Posts from abril, 2009

Sobre verdadeiros e mentirosos

 

                        O post anterior me fez lembrar (e nossa memória também pode ser uma mentira ou meia verdade, pois só nos lembramos daquilo que a nossa subjetividade apreendeu e conservou), de que existe um grande número de adivinhações a respeito de um local em que alguns habitantes sempre dizem a verdade, ao passo que outros mentem sempre.

 

                        Arturo Pérez-Reverte, um extraordinário escritor espanhol contemporâneo que vale a pena ser lido e que tem publicado romances magníficos, editados no Brasil, como O quadro flamengo, O Clube Dumas, A pele do tambor, aborda isso num capítulo de outro livro seu, A Carta Esférica, e menciona uma dessas adivinhações, que na verdade se trata de um dilema.

 

                        Há uma ilha habitada só por dois tipos de pessoas: cavaleiros e escudeiros. Os escudeiros mentem e traem sempre, e os cavaleiros, nunca.

 

                        Um habitante dessa ilha diz a outro:

 

                        — Vou lhe mentir e vou traí-lo.

 

                        Quem fala isso é o cavaleiro ou o escudeiro?

 

 

A mentira do dia

 

                        Hoje, 1º de abril, é o dia da mentira no Brasil. Em vários outros países ocorre o mesmo, em datas diferentes.

                        Não se sabem ao certo as razões da instituição de um dia consagrado à mentira. Há diversas versões e explicações para isso, mas a própria multiplicidade indica a incerteza dos reais motivos. 

                        O que se pode deduzir é que se há um dia dedicado à mentira, e nenhum dia especial para a verdade, é porque em todos os demais dias prevalece a verdade, o que é uma mentira.

                        Nada mais justo, pois, do que homenagear a mentira, sem a qual a vida seria intolerável ou mesmo impossível. Começamos a mentir no primeiro bom dia que damos a cada manhã. 

                        A humanidade convive e sempre conviveu muito bem, sem maiores percalços, com a mentira. A verdade é que costuma criar problemas. Enquanto se acreditou na mentira de que a Terra era o centro do universo e que todos os demais planetas giravam ao redor dela, nada de trágico aconteceu. A Terra continuou sendo esse pequenino grão de areia a orbitar em torno do Sol, e todos seguiram vivendo e morrendo normalmente. Mas quando se meteram a dizer a verdade sobre a astronomia e o sistema solar, as encrencas começaram, cabeças rolaram e fogueiras purificadoras arderam na Santa Inquisição.

                        A ficção literária, o poeta fingidor e as artes em geral são mentiras ou artifícios, mas são por meio delas, muito mais do que da vã filosofia e dos dogmas religiosos, que o homem põe ordem no caos do mundo e consegue dar sentido à própria existência. 

                        O Professor Francisco Alberto de Moura Duarte, cientista e geneticista de escol, internacionalmente reconhecido, e que tem me dado a honra de acessar este blog, é um homem de opiniões fortes, inteligente e sagaz, com o qual de vez em quando mantenho deliciosas conversações. Um dia desses, para provocá-lo, falei sobre a precariedade ou o caráter provisório do conhecimento científico, ao que ele prontamente me respondeu que a ciência não trabalha com verdades absolutas ou definitivas. Terá ele toda a razão, mas a partir disso podemos inferir que também a mentira ou a inverdade é relativa e pode um dia tornar-se ou ser tida como verdade. Daí se dizer que a mentira é apenas uma verdade que não aconteceu (ainda).

                        Vitor Hugo comparava a verdade so sol, que não se pode olhar de frente sem cegar. Afirmava ainda que nada é mais forte do que uma verdade cujo tempo chegou. 

                        Enquanto esse tempo não chega, nos fartamos de mentiras.

 

Postscriptum:  Ao publicar este post, verifico que já estamos no dia 2 de abril, portanto o que disse no começo é mentira agora.