Posts from maio, 2009

O Corvo

 

Corvo

 

                        Impossível falar de Edgard Allan Poe num único e breve post, como o anterior, e sem registrar alguns aspectos do seu poema, O Corvo (The Raven), um dos mais famosos de toda a literatura universal.

                        Depois de sua descoberta por Baudelaire, o poema despertou o interesse geral e se tornou, pela sua estrutura inovadora, uma gênese da poética moderna.

                        O próprio Poe, no célebre ensaio A Filosofia da Composição, procurou “desconstruir” e “racionalizar” o poema, intencionando demonstrar que ao elaborá-lo o fez com absoluta frieza, com o simples emprego de recursos técnicos, contrapondo-se àqueles que sustentam que a escrita poética necessita de uma predisposição emocional, a que muitos chamam de inspiração.

                        Embora o ensaio seja brilhante e atrativo, como tudo o que Poe escreveu, a mim, como a muitos outros, fica a impressão de que o poeta o montou do fim para o começo, ou seja, o ensaio é que foi “fabricado” depois de feito o poema, com o propósito de demonstrar a sua tese.

                        Isso não significa dizer que um bom poema ― e O Corvo em especial ― não comporte e até mesmo exija um trabalho longo e penoso de aperfeiçoamento, o domínio e uso da técnica para produzir certos efeitos pretendidos pelo autor, e que distinguem a poesia da prosa. É nessa esparrela que caem muitos dos que se pretendem poetas, jovens ou velhos, e pensam ser possível fazer poesia apenas com emoções e boas intenções, bastando deitar frases em beliches para compor versos ditos modernos e “livres”, libertos das amarras da métrica. Embora exista poesia, e da boa, sem metrificação rígida, não há poesia sem ritmo, que o verso livre não dispensa e torna mais difícil manter.

                        Mesmo sendo analfabeto funcional em inglês (leio razoavelmente, mas tenho dificuldade de falar e entender o que me dizem com a rapidez e as elipses típicas dos norte-americanos), não me escapa a trabalhosa estrutura de O Corvo, com suas rimas internas, aliterações, recorrências, duplos sentidos e outros efeitos especiais, que praticamente tornam o poema intraduzível. A língua inglesa é pródiga em tais recursos, que são um tormento para os tradutores. Shakespeare é um exemplo clássico disso.

                        O Corvo tem inúmeras traduções, feitas por poetas e escritores consagrados, como o já citado Charles Baudelaire, Stéphane Malharmé, Didier Lamaison, e os nossos Machado de Assis, Fernando Pessoa, Emílio de Meneses, Gondin da Fonseca, entre outros.

                        No post anterior deixei links de acesso às traduções de Machado e de Pessoa, mas alguns especialistas consideram que a tradução mais bem sucedida para o português, com as melhores soluções rítmicas e vocabulares, é a de um jornalista mineiro, quase desconhecido, Milton Amado, feita em 1943.

                        Consta que Milton Amado teve uma vida muito parecida com a de Poe, amargurada e sofrida, pelas incompreensões e a falta de dinheiro. “A natureza torna a vida bastante dura àqueles de quem deseja extrair grandes coisas”, disse Baudelaire sobre o infortúnio de Poe.

                        Daí talvez porque a  tradução de Milton Amado, embora feita por encomenda, encontrou o tom que Poe apregoava: “um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma… tive firmemente em vista o desejo de tornar a obra apreciável a todos”, o que, de certo modo, desmente a alegada frieza racional com que teria escrito O Corvo.

 Corvo 2

                          Leia a tradução de Milton Amado           

 

 

 

 

O gótico gênio

 

“A literatura atual seria inconcebível sem Whitman e sem Poe.” (Jorge Luis Borges)

 

“Para  

Não atento que minha porção terrena

Tenha pouco da Terra em si  

Que anos de amor foram esquecidos

No ódio de um minuto:

Não lamento que os desolados

Sejam mais felizes, mais doces do que eu,

Mas que você sofra por meu destino

Que passo pelo caminho.” (Edgar Allan Poe)

 

                        As vestes negras, a estatura baixa, as mãos e os pés pequenos, a basta cabeleira e o bigode eriçado, o olhar febril e as olheiras chamam a atenção, mas não tanto quanto a cabeçorra, desproporcional ao corpo rijo.

                        Quem foi esse homem extravagante que poderia ser personagem de suas próprias histórias, fazendo companhia a um corvo melancólico, um gato sinistro, um orangotango assassino?

                        A bem de ver, seus personagens, ou o seu personagem único, o homem de nervos de aço e de percepção aguçada, que desafia os sortilégios, é ele próprio. E também suas personagens femininas, misteriosas e doentias, abaladas por uma tristeza incurável, têm muito dele mesmo.

                        Embora conhecido por apenas  alguns dos mais célebres poemas e contos de mistério e terror, a sua obra completa recheia dezessete volumes, e nem mesmo se tem ideia de quantos outros volumes foram escritos (e ainda o serão) a respeito dele.

                        Cento e sessenta anos depois da sua morte precoce, aos quarenta anos de idade, Edgar Allan Poe continua um enigma indecifrável.

                        O mito superou o homem, e ele talvez gostasse disso.

                        Um gênio ou um louco? Um visionário ou um bêbado imoral? Há quem ainda discuta sobre isso, ou busque analisar a sua obra sob o ponto de vista psicanalítico. Os períodos de atividade intensa, alternados com períodos de profunda depressão provavelmente o qualificassem hoje como um bipolar,  e tratado com as drogas miraculosas atuais viveria ajustado e improdutivo.

                        Alguns fatos, porém, são indiscutíveis: Poe foi o pai das histórias modernas de mistério e detetive, um dos pioneiros da ficção científica, sendo considerado ainda o primeiro escritor profissional e crítico literário norte-americano.

                        Até mesmo sua morte em Baltimore, permanece um quebra-cabeça sem resposta. Encontrado por um velho amigo numa taberna, em estado lastimável e delirante, vestindo roupas que aparentemente não eram suas, foi levado inconsciente ao Washington College Hospital, onde morreu quatro dias depois, no domingo, 7 de Outubro de 1849.

                        Enterrado no pátio da  Westminster Presbyterian Church em um pequeno bloco, identificado apenas pelo número 80, ali permaneceu durante 26 anos, até que, depois de uma campanha para arrecadação de fundos, o corpo foi removido para um memorial construído num ponto mais nobre do mesmo cemitério, onde se encontra atualmente.

                        Desde 1949, todos os anos, uma figura solitária, que passou a ser chamada de Poe Toaster (aquele que brinda Poe), envolta numa capa, com um chapéu preto e empunhando uma bengala com a ponta de prata, visita o túmulo depois da meia-noite, no dia 19 de janeiro, data do nascimento de Poe. Deixa sempre três rosas vermelhas e meia garrafa de conhaque.

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Assista à interpretação de  The Raven (O Corvo)

Leia as traduções de Machado de Assis e Fernando Pessoa