Para o Rockmann
(que se diverte com o amigo hipocondríaco)
Ontem, fiz uma nova radiografia para acompanhar a evolução da minha fratura de punho.
É claro que abri o envelope com o resultado antes de ir à consulta com o médico que me operou e vem tratando da famosa fratura (pelo menos neste blog).
Transcrevo, textualmente, o precioso relatório do médico radiologista:
PUNHO ESQUERDO AP/P/OBL
Fratura do terço distal do rádio, fixada com material de haste, em consolidada, sem desvios do fragmentos.
Deixemos de lado o “do fragmentos”, admitindo que a falta do “s” tenha sido mero erro de digitação.
Mas, raios o partam, o que significa, em bom português, “em consolidada”?
“Em”, preposição, exprime ideia de tempo em que algo sucede, de ação ou destino, ao passo que “consolidada” é particípio passado do verbo “consolidar”, ou seja, expressa algo que já se consumou ou se concluiu.
Há, pois, flagrante contradição nos termos. A fratura já se acha definitivamente consolidada? Ou ainda está se consolidando?
No primeiro caso bastaria escrever “consolidada” e no segundo, “ainda não consolidada totalmente”, “em processo de consolidação”, ou algo do gênero.
Em que língua afinal os médicos escrevem e se comunicam, entre si e com seus pacientes?
Talvez pela necessidade de estudarem e lerem livros ou artigos em inglês, estejam criando um novo idioma, mezzo aliche, mezzo mozzarella, ou, melhor dizendo, meio English, half Português.
Durante o meu périplo pelos consultórios, cansei de ouvir que “fiz” uma fratura “severa” (ambas as expressões chupadas do inglês).
Em primeiro lugar, não “fiz” uma fratura, eu sofri uma fratura ou fraturei o punho. A minha hipocondria, felizmente, ainda não chegou ao ponto de “fazer” enfermidades ou lesões. Posso temê-las, imaginá-las, achar que as tenho, buscar informações sobre elas, mas não cheguei à capacidade criadora de “fazê-las”.
E a minha fratura, para meu infortúnio, parece ter sido “grave” ou “complicada” como se deve dizer em nossa língua, já que “severo” em português significa “rígido”, “rigoroso”, “austero”, e “grave”, mas no sentido de “circunspecto”, “sério” “inflexível” etc.
Não sou em absoluto contrário à evolução da língua, à introdução de novos termos que a enriqueçam e vivifiquem (como é o caso de algumas gírias ou expressões populares, de termos da informática e de palavras estrangeiras para as quais não temos equivalente perfeito). Caso contrário, como o latim, o português também se tornaria uma língua morta, ou enclausurada em si mesma, de costas para o mundo globalizado.
O que me irrita é o português maltratado, vilipendiado, ignorado nas suas regras comezinhas, porque isso também mata a língua, e muito mais rapidamente, como, aliás, vem acontecendo.
Há de se registrar, por dever de justiça, que não são apenas os médicos, entre aqueles de formação superior e, portanto, com obrigação de conhecer minimamente a língua pátria, que desconhecem, desprezam ou ignoram o português. Os profissionais do Direito e também os jornalistas (para citar apenas dois ofícios que têm como instrumento básico o manejo da língua) perpetram barbaridades, escrevendo e falando de forma rebarbativa.
Comentei hoje na consulta com meu ortopedista sobre o enigma do “em consolidada”. Ele que é um bom homem, além de bom médico, talvez para não constranger o colega disse-me que se trata de um termo técnico.
Não resisti a lhe responder:
— Doutor, não se trata de termo técnico, mas sim da falta de termo e de técnica.
PS Para os curiosos (e amigos gozadores) de plantão: segundo o ortopedista a fratura já está 95% consolidada, a recuperação vai muito bem, dentro do esperado, posso dispensar o uso da tala (ou orteo, como chamam) e reforçar a fisioterapia (quer dizer, aumentar o grau de sofrimento).