Posts from maio, 2009

São Marcos

 

 

                        Consta que João Saldanha, chamado de João Sem Medo pelo destemor e por não ter papas da língua, perdeu o cargo de técnico da seleção brasileira, pouco antes do início da Copa do Mundo de 1970 (ou ao menos teria sido a gota d’água disso), depois de responder a um repórter que o entrevistava e lhe perguntou se não iria convocar o centroavante Dario, o Dadá Maravilha, que era o queridinho do tenebroso ditador de então (até no nome), Garrastazu Médici:

                        — O general escala o seu ministério e eu escalo a seleção.

                        O mesmo João Saldanha costumava dizer sobre os jogadores tidos por problemáticos ou indisciplinados, mas que são craques incontestáveis e decidem, como Romário:

                        — Não quero ele para casar com a minha filha. Quero para jogar no meu time.

                        Pois duvido que algum torcedor, se conseguir deixar de lado as paixões e rivalidades cegas, não quisesse ter o Marcão do Palmeiras como goleiro do seu time.

                        De minha parte, embora nem me passe pela cabeça escolher marido para minhas filhas, que são perfeitamente capazes de acertar ou errar sozinhas, vou além, pois que gostaria não apenas de ver Marcos como goleiro do meu time, mas de tê-lo como amigo, pelo grande tipo humano que é, pelo seu jeitão simples e despachado, pela franqueza com que crítica as próprias atuações e do resto do time quando jogam mal, pelo caráter reto, pelo desapego ao dinheiro e à fama, nestes tempos de mercantilismo futebolístico e jogadores mercenários. Recusou propostas milionárias, até do exterior,  para não deixar o seu clube de coração, especialmente quando o Palmeiras estava na pior, rebaixado para a segunda divisão.

                        Mesmo depois de contusões gravíssimas e repetidas, aos 34 anos de idade, encontrou forças para recuperar a velha forma e voltar a ser o extraordinário goleiro de antes (disse ele em entrevista recente que joga sentindo muita dor no punho várias vezes lesionado).

                        Graças à sua atuação portentosa durante o jogo, e depois na decisiva cobrança de pênaltis, em que defendeu de forma espetacular três dos quatro batidos pelos jogadores do Sport Recife, o Palmeiras continua vivo na Taça Libertadores da América (salvando o pescoço do convencido e intolerável Vanderlei Luxemburgo).

                        Ave, São Marcos, morituri te salutant.

 

 

O deus mercado

 

 

                        O jornalista Roberto Rockmann, no seu excelente e delicioso blog, que mudou de nome e agora se chama Tudo e Nada, sob o título de Água no chope, faz algumas considerações inquietantes sobre a aparente recuperação da Bolsa brasileira, que subiu 75% em relação ao fundo do poço do ano passado.

                        Depois de conversar com o economista Fabio Silveira, em quem confia, colheu a opinião, com a qual comunga, de que se trata de mais uma bolha sem condições de se sustentar porquanto a recessão dos Estados Unidos, da Europa e do Japão afetará fatalmente a China, cujas exportações representam 40% do PIB.

                        E conclui:

 

Mas a bebedeira do mercado vai causar uma baita dor de cabeça. A dúvida é quando ela chegará. Mas uma certeza que ele tem é que ela poderá fazer as bolsas terem uma queda ainda mais drástica que a vista em novembro. O pior já passou? Desde agosto de 2007, economistas vêm dizendo isso, mas não dá dados que apontem nessa direção. Segundo Fabio, o mercado agora só quer ouvir coisas boas, mesmo sem as ruins terem acabado.”

 

                       Não sou especialista na matéria, mas não resisto indagar: será que não aprendemos nada? Até quando continuaremos reféns de especuladores e dos humores do deus mercado? Já não passou da hora de se criarem mecanismos de maior controle de tais manipulações?

                       Aliás, a palavra mercado vem de mercúrio. Na mitologia Greco-Romana, Mercúrio (Hermes, para os gregos) era o mensageiro dos deuses, e ainda deus do comércio, da eloqüência, dos viajantes e também dos ladrões.

                       Na química, mercúrio é um elemento importante, mas que pode ser venenoso. E na astronomia, é o nome do planeta mais próximo do Sol.

                       Se não forem criados antídotos eficazes contra as especulações e diabruras do todo poderoso deus mercado, acabaremos sucumbindo um a um,  intoxicados ou incinerados.

 

bolsa 3

 

Filhos da mãe

 

                        Dizem que os filhos são a sobrevivência do homem. “Crescei e multiplicai-vos”, já decretava o velho e iracundo Iavé bíblico, sem o quê a própria espécie humana não teria sobrevivido.

                        Não obstante, o cético e cínico Brás Cubas, de Machado de Assis, encerra as suas memórias póstumas com uma derradeira e sombria negativa: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

                        Já o poetinha Vinicius de Moraes embora suspeitasse que “Filhos? Melhor não tê-los”, responde à própria dúvida indagando “Mas se não os temos / Como sabê-lo?”, para concluir enlevado, ao final: “Que coisa louca / Que coisa linda / Que os filhos são”.

                        Outro grande poeta, Khalil Gibran, profeticamente alerta: “Seus filhos não são seus filhos / Mas sim filhos e filhas do anseio da Vida por si mesma”.

                        A expressão filho-da-mãe, antes de ser ofensiva e um eufemismo do chulo, deveria ser tomada ao pé da letra,  porquanto os filhos são mesmo muito mais da mãe do que do pai.

                        A mulher, além de gestar nas suas entranhas os filhos, amamentá-los e protegê-los até que possam cuidar de si próprios (e alguns jamais serão capazes disso), sempre foi a força centrípeta da família, que sem ela não existiria, e sem ela irremediavelmente se desagrega.

                        Dar à luz (esta sim, uma linda expressão) vai muito além do ato de parir, pois que a luz da mulher se irradia, acompanha e ilumina os filhos para sempre. E depois dos filhos, ainda virão os netos, aos quais ela nunca faltará, por eles próprios e para continuar a não faltar aos filhos.

                        Enquanto isso os homens, na sua grande maioria,  são incapazes de trocar uma fralda, além daqueles que se escafedem nauseados ao depararem com o cocô dos rebentos.

                        E as mulheres de hoje são ainda mais admiráveis, ao cumprirem jornada quádrupla, como mãe, esposa, dona de casa e profissionais dos mais variados ofícios, em muitos dos quais vão se saindo melhor do que os homens.

                        Se bem que com frequência me assalta  a dúvida se os pais são realmente capazes de legar algo para os filhos, ou se a sua missão será a de se recolherem silentes, no obscuro de si, enquanto os filhos seguem adiante pelo espaço infindo, como herdeiros do vento.

 

 

A casa doente (reflexões hipocondríacas)

 

 

                        As casas em que vivemos durante algum tempo ficam impregnadas em nós, e também elas se afeiçoam aos seus moradores, como os bichinhos de estimação que se tornam parecidos com seus donos, e vice-versa.

                        Dizem que os gatos se apegam à casa e não aos supostos donos, já que são animais que prezam a independência acima de tudo. Mas talvez na verdade os gatos tenham a percepção de que os donos e a casa se integram e se tornam uma única e mesma substância, ou a extensão um do outro, daí porque quando os donos se mudam os gatos ficam no dilema de decidir se devem acompanhá-los ou permanecer na casa.

                        Carregamos conosco as casas da nossa infância, a casa dos pais, a casa dos avós, a casa de parentes e amigos queridos. Mas a casa que nos marca definitivamente é aquela da nossa vida adulta, compartilhada com a pessoa amada e na qual nossos filhos crescem, até que um dia partem e vão construir a própria casa e a própria vida.  A casa onde possamos plantar nossos amigos, nossos discos e livros e nada mais, como diz  Zé Rodrix na letra da música  Casa no Campo , que Elis Regina cantava maravilhosamente.

                        Nossa casa em Ribeirão Preto, a primeira e única de que somos proprietários até agora, adquirida a duras penas, financiada a perder de vista (mas hoje já quitada), não foi edificada por nós, embora tenhamos sido os primeiros moradores. Não era a casa dos nossos sonhos, mas a que podíamos ter na época, num bairro que começava a se desenvolver.

                        Como foi construída para ser vendida, padecia e padece de deficiências que tal tipo de construção costuma apresentar, e desde o começo, sempre com dificuldade, fomos obrigados a reformá-la inúmeras vezes, sanando defeitos, acrescendo-a e adaptando-a às necessidades da família.

                         Mesmo com todos os problemas, com os bons e maus momentos que todos passamos, posso dizer que temos sido felizes nela, e assim, ainda que não o fosse, tornou-se a casa dos nossos sonhos, ou que abrigou nossos sonhos.

                        Lá se vão mais de vinte e cinco anos. Carolina e Isabella eram pequeninas quando mudamos para a casa, e nela Júlia foi gerada . São elas o nosso sonho.

                        Há cerca de dois meses a casa, que sempre foi um tanto temperamental (como seus moradores), passou a manifestar alguns sintomas de má circulação, provocando entupimento num dos banheiros. Das primeiras vezes as medidas terapêuticas de praxe surtiram efeito, desobstruindo os velhos encanamentos. Mas as recidivas se sucederam, até que o mestre encanador proferiu o diagnóstico terrível: simples medidas paliativas não adiantavam mais, era preciso uma intervenção cirúrgica, rasgando o quintal para vasculhar as entranhas da casa, encontrar a artéria entupida e devolver-lhe a capacidade circulatória.

                        Desde a última segunda-feira os doutores encanadores processam a longa e complexa cirurgia, arrancando o piso, escavando a terra, expondo os canos, passando cateteres, sem conseguirem identificar o local exato da obstrução.

                        Finalmente, o Dr. House dos encanadores teve a brilhante idéia de mudar a abordagem terapêutica: em vez de continuar procurando o cano entupido, refazer no trecho crítico o encanamento e isolar o antigo, vale dizer, revascularizar o sistema circulatório da casa como uma ponte de safena ou mamária.

                        Pode-se imaginar o pandemônio doméstico, a dona da casa com os nervos em frangalhos, acompanhando de perto a bagunça e prestando toda a assistência à querida paciente, de cuja cabeceira não sai de jeito algum.

                        Em razão dessa dedicação extrema, viajei sozinho para São Paulo (de onde escrevo agora), a trabalho, embora tivéssemos planejado  vir juntos e passar o fim de semana com as meninas para comemorar o dia das mães.

                        Regresso, pois,  amanhã a Ribeirão Preto para não deixar abandonada a matriarca no seu dia e homenageá-la em nome das filhas ausentes, e também da casa, convalescente e agradecida pelos seus cuidados.

 

PS                   O poema logo abaixo foi escrito há bastante tempo, mas expressa o que sinto sobre as casas impregnadas em mim.

 

 

A Velha Casa

 

 

Com as partes ideais

do meu quinhão,

reconstruo a velha casa

da minha infância.

 

Todas as casas

estão nela,

com seus cheiros,

suas marcas,

varandas, janelas,

a sala de visitas

sempre fechada

com o piano ao canto

e cada coisa em seu lugar.

 

A remota casa

que se edifica

em lento construir,

pouco a pouco se arremata

com todos os moradores,

suas vozes, seus risos,

bigodes e tranças,

o primeiro cachorrinho,

o papagaio no poleiro,

os rumores da cozinha,

as flores do furtivo jardim.

 

Ninguém jamais

será capaz

de pôr abaixo

essa casa que habita em mim.

 

 

 

Leite Envasilhado

 

chico-buarque

 

                        Um livro, enquanto não lido, é como uma garrafa de bebida fechada. Para sabê-los é preciso abri-los e prová-los, e só então sentiremos o seu gosto e se este nos apraz ou não.

                        Um livro e uma bebida sem sabor ou cujo sabor nos desgosta devem ser postos de lado na estante ou na prateleira. Mais tarde, podemos tentar tragá-los novamente e acontecer que, com o passar do tempo, o seu gosto (ou o nosso) haja se apurado, e os sorvemos até o fim com inesperado prazer, ou então apenas confirmamos que de fato não nos apetecem e os pomos de lado outra vez.

                        Um livro e uma bebida que muito nos agradem deixam-nos a lembrança indelével do seu gosto, que nos leva a reler o livro ou ir em busca de outra garrafa da mesma bebida. Mas a nova leitura e a outra garrafa terão seu próprio sabor, pior ou melhor, mas com certeza diferente da primeira. Se possível fosse, buscaríamos apagar completamente o livro da memória ou envasilhar de volta a bebida entornada para repetir a experiência única da primeira degustação que tanto nos deliciou.

                        O título do novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado, tem a sua própria explicação nos acontecimentos narrados (e não vou tirar do possível leitor o prazer de decifrá-lo), mas me despertou essas considerações ao me sentar agora para comentar o que achei dele, depois de finalmente o haver lido neste fim de semana. Tardei a fazê-lo porque fui posto como último da fila pelo contingente feminino familiar, com exceção da Bell que comprou seu próprio exemplar. Como sempre tenho vários livros a ler, não me incomodei em esperar e ceder a vez, cavalheirescamente, às mulheres da casa e da minha vida, pois que afinal são elas que mandam em mim, e no mundo.

                        Falar sobre o livro do Chico, como simples leitor que sou, é mais ou menos como tentar colocar de volta na garrafa, ou no abominável saquinho plástico, o leite derramado pelo autor para oferecê-lo aos que acompanham este blog.

                        Melhor será que cada qual tome o leite a seu modo, puro, com açúcar, com café ou chocolate, frio ou quente.

                        Da minha parte, embora não goste muito de leite (dos seus derivados, sim, como manteiga e queijos), o livro me agradou, bem mais dos que os anteriores, mas continuo a pensar que o Chico compositor esteja muitos tons acima do romancista.

                        O enredo já é amplamente conhecido: a saga de uma família aristocrática decadente, narrada por um velho centenário, que agoniza e delira em um hospital no Rio de Janeiro.

                        Na contracapa do livro, há um comentário muito favorável e elogioso de Leyla Perrone-Moysés, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a quem considero uma de nossas melhores críticas literárias e excepcional ensaísta (ganhadora do Prêmio Jabuti de 1993, com o livro de ensaios Vinte luas).

                        Não se pode negar que Chico Buarque escreve muito bem, com grande domínio não apenas da língua como da narrativa, especialmente neste livro, que prende e intriga o leitor, levando-o a devorá-lo gostosamente até o último parágrafo.

                        Quando do lançamento do romance, muitos que o haviam lido de antemão, como Roberto Schwarz e Eduardo Chiannetti, ressaltaram ecos da narrativa machadiana, que de fato existem, nas reminiscências do Rio antigo, na ironia do protagonista, na sua crua franqueza.

                        Mas o traço machadiano mais marcante é a obsessão do velho Eulálio D’Assumpção pelo enigma da sua mulher Matilde, pela suposta traição desta, quase a repetir as cismas de um Bentinho já caduco, que tivesse atravessado o século e, às portas da morte, continuasse a se atormentar com as lembranças de uma Capitu mulata (ou apenas morena?).

                        Como o texto é construído no plano delirante do personagem moribundo, não posso deixar de sugerir e recomendar que, até mesmo para uma comparação entre um e outro, quem ainda não leu, leia, e quem já leu releia o capítulo O Delírio, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que, segundo consta, o grande Eça de Queiroz sabia de cor e frequentemente reproduzia de viva voz.

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