% maior de desenvolver câncer de pulmão e 24% maior de sofrer infarto. Mas agora corro ainda o risco de ter câncer bucal, já que segundo estudos divulgados no jornal de hoje, os enxaguatórios que contêm álcool (os quais costumo usar) aumentam de cinco a nove vezes o perigo de tumor oral (por que então não proíbem a venda?), sendo o álcool o segundo fator de risco para a doença, depois do tabagismo!
É claro que tudo isso me preocupa, mas me preocupa muito mais as crescentes investidas do Estado, sob aplausos quase gerais, contra as liberdades do indivíduo, a pretexto de zelar pelo interesse coletivo.
O mesmo Estado que se locupleta desavergonhada e hipocritamente da altíssima tributação incidente sobre os cigarros e as bebidas e não oferece em contrapartida meios e tratamentos na rede pública para aqueles que querem deixar o vício.
O mesmo Estado que não fiscaliza o contrabando de armas de todos os tipos e calibres, não cumpre o seu dever básico de manter a segurança pública, não apreende as armas dos bandidos e, pior ainda, não consegue sequer impedir que os marginas roubem armas e artefatos das próprias forças oficiais, nem mesmo que os chefes de facções criminosas continuem a comandá-las de dentro dos presídios, mas pune o cidadão de bem, impedindo ou dificultando ao máximo que possa ter uma arma para se defender, em casos extremos.
O mesmo Estado que criminaliza o jogo do bicho e os bingos, mas explora indecentemente todos os tipos de loteria.
O mesmo Estado que cria quotas no ensino superior, mas nada faz de efetivo para recuperar a qualidade das escolas públicas do ensino básico e assim proporcionar de fato igualdade de condições a todos, indiscriminadamente.
Vejo nisso tudo, e em muitas outras atitudes dos Estados que se pretendem democráticos e sociais, o maior de todos os perigos: o de medidas demagógicas, de apelo popular, que depois culminam no exercício do poder absoluto e arbitrário, seja de direita, seja de esquerda.
Já se veem estímulos às crianças para que se contraponham aos pais que fumam ou que bebem, que demoram no banho e gastam muita água e energia, que não reciclam o lixo, que não preservam o meio ambiente, que deixam a torneira aberta enquanto escovam os dentes ou dão a descarga sempre que vão ao banheiro, que não tomam vacina contra gripe e pneumonia.
O próximo passo será lhes dar medalhas por denunciar os pais relapsos ao Estado, como faziam os regimes fascista, nazista e comunista.
O grande romance A Peste, de Camus, é uma alegoria que permite várias interpretações. Uma das mais conhecidas é de que a peste que se abate sobre a cidade de Oran representaria os regimes autoritários, a respeito dos quais o parágrafo final nos deixa uma soturna advertência:
“Com efeito, ao ouvir os gritos de alegria que subiam da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. E sabia também que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”