O Príncipe

 

 

                        O Príncipe, de Maquiavel, escrito há quase cinco séculos, ainda permanece atual e polêmico.

                        Trata-se daquele tipo de livro que parece haver transcendido as intenções do autor, que pretendendo apenas induzir um príncipe de alta linhagem a pôr-se à frente dos destinos da Itália, acabou por se tornar um verdadeiro manual para todo tipo de governante, fazendo com que a obra se tornasse universal.

                        Citado por muitos, mas lido de fato por poucos, Maquiavel tem conhecido tantas interpretações divergentes quanto são aqueles que o analisam ou o tomam para si. Basta ver que, em pleno século XX, enquanto Mussolini transformava Maquiavel em precursor do fascismo, o marxista Gramsci assimilava ao príncipe ideal renascentista o partido do proletariado, como instrumento contemporâneo de sua vontade e ação coletivas.

                        É também O Príncipe que de algum modo inspira e dá nome a um dos melhores filmes brasileiros dos últimos tempos (que voltei a assistir domingo último, num canal a cabo), do grande cineasta Ugo Giorgetti, cuja trajetória singular e expressiva ainda esta a merecer o devido reconhecimento.

                        Não me agrada muito a denominação cineasta, de uso corrente no Brasil para se referir aos diretores de cinema, mas reconheço que talvez ela expresse mais adequadamente a verdadeira odisseia que nossos diretores têm de enfrentar para fazer um filme, esfalfando-se em múltiplas atividades, além de dirigir.

                        Paulistano, descendente de italianos (daí talvez a sua atração pela obra de Niccolò Machiavelli), Ugo Giorgetti trabalhou em publicidade até chegar ao cinema e realizar filmes plenos de fina ironia e observação da vida cotidiana. São dele também, entre outros, Boleiros (rara incursão bem sucedida no cinema brasileiro no mundo do futebol), Sábado e Festa, estes dois mais antigos, mas igualmente ótimos. Trabalha sempre com um grupo de excelentes atores, com os quais deve ter afinidade, o que torna seus filmes mais autorais ainda.

                        O Príncipe, lançado em 2002, relata o retorno ao Brasil do intelectual Gustavo (Eduardo Tornaghi), que vive em Paris há mais de vinte anos, e o seu reencontro com o passado, velhos amigos que se tornaram arrivistas (Ewerton de Castro), um grande amor mal resolvido (Bruna Lombardi) e, sobretudo, com uma São Paulo que não mais existe, ruínas do que foi.

                        Gustavo retorna para dar apoio à mãe idosa, às voltas com o tratamento do único neto, sobrinho dele (Ricardo Blat), professor que se acha em surto psicótico e internado. Tudo isso impregna o filme de uma atmosfera outonal, de recordações, desencantos e despedidas, da sensação melancólica de que já não é possível recapturar o passado e os antigos sonhos.

             o príncipe 2           São para mim antológicas as cenas do jantar no velho Paddock (a pequena participação de Adriano Stuart como o maitre é impagável), em que Gustavo revê o amigo jornalista (Otávio Augusto), beberrão, amargo e sarcástico, preso a uma cadeira de rodas depois de sofrer um acidente. Findo o jantar, saem os dois pelas ruas das imediações, inteiramente degradadas, com seus lúgubres personagens noturnos, enquanto o paraplégico, empurrado por Gustavo, declama trechos da Divina Comédia, depois de passarem pela estátua de Dante Alighieri, na Praça Dom José Gaspar.o príncipe

 

 

 

 

 

                        A síntese perfeita de tudo está na última fala do protagonista, ao responder à madame que com ele embarca no voo de volta à Paris, e lhe indaga se ele viera ao Brasil a negócio ou prazer:

                        Como a senhora definiria um funeral?

 

Um comentário

  1. Lilian
    09/06/09 at 23:56

    Tanta coisa, tanta riqueza o senhor derramou num único post que fica até difícil comentar… Vou começar pelo começo: “odeio” Maquiavel e seu Príncipe (que li, recomendado pelo senhor, na faculdade); acredito que, se chegamos ao atual estado de coisas (essa sociedade degenerada) é exatamente pela aplicação das “leis” do Príncipe. Acredito que a cortesia, a fraternidade sempre fariam melhor pelo homem. E, infelizmente, para completar o “pacote” (rsrs), ainda associo o Príncipe a uma figura conhecida, daí o meu quase terror.
    Se o mundo é um campo de experiências, do qual alguns se julgam donos, talvez tenha chegado o momento de experimentar aplicar a lei do amor… Pode ser que dê certo, já que o modelo do Príncipe não deu, como se pode deduzir pelo “colapso social” em andamento.
    Quanto ao filme, o parágrafo final diz tudo… deve ser muitíssimo interessante!
    PS: que fique bem claro; odiei o “Príncipe” e não a recomendação e o conhecimento que o senhor buscou nos transmitir ao recomendar esse notório clássico para leitura, – isto eu só poderia agradecer, como faço agora.
    Muito obrigada, Professor!

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