“No meio da confusão ouviu-se Quincas dizer:
‘─ Me enterro como entender
na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
Pra melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão.’
E foi impossível saber.”
(A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, Jorge Amado)
A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, novela publicada pela primeira vez em 1958, na ótima e saudosa revista Senhor, é tida como uma obra atípica de Jorge Amado, que mistura sonho e realidade, loucura e razão, no melhor estilo do que se convencionou chamar de Realismo Mágico.
Narra as duas vidas de Joaquim Soares da Cunha, funcionário público e pai de família exemplar até se aposentar. A partir de então, cai na malandragem, no alcoolismo, na jogatina e na bandalha, deixando a família para conviver com prostitutas, bêbados, jogadores e meliantes da ralé, entre os quais passa a ser conhecido como Quincas Berro D’Água.
A narrativa tem como foco a morte de Quincas no quartinho imundo em que morou durante sua vida boêmia. Em retrospectiva, desenrola-se a sua primeira existência, ao lado da família, e a segunda vida, no meio dos vagabundos. Arrebatado por estes para um derradeiro passeio pelos bordéis e botecos, o corpo acaba embarcado em um saveiro, cheio de bebida e mulheres, e sobrevindo uma tempestade, o defunto se põe de pé e “no meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira. Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.”
Há quem sustente que o livro seria baseado no Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, razão pela qual teria sido desprezado por Jorge Amado mais tarde, como também rejeitou os inúmeros escritos, alguns reunidos no livro Hora da Guerra, em que rasgou elogios patéticos até ao bigode de Stálin.
Mudar de opinião ou rever o que se pensava não desmerece ninguém, muito pelo contrário, demonstra um espírito aberto e corajoso. Mas se Jorge Amado tinha motivos de sobra para renegar sua militância stalinista, não os teria para rechaçar A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, obra à altura de suas melhores criações.
A morte dupla, ou tripla, de Quincas, a sua vida extravagante e lendária, parece-me que se imbricam de modo impressionante com a trajetória de Michael Jackson, o Rei do Pop.
Talento precoce, Michael Jackson foi um extraordinário cantor e dançarino (admirado por nada mais nada menos do que Fred Astaire), além de bom compositor. Criou um novo padrão audiovisual, transformando os antigos e chatos promos em clipes que são verdadeiros curtas-metragens, convidando para fazê-los diretores de cinema da envergadura de Martin Scorcese (Bad) e John Landis (Thriller), tendo ainda trabalhado com Sidney Lumet (O Mágico Inesquecível, fracassada tentativa de adaptação de O Mágico de Oz) e Francis Ford Coppola (Captain EO), sem dizer da longa e fecunda parceria musical com o grande Quincy Jones.
Mas depois do seu estrondoso sucesso nos anos 80, começou a morrer, ou a se matar, transfigurando-se como em Thriller, não em um mostro, mas sim num pálido fantasma de si mesmo.
Meteu-se em mil escândalos, perdeu todo o dinheiro que ganhara e a sua Neverland, rompeu com os antigos parceiros, empanturrou-se de remédios, submeteu-se a inúmeros tratamentos e terapias malucas, incontáveis cirurgias.
A sua morte ontem foi apenas a última, depois de muitas outras (e continuará a morrer vários dias ainda nos jornais, nas revistas e na televisão), mas como Quincas Berro D’Água permanecerá para sempre no imaginário popular.