Há pouco mais de dez anos, quando ainda não havia o euro e o real valia um dólar, pude fazer minha primeira (e até agora única) viagem à Europa, na companhia de meu pai. Optamos por uma jornada sentimental pelos países latinos, de que somos mais próximos e que mais de perto influenciaram nossa formação, Portugal, Espanha, Itália e França.
Com um carro alugado, percorremos a partir de Lisboa mais de oito mil quilômetros de deslumbramentos e surpresas inauditas, já que embora tivéssemos estabelecido algumas cidades como pontos de referência e estadia, o roteiro não era rígido e nos permitíamos parar em outras cidades e lugarejos que nos despertavam o interesse ao longo do caminho.
Ao sair de Portugal e cruzar a Espanha rumo a Madri, permanecemos três dias em Salamanca, com a qual nos encantamos, embora a intenção inicial fosse de lá ficar apenas um dia.
Depois de visitarmos a famosa e tradicional Universidade de Salamanca, entramos em uma velha livraria das imediações, onde passamos algum tempo folheando e garimpando livros. Acabei comprando, entre outros, um pequeno livro de capa amarela, de pouco mais de cem páginas, escrito por um professor de literatura daquela universidade, Juan Sebastián Agullo, sobre a vida de uma figura extravagante e lendária por lá, de quem jamais tinha ouvido falar até então e nem ouvi falar depois.
Trata-se do poeta Guilhermo Pérez-Arroyo, nascido em Barcelona, de família nobre, que abandonou a Marinha para combater ao lado dos rebeldes na Guerra Civil espanhola, e depois passou a viver em Salamanca. Morreu no ano de 1944, em circunstâncias misteriosas, havendo suspeitas de que teria sido assassinado a mando do ditador Franco.
Em Salamanca, tornou-se um verdadeiro ídolo dos estudantes da universidade, com os quais passava as noites na Plaza Mayor, embebedando-se de absinto, entoando canções tradicionais e declamando seus poemas, que costumava queimar depois, por achar que a poesia devesse ser como a faísca de um relâmpago que deixa marcas apenas naqueles a que atingiu com sua descarga efêmera e fulminante. Por isso, não publicou nenhum livro e da sua obra restaram somente fragmentos salvos por alguns de seus companheiros ou por estes reproduzidos de memória.
Remexendo numa caixa em que guardei as recordações daquela viagem, deparei-me com o livrinho, do qual extraio um dos poucos poemas que consta como sendo da autoria de Guilhermo Pérez-Arroyo, e cujas referências náuticas, segundo o autor do estudo, reportariam à sua vida de Oficial da Marinha.
MAREO
Marino de uno barco fantasma
me busco e non me hallo
em cada puerto que paso.
Navegar por siete mares
me fue de poca valía
son siempre iguales lugares
y cada mañana repetie el mismo día.
Pero una noche de marea alta
por mando del mor capitán
zarparé a la viaje definitiva
y la última misión.
!Vaya, vida vana!
Tú eres la áncora
que me ata a lo largo
del misterio de las cosas.
Dentro do livro, em papel de carta do hotel em que nos hospedamos em Salamanca, encontrei uma tosca tradução que fiz do poema, com os tropeços do conhecimento de espanhol e algumas licenças poéticas:
MARESIA
Marujo de um barco fantasma
procuro e não me acho
em cada porto que passo.
Navegar os sete mares
me foi de pouca valia,
são sempre iguais os lugares
e cada manhã repete o mesmo dia.
Mas numa noite de maré cheia
a mando do mor capitão
zarparei na viagem definitiva
para a derradeira missão.
Ah, vida vã!
Tu és a âncora
que me prende ao largo
do mistério das coisas.
Poeta Antônio-Carlos: Que rematado fingidor você vai-se tornando, a ponto de se fingir o poeta de Salamanca, e traduzir de si mesmo um poema do fingido poeta de Salamanca! Ambos, que transcreveu no seu blog, são meus favoritos, e não sei se mais admiro o poeta de Salamanca, a própria Salamanca, ou o poeta que se manca nestas terras de aquém mar. Tudo o que fingimos é mais veraz que a verdade? Ou a verdade se finge de mentira, para ser veraz?
Que saudade de Salamanca, na praça fechada e sob os arcos em que passamos a noite bebendo vinho, vendo e ouvindo os estudantes com as suas guitarras! Depois foi o Escorial, em que exigi que você parasse o carro, para que visitássemos o interminável palácio. Você parou, aborrecido, e logo mais estava pasmado com o que víamos. Que viagem! Foi a mais bela viagem da minha vida, e com o mais belo retorno, porque aqui ainda estava a minha Jaçanan me esperando…
Será que ainda faremos outra? Você vai agora, com Maria Delucena, mas eu não vou. Aqui fico com as minhas dentaduras duplas que, como os cabelos brancos de Bilac, não lhe deram a calma, nem a Drummond nem a mim. O seu barco ainda tem muito que marear. E eu só ando fazendo viagem de cabotagem. Que Deus o abençoe. Annibal.
Adorável o comentário do Annibal!
Querido menino Antonio Carlos, realmente está se escondendo atrás do poeta de Salamanca?
Desnecessário, pois v. é tão bom ou melhor até do que muitos poetas que tenho lido pelo tempo afora….
Leva a quem o lê todo o sentimento que o poeta faz por repassar.
Carinho a todos.
Esse poeta catalão é sensacional. Para mim, o melhor. Parabéns ao meu pai pela grande descoberta desse maravilhoso e inédito poema. Além de grande detetive de diploma por correspondência e piloto de caças, agora também virou um Indiana Jones…beijo, Carol
Tem viagens que realmente mexem com a gente e não vamos esquecê-las nunca. As minhas melhores recordações referem-se todas a viagens. Vamos viajar, vamos viver, pessoal! O “engraçado” é que, naqueles momentos, felizes, não temos (eu, pelo menos, não tenho) noção da importância do que estamos vivendo. Só depois, passado o tempo, lembrando-nos dos fatos, é que podemos atribuir às coisas vividas o seu real valor.
Tem pessoas que viajam levando câmeras fotográficas ou filmadoras, para “registrar” cada instante do passeio, do sonho. Eu faço o contrário: não carrego nada disto; levo apenas o meu olhar e coração, para apreender o máximo de tudo o que é possível. De que me valeriam as fotos, depois, se aqueles momentos não tivessem sido devidamente registrados na minha memória, no meu coração, no meu olhar totalmente fascinado? Eu “me recuso” a ver o mundo pelas lentes de uma câmera; eu quero sentir, tocar, viver o momento em toda a sua intensidade, e não “aprisioná-lo” num pedaço de papel ou imagem que se possa rever depois. Eu quero os instantes e sua magia que, depois, poderá até se perder no tempo, mas nada melhor do que absorvê-la enquanto ocorre. Há quem prefira as “lentes”; eu fico com os meus olhos, diretamente ligados ao coração.
Quanto ao poema… meu Deus, que belo! Mais uma narrativa de outro “marinheiro” deste imenso oceano em que todos estamos…