As casas em que vivemos durante algum tempo ficam impregnadas em nós, e também elas se afeiçoam aos seus moradores, como os bichinhos de estimação que se tornam parecidos com seus donos, e vice-versa.
Dizem que os gatos se apegam à casa e não aos supostos donos, já que são animais que prezam a independência acima de tudo. Mas talvez na verdade os gatos tenham a percepção de que os donos e a casa se integram e se tornam uma única e mesma substância, ou a extensão um do outro, daí porque quando os donos se mudam os gatos ficam no dilema de decidir se devem acompanhá-los ou permanecer na casa.
Carregamos conosco as casas da nossa infância, a casa dos pais, a casa dos avós, a casa de parentes e amigos queridos. Mas a casa que nos marca definitivamente é aquela da nossa vida adulta, compartilhada com a pessoa amada e na qual nossos filhos crescem, até que um dia partem e vão construir a própria casa e a própria vida. A casa onde possamos plantar nossos amigos, nossos discos e livros e nada mais, como diz Zé Rodrix na letra da música Casa no Campo , que Elis Regina cantava maravilhosamente.
Nossa casa em Ribeirão Preto, a primeira e única de que somos proprietários até agora, adquirida a duras penas, financiada a perder de vista (mas hoje já quitada), não foi edificada por nós, embora tenhamos sido os primeiros moradores. Não era a casa dos nossos sonhos, mas a que podíamos ter na época, num bairro que começava a se desenvolver.
Como foi construída para ser vendida, padecia e padece de deficiências que tal tipo de construção costuma apresentar, e desde o começo, sempre com dificuldade, fomos obrigados a reformá-la inúmeras vezes, sanando defeitos, acrescendo-a e adaptando-a às necessidades da família.
Mesmo com todos os problemas, com os bons e maus momentos que todos passamos, posso dizer que temos sido felizes nela, e assim, ainda que não o fosse, tornou-se a casa dos nossos sonhos, ou que abrigou nossos sonhos.
Lá se vão mais de vinte e cinco anos. Carolina e Isabella eram pequeninas quando mudamos para a casa, e nela Júlia foi gerada . São elas o nosso sonho.
Há cerca de dois meses a casa, que sempre foi um tanto temperamental (como seus moradores), passou a manifestar alguns sintomas de má circulação, provocando entupimento num dos banheiros. Das primeiras vezes as medidas terapêuticas de praxe surtiram efeito, desobstruindo os velhos encanamentos. Mas as recidivas se sucederam, até que o mestre encanador proferiu o diagnóstico terrível: simples medidas paliativas não adiantavam mais, era preciso uma intervenção cirúrgica, rasgando o quintal para vasculhar as entranhas da casa, encontrar a artéria entupida e devolver-lhe a capacidade circulatória.
Desde a última segunda-feira os doutores encanadores processam a longa e complexa cirurgia, arrancando o piso, escavando a terra, expondo os canos, passando cateteres, sem conseguirem identificar o local exato da obstrução.
Finalmente, o Dr. House dos encanadores teve a brilhante idéia de mudar a abordagem terapêutica: em vez de continuar procurando o cano entupido, refazer no trecho crítico o encanamento e isolar o antigo, vale dizer, revascularizar o sistema circulatório da casa como uma ponte de safena ou mamária.
Pode-se imaginar o pandemônio doméstico, a dona da casa com os nervos em frangalhos, acompanhando de perto a bagunça e prestando toda a assistência à querida paciente, de cuja cabeceira não sai de jeito algum.
Em razão dessa dedicação extrema, viajei sozinho para São Paulo (de onde escrevo agora), a trabalho, embora tivéssemos planejado vir juntos e passar o fim de semana com as meninas para comemorar o dia das mães.
Regresso, pois, amanhã a Ribeirão Preto para não deixar abandonada a matriarca no seu dia e homenageá-la em nome das filhas ausentes, e também da casa, convalescente e agradecida pelos seus cuidados.
PS O poema logo abaixo foi escrito há bastante tempo, mas expressa o que sinto sobre as casas impregnadas em mim.