Posts from maio, 2009

O Corvo

 

Corvo

 

                        Impossível falar de Edgard Allan Poe num único e breve post, como o anterior, e sem registrar alguns aspectos do seu poema, O Corvo (The Raven), um dos mais famosos de toda a literatura universal.

                        Depois de sua descoberta por Baudelaire, o poema despertou o interesse geral e se tornou, pela sua estrutura inovadora, uma gênese da poética moderna.

                        O próprio Poe, no célebre ensaio A Filosofia da Composição, procurou “desconstruir” e “racionalizar” o poema, intencionando demonstrar que ao elaborá-lo o fez com absoluta frieza, com o simples emprego de recursos técnicos, contrapondo-se àqueles que sustentam que a escrita poética necessita de uma predisposição emocional, a que muitos chamam de inspiração.

                        Embora o ensaio seja brilhante e atrativo, como tudo o que Poe escreveu, a mim, como a muitos outros, fica a impressão de que o poeta o montou do fim para o começo, ou seja, o ensaio é que foi “fabricado” depois de feito o poema, com o propósito de demonstrar a sua tese.

                        Isso não significa dizer que um bom poema ― e O Corvo em especial ― não comporte e até mesmo exija um trabalho longo e penoso de aperfeiçoamento, o domínio e uso da técnica para produzir certos efeitos pretendidos pelo autor, e que distinguem a poesia da prosa. É nessa esparrela que caem muitos dos que se pretendem poetas, jovens ou velhos, e pensam ser possível fazer poesia apenas com emoções e boas intenções, bastando deitar frases em beliches para compor versos ditos modernos e “livres”, libertos das amarras da métrica. Embora exista poesia, e da boa, sem metrificação rígida, não há poesia sem ritmo, que o verso livre não dispensa e torna mais difícil manter.

                        Mesmo sendo analfabeto funcional em inglês (leio razoavelmente, mas tenho dificuldade de falar e entender o que me dizem com a rapidez e as elipses típicas dos norte-americanos), não me escapa a trabalhosa estrutura de O Corvo, com suas rimas internas, aliterações, recorrências, duplos sentidos e outros efeitos especiais, que praticamente tornam o poema intraduzível. A língua inglesa é pródiga em tais recursos, que são um tormento para os tradutores. Shakespeare é um exemplo clássico disso.

                        O Corvo tem inúmeras traduções, feitas por poetas e escritores consagrados, como o já citado Charles Baudelaire, Stéphane Malharmé, Didier Lamaison, e os nossos Machado de Assis, Fernando Pessoa, Emílio de Meneses, Gondin da Fonseca, entre outros.

                        No post anterior deixei links de acesso às traduções de Machado e de Pessoa, mas alguns especialistas consideram que a tradução mais bem sucedida para o português, com as melhores soluções rítmicas e vocabulares, é a de um jornalista mineiro, quase desconhecido, Milton Amado, feita em 1943.

                        Consta que Milton Amado teve uma vida muito parecida com a de Poe, amargurada e sofrida, pelas incompreensões e a falta de dinheiro. “A natureza torna a vida bastante dura àqueles de quem deseja extrair grandes coisas”, disse Baudelaire sobre o infortúnio de Poe.

                        Daí talvez porque a  tradução de Milton Amado, embora feita por encomenda, encontrou o tom que Poe apregoava: “um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma… tive firmemente em vista o desejo de tornar a obra apreciável a todos”, o que, de certo modo, desmente a alegada frieza racional com que teria escrito O Corvo.

 Corvo 2

                          Leia a tradução de Milton Amado           

 

 

 

 

O gótico gênio

 

“A literatura atual seria inconcebível sem Whitman e sem Poe.” (Jorge Luis Borges)

 

“Para  

Não atento que minha porção terrena

Tenha pouco da Terra em si  

Que anos de amor foram esquecidos

No ódio de um minuto:

Não lamento que os desolados

Sejam mais felizes, mais doces do que eu,

Mas que você sofra por meu destino

Que passo pelo caminho.” (Edgar Allan Poe)

 

                        As vestes negras, a estatura baixa, as mãos e os pés pequenos, a basta cabeleira e o bigode eriçado, o olhar febril e as olheiras chamam a atenção, mas não tanto quanto a cabeçorra, desproporcional ao corpo rijo.

                        Quem foi esse homem extravagante que poderia ser personagem de suas próprias histórias, fazendo companhia a um corvo melancólico, um gato sinistro, um orangotango assassino?

                        A bem de ver, seus personagens, ou o seu personagem único, o homem de nervos de aço e de percepção aguçada, que desafia os sortilégios, é ele próprio. E também suas personagens femininas, misteriosas e doentias, abaladas por uma tristeza incurável, têm muito dele mesmo.

                        Embora conhecido por apenas  alguns dos mais célebres poemas e contos de mistério e terror, a sua obra completa recheia dezessete volumes, e nem mesmo se tem ideia de quantos outros volumes foram escritos (e ainda o serão) a respeito dele.

                        Cento e sessenta anos depois da sua morte precoce, aos quarenta anos de idade, Edgar Allan Poe continua um enigma indecifrável.

                        O mito superou o homem, e ele talvez gostasse disso.

                        Um gênio ou um louco? Um visionário ou um bêbado imoral? Há quem ainda discuta sobre isso, ou busque analisar a sua obra sob o ponto de vista psicanalítico. Os períodos de atividade intensa, alternados com períodos de profunda depressão provavelmente o qualificassem hoje como um bipolar,  e tratado com as drogas miraculosas atuais viveria ajustado e improdutivo.

                        Alguns fatos, porém, são indiscutíveis: Poe foi o pai das histórias modernas de mistério e detetive, um dos pioneiros da ficção científica, sendo considerado ainda o primeiro escritor profissional e crítico literário norte-americano.

                        Até mesmo sua morte em Baltimore, permanece um quebra-cabeça sem resposta. Encontrado por um velho amigo numa taberna, em estado lastimável e delirante, vestindo roupas que aparentemente não eram suas, foi levado inconsciente ao Washington College Hospital, onde morreu quatro dias depois, no domingo, 7 de Outubro de 1849.

                        Enterrado no pátio da  Westminster Presbyterian Church em um pequeno bloco, identificado apenas pelo número 80, ali permaneceu durante 26 anos, até que, depois de uma campanha para arrecadação de fundos, o corpo foi removido para um memorial construído num ponto mais nobre do mesmo cemitério, onde se encontra atualmente.

                        Desde 1949, todos os anos, uma figura solitária, que passou a ser chamada de Poe Toaster (aquele que brinda Poe), envolta numa capa, com um chapéu preto e empunhando uma bengala com a ponta de prata, visita o túmulo depois da meia-noite, no dia 19 de janeiro, data do nascimento de Poe. Deixa sempre três rosas vermelhas e meia garrafa de conhaque.

Edgar_Allan_Poe_2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Assista à interpretação de  The Raven (O Corvo)

Leia as traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa

 

 

O grande milongueiro

 

                        Sobrevivente da máquina de escrever, usava o computador como se fosse uma, apenas para redigir seus textos, poemas que nunca mostrava a ninguém, e os trabalhos do escritório de advocacia.

                        Pouco a pouco, com o incentivo da secretária e do filho, foi aprendendo e começou a navegar timidamente pela internet, mas apenas para ler notícias ou algum artigo de interesse, pesquisar jurisprudência.

                        Detestava tudo o mais, não entendia como alguém podia perder tempo nas salas de bate-papo, nos blogs e nas comunidades virtuais.

                        Até mesmo o celular lhe parecia uma intolerável invasão de privacidade, motivo pelo qual sempre deixava o seu desligado, só o utilizando quando viajava ou precisava fazer uma ligação urgente e não havia telefone fixo por perto.

                        Ainda por insistência da secretária e do filho acabou concordando em criar uma conta de e-mail, mas apenas para mensagens telegráficas, ou para enviar e receber material de trabalho quando estivesse fora do escritório.

                        Não abria mão de escrever cartas, colocá-las no envelope e postá-las, como antigamente. O máximo que se permitia era digitar as cartas no computador, pois que a sua letra estava a cada dia pior, e nem ele próprio algumas vezes entendia o que havia escrito. Nessas ocasiões, só a secretária era capaz de decifrar os garranchos.

                         Se os grandes escritores, como Machado de Assis, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, e tantas outras figuras importantes tivessem se valido do e-mail, não teríamos os registros epistolares, que são fontes inesgotáveis e essenciais de reconstituição da vida de cada um deles, da sua época e da própria História. O que será do futuro, sem cartas, livros e jornais, tudo engolido e substituído pela mídia virtual? A própria vida talvez se torne virtual, se é que já não se tornou.

                        Mesmo a contragosto, pelo menos uma ou duas vezes por semana abria a sua conta de e-mail, na maioria das vezes apenas para limpar a caixa de anúncios publicitários, ofertas mirabolantes e  outras chateações.

                        Num desses dias deparou com a mensagem que o fez estremecer:

 

eii querido!!! nao me cansarei de falar q esse dia foi o mais lindo e mais importante da minha vidaaaaa viuu, entaaaoo, ummm bjoo na bocaaa! te amooo! apague as fotusss depois heim! rsrs (CUIDADO COM AS FOTOS ALEM DE INTIMAS MOSTRAM O MOTEL TODO INCLUSIVE O NOME) se sua esposa pega estamos perdidos rsrs

 

                        Quem lhe teria enviado aquilo?

                        Como podiam saber o seu e-mail se não o havia divulgado, a não ser para os mais próximos? 

                        Incomodado, tratou de excluir a mensagem, sem abrir as fotos que a acompanhavam.

                        Mas, nos dias seguintes mensagens semelhantes se sucederam:

 

Estou mandando nossas fotos… agora ve se não esquece de deletar depois ok, não salve nada não viu.. beijos

 

                        Deus do céu! Será que a bebedeira na noite de despedida  daquele congresso na Bahia, em que foi parar num inferninho com alguns colegas, tinha chegado a tal ponto? Não se lembrava direito do que fizera, mas um dos companheiros lhe disse de manhã quando saíam do hotel para o aeroporto:

                        Sim senhor, hem! Quem diria que ocultasse o grande conquistador que é? E um exímio dançarino de tango…

                       Com uma ressaca terrível,  achou que tudo não passava de gozação e não deu maior importância ao comentário, que havia merecido o apoio entusiástico de vários outros que participaram da comemoração.

                        Por isso não gostava de beber. Seria ele um Dr. Jekill com um Mr. Hyde nas entranhas, um fauno insaciável, um libertino sem escrúpulos nem limites, liberado pelo álcool?

                        Se sua mulher ou  famíliares soubessem disso, estava perdido!

                        Passou duas semanas de cão, lendo e apagando as mensagens, que chegavam diariamente, às vezes três ou quatro num mesmo dia.

                        Seria uma tentativa de chantagem em curso?

                        Ao mesmo tempo, roia-se de vontade de ver as fotos anexadas. Seria ele mesmo? Como estaria? O que teria feito? Quantas mulheres haveria?

                        Um dia afinal, não mais  se contendo, clicou no link das fotos.O médico e o monstro 3

                        Então ele viu.

 

 

 

 

 

 

Herdeiros do vento

 

“A história se repete. Esse é um dos horrores da História.”  (Charles Darwin)

 

                         Duzentos anos depois de haver nascido, passados cento e cinquenta anos da publicação do seu célebre livro, A Origem das Espécies, e cento e vinte e sete anos de sua morte, Charles Darwin passa muito bem, obrigado. O que me faz lembrar a velha anedota sobre o diálogo entre dois defuntos:

                        Como vai você?

                        Muito bem. Em excelente estado de putrefação!

                        Mas isso certamente não se aplica a Darwin, talvez o único pensador ou cientista cujas idéias e teorias formuladas no século XIX atravessaram todo o século XX, e prosseguem neste século XXI, sem que fossem rechaçadas, antes tendo sido convalidadas. Não se pode dizer o mesmo de outros vultos históricos não menos importantes, como Freud, Marx e até mesmo Einsten, que foram revistos, contestados ou desmentidos em muitos aspectos do que sustentavam.

                        Muito se tem falado neste ano comemorativo sobre Darwin, sua obra e a famosa teoria da seleção natural. Tais ocasiões são propícias para que também se diga muita bobagem, como a de que a seleção natural seria a responsável pelas mutações ou adaptações das espécies, dando-se como exemplo o alongamento do pescoço da girafa para que pudesse alcançar os brotos de folhas das árvores mais altas, coisa jamais cogitada ou mencionada por Darwin.

                        Outro ponto que me parece incorreto, ou pelo menos duvidoso, é a afirmativa de que o evolucionismo darwiniano e o criacionismo seriam absolutamente inconciliáveis. Sabedor dos ataques e das contestações que iria sofrer dos líderes religiosos radicais e fundamentalistas, Darwin, habilmente, evitou estabelecer tal confronto nas suas obras.

                        Haja vista as duas frases seguintes a ele atribuídas, que são ambíguas e contraditórias: Não consigo me convencer de que um Deus caridoso e onipotente teria propositalmente criado vespas parasitas com a intenção expressa de alimentá-las dentro de corpos vivos de lagartas”; e “A impossibilidade de concebermos o universo tão grande e maravilhoso, como realmente o é, me parece o argumento principal para a existência de Deus” (esta última em resposta à carta do topógrafo holandês Nicolaas Dirk Doedes, em 2 de abril de 1873).

                        Não nos esqueçamos, ainda, que em 1997 a teoria de Darwin mereceu o reconhecimento do Papa João Paulo II, que enfatizou não ser ela incompatível com a doutrina católica.

                        De todo modo não serei eu, que não sou especialista no assunto (nem em nada), o mais apto da espécie para trazer luz à discussão.

                        Recolho-me, pois, à minha insignificância e explico logo qual o propósito deste post.

                        É o de indicar e sugerir aos que ainda não conhecem que assistam ao delicioso filme O vento será tua herança (Inherit the Wind), cujo enredo trata justamente da acirrada controvérsia entre criacionismo e evolucionismo e foi extraído do romance de J. Lawrence e Robert E. Lee, baseado num caso real ocorrido em 1925, no estado americano do Tennesse, quando o professor John Thomas Scopes foi julgado criminalmente por ensinar a teoria da evolução de Darwin em uma escola pública.

                       Vento será tua Herança

O Julgamento do Macaco (Monkey Trial), como ficou conhecido o caso, durou onze dias e teve repercussão mundial pela batalha travada pela acusação e defesa, tendo sido o primeiro a ser transmitido por rádio.

 

 

             O vento será tua Herança 4  

O filme é de 1960, em preto e branco, dirigido por Stanley Kramer, protagonizado soberbamente por Spencer Tracy, como o advogado de defesa, e Fredric March, como o promotor.

       

            O vento será tua Herança 3    

 Em 1999 foi lançada uma nova versão, que praticamente repete quadro a quadro o filme, feita para a televisão e na qual Jack Lemmon interpreta o advogado de defesa (atuação que lhe valeu o Globo de Ouro com melhor ator nessa categoria, em 2000), e George C. Scott, o promotor.     

 

                     Atentem para a cena final (em ambas as versões), em que o advogado de defesa, antes de deixar a sala do tribunal, apanha o seu exemplar de A Origem das Espécies e o junta com a Bíblia brandida pelo promotor durante o julgamento.

 

 

Zé Rodrix

 

Zé Rodrix

 

                        Sexta-feira, os jornais de fim de noite na televisão deram a notícia que me estragou o dia e o final de semana: Zé Rodrix morreu.

                        Ainda há pouco, no post A casa doente, fiz referência e reverência à sua canção mais conhecida e imorredoura, eternizada pela voz de Elis Regina, Casa no Campo, que ouço agora, cantada por ele, enquanto escrevo, quase sem conseguir conter a emoção.

                        Pensava que ele fosse mais velho e me surpreendi ao saber de sua idade nos necrológicos: apenas 61 anos! Fez tantas coisas, produziu tanto, que parecia já ter vivido muito mais tempo, o que me traz à lembrança os versos de Pessoa:

“Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

                        Há cerca de dois ou três anos ele veio a Ribeirão Preto, acompanhando o poeta Mário Chamie, para participarem da Feira do Livro. Como meu pai e eu já há algum tempo nos tornamos bons amigos do mestre Chamie, fui por este apresentado a Zé Rodrix.

                        Passamos uma boa parte daquela noite saboreando a conversa de  Mário Chamie e Zé Rodrix, ambos absolutamente encantadores e extrovertidos, capazes de prender a atenção de qualquer ouvinte ou platéia por horas a fio, emendando um assunto com outro e pontuando com grandes tiradas.

                        Até então conhecia e admirava o talento do artista e publicitário Zé Rodrix, mas ao longo do papo descontraído me vi diante de um homem de vasta cultura, não apenas musical, de inteligência e sensibilidade extraordinárias.

                        Contou-me que havia sido obrigado a alugar um apartamento apenas para acomodar seus livros, que já passavam de trinta mil. Como não parava de comprá-los e também de recebê-los dos autores e das editoras, o apartamento-biblioteca começava a ficar saturado, levando-o a tomar a decisão de doar os exemplares repetidos e aqueles que  não mais lhe interessavam, mantendo apenas os livros essenciais, que ainda pretendia reler ou ao menos consultar.

                        Perguntei-lhe com quantos livros pensava ficar, e ele me respondeu com a maior simplicidade:

                        Ah, pouca coisa! Dez ou doze mil…

                        Cheguei a brincar, dizendo-lhe que esses poucos livros e ainda os seus discos não caberiam na sua casa no campo, pau a pique e sapê, o que lhe arrancou gostosas gargalhadas.

                        Não mais o reencontrei, mas de longe acompanhei  a retomada de sua carreira musical, que ele me disse naquela noite  haver feito porque sentia muita falta de pôr o pé na estrada.

                        De novo reunido com os velhos companheiros, lançou um DVD com os maiores sucessos do trio, Sá, Rodrix & Guarabyra: Outra Vez Na Estrada – Ao Vivo. No começo deste ano, foi lançado o CD Amanhã, resultado do reencontro dos três.

                        Amanhã já não há para ele. Haverá para nós?

 

 

As quatro estações

 

 

                    Eis que afinal, mansamente,

                    o outono se entranha com seus tons

                    de marrons, beges, vermelhos breves,

                    que não são do outono em Paris,

                     mas daquele em que me fiz.

 

                     A primavera longeva da infância,

                      com sua ânsia de florescer,

                      sua volúpia multicor e inebriante, estiolou,

                      e se acomodou no pequeno jardim

                      num canto esconso de mim.

 

                     O verão suarento da juventude,

                     com seus rompantes sóis,

                     seus ardores, falsas dores, ruídos rudes,

                     parecia que nunca se acabava

                     e a agitação ofegante do dia invadia a noite e a madrugada.

 

                     Os dias são tépidos agora

                     e se encurtam na longa noite

                     que esfria e prenuncia

                     o inverno álgido que virá

                     com sua verdade de pedra:

                     a primavera que houvera outrora,

                     outra nunca mais haverá.

Outono 3

De Assalto

 

                        Ontem à noite em São Paulo deu-se o lançamento (a que infelizmente não pude comparecer) do curta-metragem De Assalto, cujo roteiro e direção são de Bell Gama.

                        A ideia do curta surgiu a partir de um assalto real sofrido pela Bell em Ribeirão Preto, ao qual já me referi no post lá atrás, A bolsa e quase a vida. Tendo aquele assalto como fio condutor, o curta aborda diversas outras situações em que nos vemos assaltados pela vida, às vezes de modo sutil como um velho batedor de carteiras, às vezes violentamente como um facínora impiedoso.

                        Não me cabe, nem devo, como pai coruja e maior admirador do talento da minha querida Bell, tecer considerações críticas sobre o curta.

                        Todavia, creio que devo registrar aqui pelo menos o esforço, a dedicação e o denodo não apenas da Bell, mas de todos os seus amigos e companheiros que abraçaram com ela o projeto, participando ativamente e tornando possível a realização. Atores e atrizes, produtores, pessoal técnico, músicos, todos enfim que deram tudo de si, sem nada receber em troca, a não ser a satisfação de levar adiante um projeto em que acreditaram, enfrentando todas as dificuldades e superando todos os empecilhos pelo simples amor à arte.

                        O curta foi filmado no fim de semana da Páscoa, praticamente em dois dias, aqui em Ribeirão Preto, e acompanhei de perto o trabalho incansável e extraordinário de todos. Maiores informações, com o nome e o trabalho de cada um, podem ser colhidas no blog da Bell, Projeto Grifos .

                        Se tudo der certo, haverá um segundo lançamento em Ribeirão Preto, em data e local a serem divulgados.

                        Depois de conviver com um grupo de jovens assim, renova-se no meu íntimo a esperança (algo desgastada) de um mundo melhor e de que nem tudo esteja perdido.

                        Pois que a  todos eles agradeço por essa luz que me aquece no outono da vida.  

 

CARTAZ final

O poeta de pedra

 

 

                        Neste ano, além dos 200 anos do nascimento de Darwin e de Poe (ambos nasceram em 1809), faz uma década que o poeta João Cabral de Melo Neto morreu, e até agora pouco se falou disso.

                        Por uma dessas traições incompreensíveis da vida (também praticada contra Jorge Luis Borges cego e Beethoven surdo), nos seus últimos anos o poeta já não conseguia ler, nem escrever, em decorrência de uma doença degenerativa da vista, e a profunda depressão que isso lhe causou sem dúvida alguma abreviou a sua existência.

                        Não farei aqui, e nem tenho competência para tanto, uma análise sobre a magnitude de sua obra poética, mas uma singela homenagem ao revelar alguns aspectos do homem que continha o artista.

                        Sob a aparente sisudez e austeridade — que também marcavam sua poesia — existia um homem afável, que adorava conversar, era louco por futebol (que chegou a jogar na juventude, tendo recebido proposta para se profissionalizar, e sobre o qual fez diversos poemas), e também um grande gozador.

                        Aliás, sendo diplomata, haveria de ter essas qualidades humanas, ainda que não mundanas.

                        Ele e Vinicius de Moraes, também diplomata, eram aparentemente o oposto um do outro. Mas o apolíneo João Cabral e o dionisíaco Vinicius se davam muito bem e se admiravam.

                        É óbvio que havia tertúlias sobre a poesia seca de Cabral e o lirismo de Vinicius, o qual (outro grande gozador) provocava o amigo dizendo que poesia tinha de ser visceral.

                        Pois um belo dia João Cabral chegou a um encontro com Vinicius trazendo um embrulho, que logo atirou à mesa e abriu, exibindo um coração de boi, um fígado e outras vísceras compradas no açougue:

                        — Toma aí Vinicius, para você fazer uma porção de poemas!

                        Durante a maior parte de sua vida, João Cabral sofreu de uma dor de cabeça constante e terrível, que o atormentava, aliviada com aspirina, para a qual, agradecido, lavrou o poema Num monumento à aspirina, cuja primeira estrofe transcrevo:

 

                               Claramente: o mais prático dos sóis,

                               o sol de um comprimido de aspirina:

                               de emprego fácil, portátil e barato,

                               compacto de sol na lápide sucinta.

                               Principalmente porque, sol artificial,

                               Que nada limita a funcionar de dia,

                               Que a noite não expulsa, cada noite,

                               Sol imune às leis de meteorologia,

                               a toda hora em que se necessita dele

                               levanta e vem (sempre num claro dia);

                               acende, para secar a aniagem da alma,

                               quará-la, em linhos de um meio-dia.

            

                        No seu último depoimento, que faz parte do documentário Recife Sevilha: João Cabral de Melo Neto, da Produtora Giros, o poeta relata que, estando certa vez num lugar de flamenco com uma bailarina sevilhana, perguntou-lhe:

                        — Te gusta este cantador?

                        E ela:

                        — No! No expone!

                        O que suscitou do poeta o seguinte comentário:

                        — Sim, o sevilhano quer sempre a coisa feita no máximo. Fazer no extremo, onde o risco começa….”

                        É sabido que as touradas exerciam em João Cabral o mesmo fascínio que o flamenco. De minha parte, não consigo gostar das touradas, em que pesem as explicações de seus entusiastas, a tradição que encerra, a simbologia da luta entre o homem e a natureza bruta.

                        No mesmo depoimento conta ele sobre a primeira corrida de touros em que foi, achando que não ia gostar “por causa desse negócio da morte”. Mas gostou, e esclarece por quê:

                        — O toureiro se expõe a tais perigos, que você acaba sentindo solidariedade. Manolete me ensinou muito em matéria de poesia, porque ele toureava de uma maneira essencial. Não dava um passo a mais. Ficava parado e o touro é que se desviava dele.

                        — O Cordobez tinha uma grande coragem, mas era muito espalhafatoso. Ele se ajoelhava na frente do touro e fazia essas coisas que entusiasmavam o povo, mas para os verdadeiros aficionados não surtia efeito. Manolete matou o touro que também o matou com uma única estocada, perfeita. Morreu porque para dar a estocada bem dada, você tem que se aproximar do touro e este o atingiu com o chifre direito, que rompeu a veia femoral. Tourear não é uma coisa para qualquer um. Tive um amigo que conheceu Manolete e lamentava por eu não ter sido apresentado a ele. Dizia que nunca tinha conhecido duas pessoas, com tanta capacidade para se tornar amigas como nós dois. E dizia que nossas personalidades eram tão parecidas que rimavam. Uma rima seca.

                        João Cabral de Melo Neto morreu, mas a fonte perene  de sua poesia jamais secará.

 João Cabral

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O novo filme de Coppola

 

tetro 3

                 

                        Francis Ford Coppola, um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos, na minha modesta opinião, fez o lançamento de seu novo filme, Tetro, na Quinzena dos Realizadores, amostra paralela do festival de Cannes, e foi aplaudido de pé ao final da exibição.

                        Quem fez  a trilogia de O Poderoso Chefão e ainda  Apocalypse Now nada mais precisaria realizar, mas depois do estouro do orçamento deste último Coppola ficou endividado e para pagar os credores teve de filmar o que os estúdios lhe encaminhavam. Mesmo assim, sempre foi capaz de deixar sua marca de mestre em todos os filmes.

                        Tetro é um filme independente, que o próprio Copolla vai se encarregar de distribuir, rodado na Argentina, contando a saga de uma família, os Tetrocini.

                        Depois de romper com o pai autoritário e cortar os laços familiares, o primogênito Angelo Tetrocini (interpretado por Vincent Gallo), que sonha ser escritor, vai viver em Buenos Aires, na região de La Boca, e muda o seu sobrenome para Tetro. O caçula da família, Benjamin (o estreante Alden Ehrenreich,  que dizem ser a cara do Leonardo DiCaprio, vide foto abaixo), vai a Buenos Aires em busca do irmão e de desvendar os segredos sobre a vida do pai e a morte da mãe, os quais pouco a pouco vão sendo revelados ao longo do filme, que é em preto-e-branco, com raras cenas coloridas, quando os personagens lembram do passado.

                        Indagado sobre possíveis semelhanças entre a família do filme e a sua própria (o pai e o tio de Coppola eram músicos, como em Tetro), o cineasta declarou que “Nada na história realmente aconteceu. Mas tudo é verdade”, o que define de  modo esplêndido a boa ficção.

                        Coppola vive parte do ano na Argentina, onde mantém uma vinícola, daí ter optado por filmar lá, uma vez que procurava um país em que a cotação do dólar fosse atrativa, mas que também tivesse uma rica tradição cultural.

                        Um sinal de boa sorte para o filme (não bastasse o talento do diretor)  é o fato de que o canastrão Javier Bardem havia se oferecido para atuar, fazendo o papel de um crítico de teatro, mas desistiu depois de ser premiado com o Oscar, o que levou Coppola a transformar a personagem em feminina e entregá-la à competente atriz Carmem Maura.

                        Assista ao trailer de Tetro aqui.

 

tetro 4Tetro 2

                                                  

 

 

 

Coppola e parte do elenco

Alden Ehrenreich

Como se tornar líder

 

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                        Recebo diariamente, pelo correio tradicional e por e-mail, uma grande quantidade de folhetos publicitários que prometem me transformar num grande líder, e assim iluminar a minha vida opaca.

                        As propostas são tentadoras, diante do rico aprendizado que me será propiciado e das mudanças radicais que lograrei.

                        Apenas a título de exemplo, uma delas me oferece dois treinamentos, um para desenvolver a inteligência emocional e o outro de gerenciamento de pessoas, liderança e motivação de equipe, esclarecendo que este último “se destina a Diretores, Gerentes e Supervisores que necessitam e desejam aproveitar e canalizar melhor o potencial e as habilidades de seus subordinados; delegar mais efetivamente; e melhorar o desempenho e a motivação de seus colaboradores, individualmente e da equipe como um todo” e que “os dois treinamentos são conduzidos em forma de workshop: os participantes aprendem novos conceitos, técnicas e ferramentas; revêem suas práticas e seu trabalho; discutem suas questões reais; refletem individualmente e em grupo; e partilham idéias, experiências e aprendizado. Ao final do workshop cada participante sai com um Plano de Implementação de Melhorias e Mudanças Positivas.”

                        Uma outra me alerta que “A FELICIDADE e O SUCESSO já te pertencem… basta apenas apossar-se deles…”. E acrescenta: “Mais do que um simples treinamento o SER LÍDER é um programa de aperfeiçoamento pessoal e profissional que agrega inúmeras técnicas a fim de auxiliar o participante a identificar seus limites, compreender seus medos e desbloqueá-los.”

                        Como se verifica dos textos transcritos literalmente, o zelo pela língua portuguesa não faz parte das preocupações desses formadores de líderes.

                        Informa, ainda, o último que  o principal consultor, responsável pela coordenação e realização do treinamento, entre outros diversos títulos e variadas aptidões, é “Formado em Mecânica pela FATEC-SP, Psicoterapeuta com formação em Técnicas de Expansão de Consciência pelo ITK Instituto Tadashi Kadomoto, e Psicoterapia Integrativa de Memória e Consciência pelo IPEC. Profundos conhecimentos em AT Análise Transacional, PNL Programação Neurolingüistica, Terapia Regressional e Renascimento, Biodança, e Bioenergética. Pesquisa e desenvolve programas, cursos, workshops e treinamentos na área comportamental, técnica e motivacional.”

                        Ufa!!!  É demais para mim…

                        Até porque não pretendo, nem jamais  pretendi ser líder de nada ou de ninguém. Dou-me por plenamente satisfeito se conseguir liderar a mim mesmo.

                        Talvez o grande mal da humanidade tenha sido o excesso de líderes providenciais, como Hitler, Mussolini, Stalin, Franco, Salazar, Vargas, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro, Perón, Kolmeini e muitos outros mais (coloco no mesmo balaio de gatos, ou no mesmo caldeirão de enxofre, todos os tipos de tiranos e déspotas, esclarecidos (?) ou não, de qualquer seita ou ideologia)

                        O Brasil não precisa se preocupar, pois tem hoje um notável líder, eleito democraticamente, aprovado pela esmagadora maioria da população, reconhecido e admirado  em todo o mundo. Ele é “o cara”.

                        Mas é bom não esquecer que foram os grandes líderes corporativos e financeiros que lançaram a economia global na gravíssima crise que enfrentamos, de consequências ainda imprevisíveis, embora alguns deles já anunciem que o pior passou e o sol voltará a brilhar.

                        Talvez esses líderes tenham se forjado nos treinamentos e workshops tão em voga, como os acima anunciados, e lendo livros de auto-ajuda, que ajudam a enriquecer seus autores ou magos.

                        Outro dia, pela televisão, assisti a um de tais treinamentos em que os aprendizes deslizavam por uma corda tirolesa e quando colocavam o pé no chão tinham se transmudado num passe de mágica em líderes excelsos, como Moisés ao descer do Monte Sinai com as Tábuas da Lei.

                        Outra medida muito eficaz na construção de grandes líderes são as palestras motivacionais proferidas por técnicos de futebol, de caráter duvidoso, ou de voleibol, que à beira da quadra ficam à beira de um ataque de nervos, como as mulheres de Almodóvar.

                        Diante de tudo isso me dá uma vontade danada de dizer, como a diva Greta Garbo, I want to be alone, ou até mesmo repetir as palavras daquele último grande líder da ditadura militar que se instalou em 1964 no Brasil: Quero que me esqueçam…

 

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