Posts from setembro, 2009

 

 

 

                        Um oásis na Paulicéia, nas Pílulas (agora no começo da página)

Entre livros

 

 

                        Em um dos seus contos mais conhecidos e reverenciados, Machado de Assis dá a palavra a um padre velho, que narra uma aventura extraordinária que lhe aconteceu quando era capelão de São Francisco de Paula.

                        Uma noite, ao se recolher mais tarde do que de costume, intrigado com uma estranha luz que lobrigou por baixo das portas bem fechadas do templo, acabou por surpreender os santos descidos de seus nichos e sentados nos altares, com a dimensão não das próprias imagens, mas sim de homens, conversando entre si: “Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas São Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. São João abanava a cabeça.”

                        A mim me aconteceu neste fim de semana que passei em São Paulo algo semelhante ao velho vigário, mas que ao contrário dele não me surpreendeu, antes confirmou um juízo que há muito tenho: o de que os livros, como os santos machadianos, quando não há ninguém por perto, vagueiam pelas estantes, conversam entre si, têm afetos e desafetos, mantêm conversações amistosas e ásperas discussões, escondem-se quando não estão dispostos a ser lidos ou não gostam do leitor.

                       Macedonio 4 Sábado de manhã, estava eu na nova Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, a procurar um pequeno livrinho — Tudo e Nada, do argentino Macedonio Fernández — que pretendia presentear ao meu amigo Roberto Rockmann, cujo blog tem o mesmo título.

                        O livro, com o subtítulo de Pequena antologia dos papéis de um recém-chegado, reúne anotações, textos e reflexões de Macedonio, o qual, embora difícil de ser definido, costuma ser classificado como poeta, metafísico e humorista, escreveu sobre os mais variados assuntos, e foi proclamado por Jorge Luis Borges um de seus doze apóstolos.

                        Editado no Brasil pela Imago, o livrinho não se acha esgotado, mas é difícil encontrá-lo disponível nas livrarias, sendo necessário encomendá-lo. Como iríamos jantar com o Rockmann e a sua (nossa) querida Adriana (Tuka para os mais íntimos, apelido carinhoso que lhe deu o pai quando ainda pequenina), queria levar-lhe o livro, e fiquei muito satisfeito quando o atendente, após consultar o oráculo dos nossos tempos, conhecido como computador, me disse que tinha um único exemplar, recebido há poucos dias, e que ele estava ali mesmo, pertinho de nós, na estante que abriga os autores de literatura estrangeira, em ordem alfabética.

                        Ele e eu nos pusemos a procurar o livrinho na referida estante, e não o encontrando no local em que deveria estar, continuamos a remexer as prateleiras (já que poderia ter sido deslocado por algum incauto), buscando até mesmo atrás das fileiras da frente.

                        Diante do nosso insucesso — e depois de novamente consultar o oráculo que lhe confirmou a existência do livrinho —, o gentil e simpático atendente chamou dois companheiros para nos ajudar na procura. Um deles teve a ideia de verificar entre os autores brasileiros, já que o nome de Macedonio poderia ter sido confundido pelo encarregado de colocar o livro entre seus pares. Nosso outro auxiliar, que era uma moça, desenvolvendo o mesmo raciocínio, tratou de procurar o livro entre os autores latino-americanos, que ficavam em outra estante.

                        Tudo em vão!

                        Já se passara quase uma hora quando me ocorreu o óbvio, que deveria ter imaginado desde logo.

                        Indaguei do trio onde estavam os livros de Borges, que não tinha visto nem entre os autores estrangeiros, nem entre os latino-americanos. Informaram-me, então, que se achavam numa estante à parte, com Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato e outros autores mais conhecidos.

                        — Então o Macedonio está lá, perto do Borges, respondi-lhes eu.

                        Os três se entreolharam, e depois me olharam como se eu fosse meio maluco, mas o rapaz que havia me atendido de início, esboçando um sorriso condescendente, disse que ia verificar.

                        Pouco depois voltou com o sorriso aberto e uma cara de vitorioso, com o livrinho nas mãos:

                        — Incrível, o senhor tinha razão! Estava mesmo lá!  (não gostei do senhor, mas o que se há de fazer…)

                        Falei-lhes brevemente, então, da minha teoria sobre a vida oculta dos livros, e os três deram boas risadas, talvez pensando que eu fosse um maluco completo.

                        Quando ficamos sós, o primeiro atendente me confidenciou que poucos dias atrás acontecera  uma coisa estranha com um outro livro pretendido por um cliente, mas daquela feita não houve meio de achá-lo, embora constasse como existente no estoque.

                        No dia seguinte, mexendo na mesma estante que havia revirado em busca do livro sumido, este lhe caiu na cabeça, sem que soubesse de onde havia saído.

                        — É que o livro, por algum motivo, não simpatizou com aquele comprador. Já o Macedonio estava se reservando para que eu pudesse presenteá-lo ao meu amigo, afirmei-lhe eu, com ares de sapiência, assumindo definitivamente o papel de um bruxo, o que, aliás, está na moda e tem rendido bom dinheiro a muita gente ruim, fenômeno que talvez confirme os poderes de tais gurus.

 

 Macedonio 2

          Macedonio Fernández