O jornalista Maurício Kubrusly, uma das raras cabeças pensantes do pasmado elenco global, e que é um grande conhecedor e amante da música, disse certa feita que não consegue entender alguém que o convida para uma festa ou evento dizendo-lhe que “vai tocar música do nosso tempo”.
Segundo ele, uma vez que ainda estamos vivos, a música de nosso tempo é a de agora, além do que não tem a mínima disposição de aceitar o convite para ouvir Ray Conniff, que era o que tocava nos bailinhos de sua juventude.
Ele tem toda a razão sobre o saudosismo paralisante, que nos encerra e imobiliza num mundo que já não é. Mas creio também — e provavelmente ele concordará comigo — que não se pode simplesmente dar às costas para o que foi, ignorar o que passou e só dar valor ao que é novo ou o que está na moda. Até porque o novo nunca é tão novo assim, e só existe como continuidade do que veio antes.
O grande filósofo espanhol, Ortega Y Gasset, alertava que uma das evidências que distingue o homem dos animais é que ele tem muito mais memória do que as pobres bestas. Ao contrário destas, o homem acumula seu próprio passado, possui-o e aproveita-o. O homem não é nunca um primeiro homem: começa desde logo a existir sobre certa altura do pretérito acumulado. Esse é o seu único tesouro, o seu privilégio e o seu sinal.
Os movimentos de vanguarda, que pretendem romper radicalmente com o passado, mesmo que o façam, estarão partindo daquilo que os precedeu, ainda que para negá-lo ou contrariá-lo E o que se vê é que depois do ímpeto inicial de cortar todas as cabeças, acabam sempre por incorporar muita coisa do corpo que ficou.
Com a música, e a arte em geral, não é diferente, embora muitos se pretendam absolutamente inovadores e únicos.
Os se dizentes roqueiros brasileiros, muitos dos quais me fazem lembrar aquele personagem de Chico Anísio, vampiro brasileiro (aliás, o grande ícone e rainha do rock brasileiro, Rita Lee, faz hoje canções engraçadinhas, que podem ser tudo, menos rock), talvez nem saibam que o velho e bom rock’n’roll, com sua multipliciade de gêneros, originou-se primordialmente, do blues, rhythm’n’nblues e da country music do sul dos EUA. Há mesmo quem diga, com alguma razão, que os primeiros rocks não passavam de blues acelerados.
Entre as grandes feras dos anos 50 — Bill Haley (Rock Around the Clock) Chuck Berry (Johnny B.Goode), Little Richard (Good Golly Miss Molly“), Sam Cooke (You Send Me), Buddy Holly (Peggy Sue) —, Jerry Lee Lewis ocupa uma posição singular.
Poucos tiveram a coragem de ter uma carreira longe dos interesses das grandes gravadoras, de fazer apenas o que bem entendesse, lixando-se para o público e a crítica.
Talvez por isso seja conhecido como The Killer, cujo piano incandescente (no sentido literal) e o canto maldito mesclam Deus e o diabo, num ritmo alucinante, que escandalizou o Tio Sam.
Pior ainda quando em 1958, com 23 anos, Jerry Lee Lewis se casou com a prima Myra Gale Brown, de apenas treze anos. Era o que faltava para a conservadora e hipócrita sociedade americana condená-lo às chamas do inferno. Em questão de meses, caiu no ostracismo, sua vida e sua carreira passaram a ser marcadas por arruaças, porres, prisões, doenças e mortes.
Mas, como na canção de Paulo Vanzolini, deu a volta por cima, voltou a fazer sucesso e a ser reconhecido como a Fera do Rock (título em português do filme Great Balls of Fire, de 1989, baseado na autobiografia de Myra, e no qual Dennis Quaid faz o papel de Jerry Lee de maneira bem razoável).
O velho e eterno roqueiro, aos 73 anos de idade, está de volta ao Brasil, e faz nesta sexta-feira apenas uma apresentação em São Paulo (infelizmente, não poderei assistir a ela).
O símbolo perfeito da juventude rebelde, o extraordinário pianista que teve uma única aula porque o professor quis corrigir o seu jeito de tocar, o anti-herói americano, Last Man Standing (nome do seu mais recente disco, de 2006, que se reporta à célebre reunião em 1956 de Elvis Presley, Carl Perkins, Johnny Cash e Jerry Lee Lewis, que é o último sobrevivente do grupo), indagado certa vez se acreditava em destino, respondeu:
— Eu acredito em Jerry Lee Lewis. E em Deus Todo Poderoso.
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