Às segundas-feiras acordo muito crítico. Então, tomem pílulas…
Às segundas-feiras acordo muito crítico. Então, tomem pílulas…
“No princípio era o Verbo; e o Verbo estava com Deus; e o Verbo era Deus.” (Jo1:1)
É conhecida a história, contada pelo próprio Millor Fernandes, de que era para ele se chamar “Milton’, mas a caligrafia do escrivão que lavrou seu registro de nascimento — que fez um “t” aberto como se fosse um segundo “l”, esquecendo-se ainda de cortá-lo, além de traçar o “n” final com aparência de um “r” — acabou por lhe conferir um nome único, que marcou e transformou sua vida, pessoal e artística.
Eis aí um exemplo perfeito e acabado do poder das palavras, que dão sentido ao que somos e ao mundo em que vivemos, e são capazes até mesmo de criar ou alterar realidades.
O mesmo Millor, que também é um grande desenhista, ao ser confrontado com a famosa frase “uma imagem vale por mil palavras”, costuma redarguir, de modo irrespondível:
— Diga isso sem palavras.
Embora toda ciência deva ter uma linguagem própria, que a identifica e distingue como tal, o uso abusivo e desnecessário dos termos técnicos, fora do seu contexto acadêmico ou profissional (como o fazem a maioria dos médicos e profissionais do Direito), é uma forma de demonstrar e exercer poder, excluindo os pobres leigos daquele mundo de suposta sapiência, encerrado em si mesmo, ao qual somente se poderá ingressar sabendo a senha mágica do abracadabra.
Jorge Larrosa Bondía, doutor em pedagogia pela Universidade de Barcelona, onde atualmente é professor titular de Filosofia da Educação, anota de modo lapidar: “Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como “zôon lógon échon”. A tradução desta expressão, porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do que “animal dotado de razão” ou “animal racional”. Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido da palavra, é justamente essa de traduzir “logos” por “ratio”. E a transformação de “zôon”, vivente, em animal. O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra. Por isso, atividades como considerar as palavras, criticar as palavras, eleger as palavras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com as palavras, impor palavras, proibir palavras, transformar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias, não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos” (Notas sobre a experiência e o saber de experiência: tradução João Wanderley Geraldi: — conferência proferida no I Seminário Internacional de Educação de Campinas, traduzida e publicada em julho de 2001 por Leituras SME).
A propósito, assinala Alberto Manguel que “Quando foram atacados por uma doença parecida com amnésia, em um dia de seus cem anos de solidão, os habitantes de Macondo perceberam que seu conhecimento do mundo estava desaparecendo rapidamente e que poderiam esquecer o que era uma vaca, uma árvore, uma casa. O antídoto, descobriram, estava nas palavras. A fim de lembrar o que o mundo significava para eles, fizeram rótulos e os penduraram em animais e objetos: “Isto é uma árvore”, “Isto é uma casa”, “Isto é uma vaca, e dela se obtém o leite, que, misturado com café, nos dá café com leite”. As palavras nos dizem o que nós, como sociedade, acreditamos que é o mundo” (No bosque do espelho: ensaios sobre as palavras e o mundo: tradução Pedro Maia Soares; — São Paulo: Companhia das Letras, 2000).
Embora seja controversa a origem da Cabala, sustentam místicos e ocultistas que o Livro da Criação (SEFER YETSIRAH) fundamentou as práticas cabalísticas com as noções de que a realidade estaria estruturada através das letras. Por essa concepção o mundo derivou de 32 elementos (os 10 primeiros números e as 22 letras do alfabeto hebraico), e o processo cósmico estaria embutido na progressiva descoberta do nome de Deus, inacessível à maioria dos mortais.
Outra curiosidade ou mistério tratado pela Cabala é que a palavra “Deus” pode ser escrita com 4 letras na maioria dos idiomas conhecidos. Em inglês, os místicos preferem usar o nome “Lord” (4 letras) em lugar de “God” (3 letras) para se referir a Deus, uma vez que “God” é um anagrama, que escrito de trás para frente forma a palavra “Dog” (cão), uma das designações de “Satã” (4 letras).
A força e a importância das palavras revelam-se, ainda, no fato de que os grandes acontecimentos históricos, quase todos, são marcados por frases (verdadeiras ou não) que teriam sido ditas pelos seus protagonistas. Desnecessário citar algumas delas aqui, até porque cada um terá suas preferidas.
O que também me parece notável são as frases ou palavras que se tornaram célebres, ainda que jamais tenham sido ditas, ou sejam de duvidosa autenticidade.
O cultuado filme Casablanca, dirigido por Michael Curtiz e estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, que eternizou a canção As Time Goes By, é frequentemente lembrado pela frase talvez mais lendária do cinema, “Play it again, Sam!”, que nunca foi dita, seja por Bergman, seja por Bogart. Ilsa (Bergman) fala ao pianista: “Play it, Sam. Play As Time Goes By”. E depois, quando Rick (Bogart) manda que Sam toque também para ele a mesma música, diz: “You played it for her, you can play it for me.”
Outra história ótima é a das enigmáticas palavras atribuídas ao astronauta Neil Armstrong, comandante da missão da Apolo 11 e o primeiro homem a pisar o solo lunar.
Depois de haver proferido a grandiloquente frase (por certo preparada de antemão) “That’s one small step for a man, one giant leap for mankind”, pouco antes de retornar à nave teria dito ainda: “Good luck, Mr. Gorsky”.
A versão corrente ― que teria sido desmentida pelo próprio Armstrong ― é a de que ele, quando ainda criança, estava jogando baseball com um amigo no pátio da sua casa. A bola voou longe e foi parar no jardim ao lado, perto de uma janela da casa de seus vizinhos, o casal Gorsky. Quando o menino Neil se agachou para apanhar a bola, escutou uma furiosa senhora Gorsky vociferando para o marido:
— Sexo oral? Você quer sexo oral? Sabe quando? Você terá sexo oral quando o filho dos vizinhos caminhar na lua!”
Tudo isso me faz recordar outra frase cinematográfica famosa, do final de um dos maiores westerns de todos os tempos, O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), do grande John Ford, dita pelo jornalista Scott ao senador Stoddard, interpretado por James Stewart, justificando a razão de desistir de publicar os verdadeiros fatos que acabavam de lhe ser revelados pelo senador:
— Aqui é o Oeste, senhor. Quando a lenda á maior que o fato, publique-se a lenda.
Uma dupla de meliantes invadiu de madrugada a igreja São João Batista, no bairro da Gruta, da cidade de Orlândia, e furtou uma mesa de som, hóstias e seis garrafas do vinho utilizado nas missas.
Por meio de informações de vizinhos da igreja, a polícia identificou os larápios, que confessaram e disseram que o ato foi uma idiotice. A mesa de som foi recuperada, mas as hóstias e o vinho já haviam sido consumidos (Folha de S. Paulo, Caderno Ribeirão, C3, 25/9/2009).
Sobre esse furto, me assaltam algumas dúvidas.
Terá sido furto famélico?
Como os ladrões se arrependeram, ingeriram as hóstias e o vinho sagrados, com isso teriam comungado e recebido o perdão divino?
Em caso positivo, tendo em conta o perdão da vítima, estaria extinta a punibilidade?
O caso me remete a outro, anedótico, mas que me disseram ter acontecido de fato em Guaxupé, que na minha memória da infância é um misto da Recife e da Pasárgada de Bandeira, e da Macondo de García Márquez.
Um coroinha, acostumado com os hábitos frugais do velho pároco, servia-lhe durante as missas uma pequena porção de vinho no momento solene da consagração, e reservava a sobra para mais tarde, na sacristia, degustar com bolachinhas.
Adoentado e com a idade avançada, o vigário recebeu um auxiliar, padre jovem e vigoroso. Na missa, o coroinha quis lhe servir a mesma pequena dose de vinho, mas o celebrante jovial, com gestos enérgicos, insistiu que completasse o cálice.
Vendo frustrar-se o costumeiro lanche paroquial, o coroinha, irritado, sacou da algibeira o saquinho de petisco e o lançou ao padre moço:
— Se é assim, tome, pode ficar também com as bolachinhas!
Daqueles que estavam presentes, ninguém faltou.
Dos que faltavam, ninguém fez falta.
Assim pensava, enquanto participava da missa de corpo presente.
Missa rezada à moda antiga, em latim, com o celebrante de costas para os fiéis e de frente para o altar, como exigira o finado e fora atendido pelo vigário, com autorização do bispo, em especial deferência à saudosa e ilustre figura.
Durante o réquiem, ainda a pedido do extinto, foram entoados cantos gregorianos (ou cantus planus, como ele gostava de dizer).
De onde estava, podia ver a viúva e os filhos ao lado do caixão. Ela, quase vinte anos mais nova que o marido defunto, ainda era uma bela mulher, com seus cabelos volumosos escorrendo pelo vestido preto e justo, que lhe caía muito bem, realçando a pele alva, as formas perfeitas, os seios fartos, as pernas longas ressaltadas pelas meias também negras e o salto alto.
Não lhe faltariam pretendentes para novo marido ou para amante, se ela assim preferisse, já que estava bem amparada pelos generosos recursos deixados pelo pranteado, e não mais dependeria de homem algum.
Os filhos adolescentes, o rapazinho imberbe, com o ar apalermado de quem não entendia bem o que estava acontecendo, e a menina, com os olhos inchados e vermelhos pelo choro, mas já a desvelar a moça que sobrevinha, mantendo a postura hierática e amparando a mãe, também não passariam dificuldades até que ambos se formassem e tivessem vida própria.
Acompanhou a longa liturgia da missa solene com certo enfado e alguma impaciência.
Na homilia, o padre discorreu sobre a efemeridade da vida terrena e das pompas do mundo, além de fazer os elogios de praxe ao falecido, definindo-o como um homem da ciência e do saber, “com lógica de ferro e coração de ouro”.
Após a benção final, quando o sacerdote proclamou “Ite, missa est”, já não estava presente.
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Um oásis na Paulicéia, nas Pílulas (agora no começo da página)
Em um dos seus contos mais conhecidos e reverenciados, Machado de Assis dá a palavra a um padre velho, que narra uma aventura extraordinária que lhe aconteceu quando era capelão de São Francisco de Paula.
Uma noite, ao se recolher mais tarde do que de costume, intrigado com uma estranha luz que lobrigou por baixo das portas bem fechadas do templo, acabou por surpreender os santos descidos de seus nichos e sentados nos altares, com a dimensão não das próprias imagens, mas sim de homens, conversando entre si: “Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas São Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. São João abanava a cabeça.”
A mim me aconteceu neste fim de semana que passei em São Paulo algo semelhante ao velho vigário, mas que ao contrário dele não me surpreendeu, antes confirmou um juízo que há muito tenho: o de que os livros, como os santos machadianos, quando não há ninguém por perto, vagueiam pelas estantes, conversam entre si, têm afetos e desafetos, mantêm conversações amistosas e ásperas discussões, escondem-se quando não estão dispostos a ser lidos ou não gostam do leitor.
Sábado de manhã, estava eu na nova Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, a procurar um pequeno livrinho — Tudo e Nada, do argentino Macedonio Fernández — que pretendia presentear ao meu amigo Roberto Rockmann, cujo blog tem o mesmo título.
O livro, com o subtítulo de Pequena antologia dos papéis de um recém-chegado, reúne anotações, textos e reflexões de Macedonio, o qual, embora difícil de ser definido, costuma ser classificado como poeta, metafísico e humorista, escreveu sobre os mais variados assuntos, e foi proclamado por Jorge Luis Borges um de seus doze apóstolos.
Editado no Brasil pela Imago, o livrinho não se acha esgotado, mas é difícil encontrá-lo disponível nas livrarias, sendo necessário encomendá-lo. Como iríamos jantar com o Rockmann e a sua (nossa) querida Adriana (Tuka para os mais íntimos, apelido carinhoso que lhe deu o pai quando ainda pequenina), queria levar-lhe o livro, e fiquei muito satisfeito quando o atendente, após consultar o oráculo dos nossos tempos, conhecido como computador, me disse que tinha um único exemplar, recebido há poucos dias, e que ele estava ali mesmo, pertinho de nós, na estante que abriga os autores de literatura estrangeira, em ordem alfabética.
Ele e eu nos pusemos a procurar o livrinho na referida estante, e não o encontrando no local em que deveria estar, continuamos a remexer as prateleiras (já que poderia ter sido deslocado por algum incauto), buscando até mesmo atrás das fileiras da frente.
Diante do nosso insucesso — e depois de novamente consultar o oráculo que lhe confirmou a existência do livrinho —, o gentil e simpático atendente chamou dois companheiros para nos ajudar na procura. Um deles teve a ideia de verificar entre os autores brasileiros, já que o nome de Macedonio poderia ter sido confundido pelo encarregado de colocar o livro entre seus pares. Nosso outro auxiliar, que era uma moça, desenvolvendo o mesmo raciocínio, tratou de procurar o livro entre os autores latino-americanos, que ficavam em outra estante.
Tudo em vão!
Já se passara quase uma hora quando me ocorreu o óbvio, que deveria ter imaginado desde logo.
Indaguei do trio onde estavam os livros de Borges, que não tinha visto nem entre os autores estrangeiros, nem entre os latino-americanos. Informaram-me, então, que se achavam numa estante à parte, com Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato e outros autores mais conhecidos.
— Então o Macedonio está lá, perto do Borges, respondi-lhes eu.
Os três se entreolharam, e depois me olharam como se eu fosse meio maluco, mas o rapaz que havia me atendido de início, esboçando um sorriso condescendente, disse que ia verificar.
Pouco depois voltou com o sorriso aberto e uma cara de vitorioso, com o livrinho nas mãos:
— Incrível, o senhor tinha razão! Estava mesmo lá! (não gostei do senhor, mas o que se há de fazer…)
Falei-lhes brevemente, então, da minha teoria sobre a vida oculta dos livros, e os três deram boas risadas, talvez pensando que eu fosse um maluco completo.
Quando ficamos sós, o primeiro atendente me confidenciou que poucos dias atrás acontecera uma coisa estranha com um outro livro pretendido por um cliente, mas daquela feita não houve meio de achá-lo, embora constasse como existente no estoque.
No dia seguinte, mexendo na mesma estante que havia revirado em busca do livro sumido, este lhe caiu na cabeça, sem que soubesse de onde havia saído.
— É que o livro, por algum motivo, não simpatizou com aquele comprador. Já o Macedonio estava se reservando para que eu pudesse presenteá-lo ao meu amigo, afirmei-lhe eu, com ares de sapiência, assumindo definitivamente o papel de um bruxo, o que, aliás, está na moda e tem rendido bom dinheiro a muita gente ruim, fenômeno que talvez confirme os poderes de tais gurus.
Macedonio Fernández
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O jornalista Maurício Kubrusly, uma das raras cabeças pensantes do pasmado elenco global, e que é um grande conhecedor e amante da música, disse certa feita que não consegue entender alguém que o convida para uma festa ou evento dizendo-lhe que “vai tocar música do nosso tempo”.
Segundo ele, uma vez que ainda estamos vivos, a música de nosso tempo é a de agora, além do que não tem a mínima disposição de aceitar o convite para ouvir Ray Conniff, que era o que tocava nos bailinhos de sua juventude.
Ele tem toda a razão sobre o saudosismo paralisante, que nos encerra e imobiliza num mundo que já não é. Mas creio também — e provavelmente ele concordará comigo — que não se pode simplesmente dar às costas para o que foi, ignorar o que passou e só dar valor ao que é novo ou o que está na moda. Até porque o novo nunca é tão novo assim, e só existe como continuidade do que veio antes.
O grande filósofo espanhol, Ortega Y Gasset, alertava que uma das evidências que distingue o homem dos animais é que ele tem muito mais memória do que as pobres bestas. Ao contrário destas, o homem acumula seu próprio passado, possui-o e aproveita-o. O homem não é nunca um primeiro homem: começa desde logo a existir sobre certa altura do pretérito acumulado. Esse é o seu único tesouro, o seu privilégio e o seu sinal.
Os movimentos de vanguarda, que pretendem romper radicalmente com o passado, mesmo que o façam, estarão partindo daquilo que os precedeu, ainda que para negá-lo ou contrariá-lo E o que se vê é que depois do ímpeto inicial de cortar todas as cabeças, acabam sempre por incorporar muita coisa do corpo que ficou.
Com a música, e a arte em geral, não é diferente, embora muitos se pretendam absolutamente inovadores e únicos.
Os se dizentes roqueiros brasileiros, muitos dos quais me fazem lembrar aquele personagem de Chico Anísio, vampiro brasileiro (aliás, o grande ícone e rainha do rock brasileiro, Rita Lee, faz hoje canções engraçadinhas, que podem ser tudo, menos rock), talvez nem saibam que o velho e bom rock’n’roll, com sua multipliciade de gêneros, originou-se primordialmente, do blues, rhythm’n’nblues e da country music do sul dos EUA. Há mesmo quem diga, com alguma razão, que os primeiros rocks não passavam de blues acelerados.
Entre as grandes feras dos anos 50 — Bill Haley (Rock Around the Clock) Chuck Berry (Johnny B.Goode), Little Richard (Good Golly Miss Molly“), Sam Cooke (You Send Me), Buddy Holly (Peggy Sue) —, Jerry Lee Lewis ocupa uma posição singular.
Poucos tiveram a coragem de ter uma carreira longe dos interesses das grandes gravadoras, de fazer apenas o que bem entendesse, lixando-se para o público e a crítica.
Talvez por isso seja conhecido como The Killer, cujo piano incandescente (no sentido literal) e o canto maldito mesclam Deus e o diabo, num ritmo alucinante, que escandalizou o Tio Sam.
Pior ainda quando em 1958, com 23 anos, Jerry Lee Lewis se casou com a prima Myra Gale Brown, de apenas treze anos. Era o que faltava para a conservadora e hipócrita sociedade americana condená-lo às chamas do inferno. Em questão de meses, caiu no ostracismo, sua vida e sua carreira passaram a ser marcadas por arruaças, porres, prisões, doenças e mortes.
Mas, como na canção de Paulo Vanzolini, deu a volta por cima, voltou a fazer sucesso e a ser reconhecido como a Fera do Rock (título em português do filme Great Balls of Fire, de 1989, baseado na autobiografia de Myra, e no qual Dennis Quaid faz o papel de Jerry Lee de maneira bem razoável).
O velho e eterno roqueiro, aos 73 anos de idade, está de volta ao Brasil, e faz nesta sexta-feira apenas uma apresentação em São Paulo (infelizmente, não poderei assistir a ela).
O símbolo perfeito da juventude rebelde, o extraordinário pianista que teve uma única aula porque o professor quis corrigir o seu jeito de tocar, o anti-herói americano, Last Man Standing (nome do seu mais recente disco, de 2006, que se reporta à célebre reunião em 1956 de Elvis Presley, Carl Perkins, Johnny Cash e Jerry Lee Lewis, que é o último sobrevivente do grupo), indagado certa vez se acreditava em destino, respondeu:
— Eu acredito em Jerry Lee Lewis. E em Deus Todo Poderoso.
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Assisti ao intrigante documentário A impostora do 11/9, dirigido por James Cruemel, que narra a trajetória da espanhola Alicia Esteves Head, que se fez passar por Tania Head, uma norte-americana que, ferida, teria conseguido sobreviver ao ataque às Torres Gêmeas, fugindo do 78º andar da torre sul, enquanto seu noivo David morria na torre norte.
Sua história de perda e superação, sua luta para reunir as outras vítimas que escaparam com vida da tragédia — às quais sequer era permitido voltar ao local conhecido como abismo no marco zero do atentado — comoveu a todos, e ela logo se tornou líder e presidente da associação de sobreviventes, chegando a ser recebida por políticos de primeira grandeza dos EUA.
Além de ter doado recursos próprios para a causa, graças ao seu empenho conseguiu ajuda financeira do governo, autorização para a primeira visita de sobreviventes ao local em 2003, bem como a inauguração de um memorial em homenagem a eles.
Somente foi desmascarada quando o jornal New York Times publicou uma reportagem em setembro 2006 questionando a veracidade da sua história e revelando que ela não era norte-americana, nem mesmo se encontrava em Nova York no dia do atentado.
Desapareceu logo após, e algum tempo depois os sobreviventes reais receberam um e-mail contando que ela havia cometido suicídio. Como não obteve nenhuma vantagem financeira, sua conduta não é considerada como criminosa os EUA.
Muitos dos sobreviventes, mesmo sabendo da verdade, continuaram agradecidos a ela, pelo muito que lhes fez, ajudando-os a encontrar força para enfrentar o trauma e seguir com suas vidas.
O que me fascina nessa história é a extrema complexidade do ser humano, que nos faz indivíduos absolutamente singulares, quase sempre incompreensíveis uns para os outros (e até mesmo para si próprios), pelo menos no seu universo mais íntimo.
O que terá movido Alicia a se transformar na benemérita Tania?
Especula-se que sofreu um trauma na infância com a prisão escandalosa dos pais, envolvidos em fraudes na Espanha. Que em razão disso e do seu tipo físico, baixinha e gorducha, teria pouco autoestima, e com suas ações estaria buscando ser admirada e acolhida (all we need is love…).
Especula-se. Especula-se.
A vida é uma especulação ou uma hipótese, à mercê de explicações e conclusões.
Mas talvez não haja nenhuma.
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Duas novas pílulas, para engolir a segunda-feira.
“Lula e a gramática”, nas Pílulas.
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